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Trânsito no Ceará: o perfil dos pacientes que chegam ao IJF
Reportagem

Trânsito no Ceará: o perfil dos pacientes que chegam ao IJF

Quase metade deles vêm do Interior. Mais de 70% das ocorrências de trânsito atendidas envolvem motociclistas. Maioria dos atendimentos é de homens jovens
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FORTALEZA, CEARÁ, BRASIL,16.04.2024: Traumatologia IJF acidentes de trânsito. (Foto: FÁBIO LIMA)
Foto: FÁBIO LIMA FORTALEZA, CEARÁ, BRASIL,16.04.2024: Traumatologia IJF acidentes de trânsito.

Quase metade dos atendimentos em 2024 decorrentes de acidentes de trânsito no Instituto Doutor José Frota (IJF), em Fortaleza, foram voltados a pacientes oriundos de outros municípios do Ceará. Referência em trauma, a unidade realizou pouco mais de 3 mil atendimentos de vítimas de sinistros automotivos de janeiro a março. Destes, 1.365 vieram de fora de Fortaleza.

No hospital, cada leito revela a vulnerabilidade humana e a violência das estradas. Deitados nas camas há homens e mulheres, a maioria bastante jovem; todos unidos pela tragédia de circunstância inesperada ou um instante irresponsável.

Segundo o superintendente do Instituto José Frota (IJF), José Maria Sampaio, 70% das ocorrências de trânsito atendidas no hospital envolvem motociclistas. “Esse é, infelizmente, o padrão do IJF: adulto jovem, do sexo masculino e que estava conduzindo uma moto após ingerir bebida alcoólica”, aponta o gestor.

De acordo com Sampaio, os pacientes sofrem principalmente fraturas no tronco e no crânio. “São as partes mais pesadas do corpo e, numa colisão, recebem grande impacto. Por isso, a maioria dos pacientes chegam com trauma cranioencefálico; com lesões na face, no pescoço e no tórax, além de traumas nos braços e pernas”, aponta.

No setor de traumatologia, o burburinho das máquinas e do trabalho da equipe médica faz uma combinação melancólica com os olhares angustiados dos pacientes e dos acompanhantes, que fazem companhia dia e noite ao lado dos leitos. Uma delas é Fátima Queiroz, de 30 anos.

Segundo ela, Elenildo, 18, envolveu-se em um acidente de trânsito na noite de 24 de março. O jovem mora no distrito de Serrote Petro, área rural de Itapiúna, a 109 km de Fortaleza. “Ele estava na moto com um parente nosso na garupa, quando bateram com um carro. O garupa morreu na hora”.

Traumatologia IJF acidentes de trânsito.
Foto: FÁBIO LIMA
Traumatologia IJF acidentes de trânsito.

Até hoje, Fátima explica que entende muito pouco do ocorrido. “As pessoas dizem que o motorista do carro que teve a culpa, por supostamente estar na contramão. Mas eu acredito que ambos tiveram culpa, porque meu sobrinho tinha bebido e eles estavam sem capacete”, admite a tia.

Após o acidente, Elenildo foi encaminhado em estado grave ao IJF. “Minha irmã me ligou dizendo o que ocorreu e eu, que moro em Fortaleza, vim para o hospital. Foi um grande choque, além de processar a morte do meu primo eu tive que lidar com a incerteza de saber se meu sobrinho estava bem”, conta.

Elenildo sofreu uma lesão na cabeça e nas pernas, fraturando o fêmur e a tíbia. Após cirurgia, ficou 10 dias entubado. Ao acordar, notou-se que ele perdeu parcialmente a visão do olho direito e está mentalmente debilitado. 

No hospital há mais de um mês, saindo apenas para trocar o turno com uma irmã, a tia conta emocionada que modificou a vida para acompanhar o sobrinho. Mãe de uma menina de nove anos e casada, Fátima conta que precisa lidar diariamente com diversas emoções: o luto ainda não processado pelo parente perdido; a preocupação com a saúde do jovem internado e com a própria família em casa.

“Ele vem de uma família humilde, trabalha no roçado e tem outros cinco irmãos. O meu medo também é que os irmãos mais novos dele queiram seguir com isso de andar de moto muito novos, beber e não usar capacete. Porque lá é muito comum isso, geralmente o pessoal nem carteira [de habilitação] têm”, confessa.

O gestor do IJF, José Maria Sampaio, aponta que os pacientes por acidente de trânsito, principalmente com lesões cerebrais, costumam enfrentar longos períodos de recuperação.

“Esses pacientes padrões ficam, no mínimo, quatro meses com a gente. Fora isso, a reabilitação demora. Dependendo da lesão cerebral, ele pode retornar a sociedade de uma maneira mais tranquila dentro de uns seis meses. Mas se ele estiver em um estado neurológico alterado, pode ficar com sequelas para o resto da vida”, destaca o superintendente.

“Se você tiver como base que nós atendemos cerca de 1.000 pacientes por mês, isso é um exército de pessoas que não vão poder viver socialmente. Muitas vezes são jovens, provedores da família e que, depois do acidente, acabam totalmente dependentes”, conclui.

O trânsito no interior do Estado

Dos 1.365 atendimentos realizados neste ano no Instituto José Frota (IJF) devido a acidentes de trânsito por pacientes originários de municípios do Interior, 1.047 foram vítimas de colisões envolvendo motocicletas. Isso representa 76% do montante.

