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Os fatores que levam a um desastre climático
Reportagem

Os fatores que levam a um desastre climático

Inundação que atinge o Rio Grande do Sul é um extremo climático resultado do aquecimento global. Conjunto de fatores meterológicos provocou volume de chuvas sem precedentes na região. Falta de estruturas de escoamento da água e monitoramento de desastres potencializam catástrofe
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Esta imagem de satélite cortesia da Maxar Technologies tirada em 7 de maio de 2024 mostra a enchente que afetou o estádio Arena do Grêmio em Porto Alegre, Brasil. Desde que o dilúvio sem precedentes começou na semana passada, pelo menos 85 pessoas morreram e mais de 150 mil foram expulsas das suas casas por inundações e deslizamentos de terra no estado do Rio Grande do Sul, disseram as autoridades. (Foto por Folheto / Imagem de satélite ©2024 Maxar Technologies / AFP) / RESTRITO AO USO EDITORIAL - CRÉDITO OBRIGATÓRIO
Foto: Maxar Technologies / AFP Esta imagem de satélite cortesia da Maxar Technologies tirada em 7 de maio de 2024 mostra a enchente que afetou o estádio Arena do Grêmio em Porto Alegre, Brasil. Desde que o dilúvio sem precedentes começou na semana passada, pelo menos 85 pessoas morreram e mais de 150 mil foram expulsas das suas casas por inundações e deslizamentos de terra no estado do Rio Grande do Sul, disseram as autoridades. (Foto por Folheto / Imagem de satélite ©2024 Maxar Technologies / AFP) / RESTRITO AO USO EDITORIAL - CRÉDITO OBRIGATÓRIO "FOTO AFP / IMAGEM DE SATÉLITE ©2024 MAXAR TECHNOLOGIES" - SEM MARKETING SEM CAMPANHAS PUBLICITÁRIAS - DISTRIBUÍDO COMO SERVIÇO AOS CLIENTES

Maior tragédia da história do Rio Grande do Sul e uma das maiores do Brasil, a inundação que atinge 83% do Estado é resultado de uma chuva sem precedentes. Com a soma de fatores meteorológicos, chuvas que eram esperadas para três meses — março, abril e maio — foram observadas em três dias — entre 30 de abril e 2 de maio, principalmente. 

Conforme pesquisadores, o cenário Rio Grande do Sul é de um extremo climático resultado do aquecimento global. Conforme Carlos Afonso Nobre, considerado um dos maiores especialistas do país na área de mudanças ambientais globais, afirma que, "globalmente, todos os cenários climáticos mostram que os extremos climáticos estão ficando mais frequentes e quebrando recordes". 

Ele destaca que o ano passado foi o mais quente do registro histórico desde o último período interglacial e que vivemos o momento mais quente da história dos oceanos.

"Isso tem gerado esses cenários de que fenômenos meteorológicos, oceânicos que ocorrem há milhões de ano sejam mais intensos", relaciona Nobre, que é pesquisador titular do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe), membro da Academia Brasileira de Ciências e integra o Painel Intergovernamental sobre Mudança Climática (IPCC), da ONU.

Segundo o climatologista, o sistema meteorológico observado no RS é chamado de bloqueio atmosférico. "A baixa pressão ficou mais do lado do sul do Brasil e a alta pressão ficou ao norte. A alta pressão criou essa onda de calor sem chuvas bloqueando as frentes frias e fazendo muita chuva. Isso sempre aconteceu. Agora, os fenômenos estão acontecendo batendo recordes. Chuva mais forte, seca mais forte, onda de calor mais forte, ventos mais fortes. Um efeito direto do aquecimento global", relaciona. 

Morgana Almeida, meteorologista do Instituto Nacional de Meteorologia (Inmet), explica fatores meteorológicos que se somaram e resultaram no volume de precipitações registrado. "Em termos de grande escala o papel dos oceanos é destaque", pontua.

  • Influência do El Nino (aquecimento da superfície do Oceano Pacífico tropical), que embora tenha tido seu ápice em dezembro/janeiro, ainda teve seu papel nas chuvas no RS;
  • Cenário de bloqueio na porção central do Brasil, impedindo que as frentes frias se deslocassem além da região sul; 
  • Temperatura ainda elevada no Pacífico central e praticamente todo o oceano Atlântico na faixa tropical aquecido.

"Em termos de escala sinótica — escala espacial menor e que utilizamos para acompanhar os sistemas meteorológicos de grande variação temporal e espacial —, havia um cenário de bloqueio na porção central do Brasil, impedindo que as frentes frias se deslocassem além da região sul", relaciona a meteorologista. 