Conforme Jorge Trindade, diretor de educação de trânsito do Departamento Estadual de Trânsito do Ceará (Detran-CE), o número de incidentes envolvendo motociclistas pode estar associado ao aumento da frota de motos nos últimos anos. “Hoje as motocicletas representam pouco mais de 48% da frota de veículos do Ceará. No entanto, no Interior, esse número sobe para 58%”, comenta.

Apesar de ter um fluxo de trânsito menos intenso, o Interior tem problemas extras, segundo Jorge: é mais comum que os condutores e passageiros não usem capacete, e há uma recorrência de direção por motoristas não habilitados. "É comum flagrar situações de crianças com menos de 10 anos sendo transportadas em motocicletas, o que não é permitido pelo Código de Trânsito Brasileiro”, continua.

Há algo ainda mais grave. Não é raro adolescentes e crianças conduzirem motocicletas, o que se reflete nas alas infantil e juvenil IJF.

Um dos casos é o de Pedro (nome fictício), de 15 anos. Oriundo de uma zona rural do município de Independência, a 310 km da Capital, o jovem se envolveu em um acidente ao pilotar uma moto e colidir com um carro ao realizar uma curva.

O acidente resultou em fratura parcial na perna direita. Desde o dia 6 de março, o rapaz está acompanhado pelo pai no Hospital. “Ele trabalha comigo na agricultura. No dia, pedi pra ele ir buscar umas rações na casa de um tio dele e ele foi na moto de um amigo. Eu estava até pensando em comprar uma motinha pra ele, mas agora estou me sentindo culpado”, admite o pai de Pedro.

Vítima de acidente de trânsito no interior do Ceará
Foto: FÁBIO LIMA
Vítima de acidente de trânsito no interior do Ceará

Pai e filho contam que o jovem não progrediu nos estudos. “Ele estuda de noite, mas os estudos dele são fracos. Ele não sabe ler ainda. A vida dele é me ajudar no trabalho. Vou deixar ele ficar mais de maior pra ele voltar a andar de moto”, comenta.

Segundo o responsável, é comum na região jovens menores de idade e também maiores sem habilitação conduzirem veículos.

“É dos 15 anos pra cima, porque os mais novos são tão pequenos que não seguram a moto. Eu, por exemplo, não tenho carteira. A gente também só usa capacete para ir na cidade, na localidade não”, comenta o pai. Sem previsão de quando deve sair do Hospital, Pedro ainda aguarda por uma cirurgia para correção da lesão.

Fiscalização nos municípios

O diretor de educação de trânsito do Detran-CE, Jorge Trindade, diz que uma das principais razões para as imprudências nos municípios é a ausência de fiscalização de trânsito causada pelo déficit dos órgãos municipais.

“Temos 184 municípios no Ceará, dos quais apenas 89 estão integrados ao Sistema Nacional de Trânsito, ou seja, possuem o trânsito municipalizado. Isso significa que eles não possuem um órgão de fiscalização de trânsito, geralmente conhecidos como Demutrans”, diz.

Além dos 89 municípios que já tem órgãos municipais de trânsito, outras 10 cidades estão em processo de municipalização. Desta forma, 85 municípios ainda não têm nem perspectivas de inserir o serviço municipal de trânsito.

A municipalização do trânsito é uma lei prevista no artigo 24 do Código de Trânsito Brasileiro (CTB) de 1998. De acordo com o representante do Detran, apesar de ser obrigatório há mais de duas décadas, não há uma fiscalização direta a essa legislação devido à autonomia dos entes federativos.

A fiscalização do cumprimento da lei é papel do Ministério Público. De acordo com o promotor de Justiça do MPCE, Hugo Porto, o órgão busca acompanhar esse processo junto aos municípios de forma consensual. “É o mecanismo de formação de consciência. No entanto, se houver descumprimento da legislação, o Ministério Público pode iniciar processos judiciais para responsabilizar os agentes envolvidos”, comenta.

O promotor, que é coordenador auxiliar do Centro de Apoio Operacional da Cidadania, explica que desde 2022 há um grupo de trabalho interfederativo com intenção de promover uma gestão consorciada entre os municípios, visando compartilhar recursos financeiros e humanos para acelerar tal processo.

“Foi decidido levar a ideia ao governador para que o Estado possa avaliar a possibilidade de participar do consórcio. Aguardamos uma posição para determinar o formato pelo qual esses consórcios poderão avançar”, informa o promotor Hugo Porto.

Lacuna de dados sobre trânsito Ceará

Durante a apuração, o O POVO notou uma lacuna na gestão de dados sobre acidentes de trânsito no Estado. O Departamento Estadual de Trânsito (Detran), bem como a Secretaria de Secretaria da Segurança Pública e Defesa Social do Estado (SSPDS), não forneceu informações sobre o número de mortes decorrentes de acidentes de trânsito nos anos de 2023 e até o momento de 2024.

Em Fortaleza, conforme a Autarquia Municipal de Trânsito (AMC), ainda não há dados registrados de mortes e acidentes em 2024. Já as informações de 2023 ainda estão sendo processados, segundo o órgão.

Já a Secretaria Estadual de Saúde (Sesa), bem como as assessorias de comunicação dos hospitais regionais, esclareceu que não tem dados específicos sobre atropelamentos em unidades de saúde no Ceará, englobando todos como “atendimento de trauma”.

De acordo com o Detran, em 2023, foram registrados 6.504 acidentes nas rodovias estaduais do Ceará. Já a Polícia Rodoviária Federal, que fiscaliza as rodovias federais, declarou que no último ano foram registradas 29 mortes em 99 atropelamentos em rodovias federais. De janeiro a março de 2024 foram 18 atropelamentos.

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