Resumindo, todo o fluxo de calor e umidade ficou canalizado sobre o estado gaúcho entre no período de 29 de abril a 3 de maio. Ela destaca ainda que houve um grande volume de chuva durante muitos dias em uma área relativamente ampla. "Ou seja, um volume excepcional em toda a bacia hidrográfica", diz.

O doutor em recursos hídricos Anderson Ruhoff, professor no Instituto de Pesquisas Hidráulicas (IPH) da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), explica que, embora tenha sido um evento extremo, "existe uma necessidade muito grande de investimentos de prevenção".

"O Estado não é equipado com uma estrutura de prevenção de enchentes. Falta um sistema mais robusto de monitoramento, que transforme essa chuva que foi prevista pelos modelos, por exemplo, em vazão nos rios", detalha.

"O Rio Grande do Sul vai precisar investir muito na questão da recuperação da infraestrutura, especialmente de transportes, mas também de energia e abastecimento de água. Deve haver uma demora considerável para que as coisas voltem a um nível mínimo de normalidade", prospecta Anderson Ruhoff.

Ceará vai arrecadar alimentos e itens de higiene para o RS

O governador do Ceará, Elmano de Freitas (PT), anunciou ontem o lançamento da campanha "Força Solidária Rio Grande do Sul". Quartéis do Corpo de Bombeiros de 18 municípios do Estado serão pontos de doação e estarão recebendo alimentos não perecíveis e enlatados, água potável, kits de higiene pessoal e kits de cama, mesa e banho.

De acordo com o governador, uma mensagem já foi enviada à Assembleia Legislativa do Ceará e foi autorizado que o Governo do Ceará possa comprar, arrecadar e fazer chegar a ajuda até o RS. Serão enviadas 66 toneladas de alimentos e 10 mil litros de água potável e tratada. Um helicóptero cearense e cerca de 100 profissionais do Estado já estão em terras gaúchas para ajudar nos resgastes.

"A solidariedade da população cearense já se manifestou para levar essa ajuda. Em vários locais onde temos Corpo dos Bombeiros, você pode entregar o material, que nós vamos levar", afirmou o governador. "Precisamos ser sensíveis e solidários ao povo gaúcho".

A vida no RS e a preocupação com o clima

Viver uma situação climática de calamidade pública sempre me pareceu algo muito distante. Durante 24 anos, morei em uma área privilegiada de Fortaleza e a ideia de que a chuva poderia ser algum tipo de ameaça era algo que ficava restrito às notícias na televisão. No cotidiano, sabia que o máximo que poderia acontecer era não sair de casa em algum momento durante um período de chuva mais forte. Eu não tinha noção de que isso é, na verdade, um grande privilégio. Quando comecei no jornalismo, comecei a me aproximar da realidade de pessoas que sofriam com a chuva, especialmente daquelas que viam a água subir e tomar todas as suas coisas nas comunidades mais carentes de Fortaleza.

Há dois anos, quando me mudei para Porto Alegre (RS), a preocupação com as adversidades do clima me fizeram ter preocupações reais. Ciclones, ondas de calor, quedas bruscas na temperatura passaram a fazer parte do que eu tinha que incluir nas minhas pesquisas diárias, normalmente antes de dormir e ao acordar. Na última segunda-feira (06/05), diante de toda a tragédia que já tirou a vida de quase uma centena de gaúchos (95 enquanto escrevo esse texto), precisei sair de casa. Meu bairro foi considerado área de risco pelo avanço das águas e a Prefeitura pediu para que todos os moradores deixassem a região. Nessa quarta-feira (08/05), a água que vem do rio Guaíba já ocupa toda a quadra da minha rua e ainda há possibilidade que o nível suba mais.

Após esse momento pessoal de desespero, já que agora estou mais seguro, não consigo parar de pensar na injustiça climática. A falta de políticas públicas de habitação, planejamento urbano, distribuição de renda e acesso a saúde e saneamento básico prejudicam os mais pobres, que estão longe de ser os responsáveis pela degradação ambiental que impacta diretamente em efeitos climáticos como esse. A onda de solidariedade formada no Rio Grande do Sul, em outros estados brasileiros e até mesmo países é fundamental para que vidas sejam salvas e a destruição seja atenuada. Entretanto, o que realmente pode fazer a diferença para prevenir desastres parecidos com esse é o que faremos a partir do momento que a água baixar. (Leonardo Maia, jornalista no Governo do Estado do Rio Grande do Sul)

Políticas precisam pensar nas pessoas e priorizar defesas civis

As políticas públicas que devem estruturar as defesas civis municipais, garantir equipamentos, conseguir prevenir, alertar e acolher a população sobre desastres naturais precisam estar centradas nas pessoas. Do rádio amador - muitas vezes única comunicação possível - ao aparelho meteorológico de última geração.

"Não é só adquirir mais radares, pluviômetros e outros equipamentos de medição ambiental. Precisamos pensar nas pessoas, que são de grupos sociais diferentes, que podem ter deficiências que limitem ouvir uma sirene ou ter acesso a uma rede de informação. Precisamos pensar no sistema de alerta a partir de uma visão de política pública", afirmou o pesquisador do Centro Nacional de Monitoramento e Alertas de Desastres Nacionais (Cemaden), Victor Marchezini.

Conforme ele, há ainda a falta de estrutura comum às defesas civis municipais. Victor informa que pesquisa feita com 1.993 defesas civis de municípios brasileiros constatou a precariedade dos órgãos: 72% não tinham orçamento próprio, 30% não tinham computador, 67% não tinham viatura e 59% eram compostos por apenas uma ou duas pessoas. "Como se vai fazer fiscalização de áreas sujeitas a inundações e deslizamentos? Como se vai fazer o trabalho preventivo na comunidade?", questiona.

A falta de material é reforçada pela falta de prioridade dada a este segmento do serviço público, de acordo com o pesquisador. "O tema prevenção passa a ser só da defesa civil, quando ela existe, e não é apropriado por outros setores do governo municipal, como planejamento urbano, assistência social, saúde, educação", afirma.

Nessa lógica, embora haja muita capacidade dos órgãos estaduais e nacionais de monitoramento, quando o alerta chega ao município, pode não haver articulação suficiente para saber quais os locais seguros e a capacidade de deslocamento da população. "Não existe um único fator que causa um desastre, é sempre um conjunto de fatores. O clima faz parte do meio ambiente e se não há instituições que melhorem a sustentabilidade dos territórios, os problemas vão aumentando. Quando tem um evento de chuva como esse do Rio Grande do Sul, todas as vulnerabilidades acumuladas vão se revelar".

Outro dado que desnunda a pouca atenção dada à gestão de emergência das cidades: menos de 15% têm plano municipal de redução de riscos de desastres, conforme o IBGE. "A dimensão de planejamento, orçamento e profissionalização precisa ser aperfeiçoada. E não é uma realidade só do RS, mas do Brasil inteiro". (Sara Oliveira)

Passa de 100 o número de mortes confirmadas

Já chega a 105 o número de pessoas mortas em consequência das fortes chuvas que atingiram o Rio Grande do Sul ao longo da última semana. A Defesa Civil do estado informou que dois óbitos são investigados para determinar se foram causados por efeitos adversos das chuvas, como enxurradas, enchentes, inundações, deslizamentos e desmoronamentos.

De acordo com a Defesa Civil, há pelo menos 130 pessoas desaparecidas e 374 pessoas feridas. O boletim divulgado na noite de ontem informa que cerca de 1,47 milhão de pessoas já foram afetadas pelas consequências das chuvas em 425 municípios, o que corresponde a 85,5% das 497 cidades gaúchas.

Há 163.786 desalojados - pessoas que tiveram, em algum momento, que buscar abrigo nas residências de familiares ou amigos. Muitas delas esperam o nível das águas baixar para voltar para casa. E 67.428 pessoas ficaram desabrigadas, precisaram se refugiar em abrigos públicos municipais.

Meteorologistas preveem que parte do estado deve voltar a ser atingido por chuvas intensas e fortes rajadas de vento. Segundo o Centro de Hidrografia da Marinha, a faixa litorânea entre as cidades de Chuí, no Rio Grande do Sul, e Laguna, em Santa Catarina, pode ser afetada pela passagem de uma frente fria, com ventos de até 88 quilômetros por hora.

A partir de hoje, a previsão é de tempo frio e seco na maior parte do estado. As temperaturas devem cair, chegando a 4 graus Celsius (ºC) nas regiões mais frias. Em Porto Alegre, a mínima deve ser de 12ºC, conforme o Instituto Nacional de Meteorologia (Inmet).

A Defesa Civil do Rio Grande do Sul emitiu um alerta para que pessoas resgatadas de áreas atingidas pelas chuvas não retornem a estes locais. "O solo dessas localidades ainda está instável, com o terreno alagado e perigo de deslizamentos", disse a tenente Sabrina Ribas, da comunicação da Defesa Civil. "Em toda situação em que for identificado algum risco para a população, articularemos com o Poder Público municipal para que adotem as medidas previstas nos planos de contingências". (Rubens Rodrigues. Com Agência Brasil)

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