"Requalificação" e "urbanização" têm sido duas palavras muito frequentes na boca de prefeitos e governadores, nos últimos anos. Pontos turísticos, como a Ponte dos Ingleses e lugares mais frequentados por moradores, como o Parque Rachel de Queiroz, recebem a promessa de se tornarem mais seguros, convidativos à frequentação e, por consequência, úteis à cidade.
Diversas discussões podem ser levantadas sobre estas propostas. Elas foram desenvolvidas ouvindo a comunidade? Há risco de descaracterizar espaços de memória afetiva? Podem resultar em gentrificação? São questionamentos válidos. Há também exemplos positivos: o calçadão do Beira-Rio, na Barra do Ceará, é bem avaliado.
Na Feira da Parangaba, o conflito envolvia transformar a área à beira da lagoa em algo totalmente distinto. Ela virou uma praça com quadra, pista de skate, brinquedos infantis, academia ao ar livre... E um grande espaço inerte, com piso de tijolos, árvores espaçadas, poucos bancos e nenhuma parte coberta que permita se abrigar do sol da Capital.
Na margem oposta, uma rua passou a ser fechada, aos domingos, para abrigar os feirantes. Não há casas neste trecho. Os comerciantes têm onde trabalhar, ninguém perde acesso à própria residência, a requalificação foi realizada, todo o mundo ganha, correto?
Não exatamente. Houve avanços: os feirantes agora são cadastrados na Prefeitura; há banheiros públicos para os frequentadores; e, acima de tudo, a Feira da Parangaba, que gera centenas de empregos, não precisou acabar.
Foi um processo muito mais harmonioso, por exemplo, que o da Feira da Madrugada, no Centro. Lá, o conflito só foi pacificado após um ambulante ser morto pela Guarda Municipal de Fortaleza (GMF).
Na Feira da Parangaba, os vendedores têm uma série de queixas desde a troca de local. A principal é a falta de espaço, apresentada já na primeira semana após a transferência. A extensão da rua liberada para as barracas não comporta a quantidade de comerciantes.
Outra reclamação é a visibilidade. A feirante Rocimeire Maciel, que há dez anos vende roupas, pontua que o fluxo diminuiu. Segundo ela, muitas pessoas, no caminho para os terminais de ônibus Parangaba e Lagoa, passavam em frente às barracas e decidiam fazer compras.
Ela também reclama do próprio formato da feira. "Antigamente, se entrava por todo canto, saía por todo canto. Agora, só tem duas entradas e duas saídas", afirma.
Rosa Valentim, que vende verduras e legumes também há uma década, reclama que a estrutura física deixa a desejar. "Enche de água aí quando chove", afirma, apontando para uma boca de lobo, "ninguém vende nada". Segundo ela, devido ao lamaçal e ao esgoto que transborda, os clientes vão embora ao primeiro sinal de tempo fechado.
O POVO procurou a Secretaria Executiva Regional (SER) IV (responsável pela área onde fica a feira), da Prefeitura, e a Cagece, do Estado, perguntando sobre a drenagem e o esgoto na rua. Ambos os órgãos afirmaram ter visitado o local após o contato. A SER IV pontuou que os técnicos desobstruíram as bocas de lobo, enquanto a Cagece disse que o escoamento na região está "funcionando normalmente".
Apesar dos problemas, a Feira da Parangaba segue vibrante. Quando O POVO chegou ao cruzamento Joaquim Moreira x Carneiro de Mendonça, não parecia um domingo às 7h30min. De um lado, com uma caixa de som, um vendedor anunciava produtos — "elástico para levar seus cacarecos na bicicleta" — e os dos colegas ao redor — "Duas chinelas por dez reais, uma para o pé direito, outra para o pé esquerdo".
Na esquina oposta, feirantes sem equipamentos sonoros usavam a garganta. Neste primeiro trecho, predominam utensílios domésticos e miudezas. A poucos metros da entrada, um homem ofertava, sobre uma lona no chão, ferramentas de trabalho pesado: furadeiras, lixadeiras, uma motosserra.
Continuamos o trajeto e chegamos aos animais. Primeiro os vivos: galinhas (e galos), capotes, gansos, patos e aves menores, vendidas como pets. O nome popular do local já acusa: a Feira dos Pássaros de fato vende pássaros. E outros animais: coelhos, filhotes de cachorro e peixes. Muitos peixes. Cerca de uma dúzia de feirantes exibiam animais aquáticos em sacolas plásticas, garrafas ou aquários.
Mais à frente ficam eletrônicos, como celulares e videogames. Vendidos por apenas três ou quatro feirantes, anos atrás os consoles eram atrativo do local para não tinha condições de comprar nas lojas.
Na calçada oposta à lagoa não há marcações no chão para feirantes credenciados, e era comum ver vendedores ocasionais, com objetos usados. Havia disjuntores, canos de PVC, roupas e brinquedos, entre outros. É comum, nestes casos, ofertar trocas — há quem vá à Feira da Parangaba apenas para isso.
As barracas de hortifrúti são, em sua maioria, concentradas na parte seguinte, que lembra feiras menores, de bairro. Pontualmente, há alguns vendedores de vegetais nas outras "seções".
Também há vendedores de carne e peixe — cortados na hora, como manda a tradição — e pequenas lanchonetes. Em algumas, é possível pagar pela fritura do peixe recém-comprado. Ao lado, um barulho alto de motor: um moedor de cana produz caldo fresco — vendido com pastel, seguindo os costumes das feiras.
Na última parte da feira ficam a maioria das barracas de roupas — embora estas também apareçam pontualmente em outras partes. Distante mais de 700 metros da entrada principal, este trecho era o mais calmo, com comerciantes ainda terminando a montagem das barracas.
A esta altura, já estávamos há quase uma hora, desde a avenida Carneiro de Mendonça, na feira. Aqueles que iam ao local somente para fazer compras, creio, se detinham ainda mais ao longo do caminho, e ainda demorariam a chegar aqui.
Voltamos a esta parte por volta das 9 horas, mas o fluxo ainda era fraco. Quase todos os (poucos) clientes vinham da entrada na rua Vila Lobos, menos movimentada. A reclamação da feirante Rocimeire, ao que tudo indica, tem embasamento.
A Feira da Parangaba persiste como um dos maiores comércios populares de Fortaleza. A mudança de local tornou a situação mais difícil, mas a feira persiste.
A localização antiga, por sua vez, é uma imensa área subutilizada. Deixo ao leitor que decida: valeu a pena deslocar todos estes trabalhadores para construir uma praça que está sempre vazia?
Aos domingos, a paisagem da lagoa de Messejana, espelho d’água que emoldura a maior estátua de Iracema de Fortaleza, muda seu contorno com diferentes formas, cheiros, sons e cores: é a Feira da Messejana, um conjunto de polimorfismos, polifonias e polissemias que fortalece a autonomia do bairro-pólis; uma cidade à parte.
Considerada a maior feira popular da Capital, ela começa junto ao Mercado Público de Messejana e se estende ao redor da lagoa até a praça que fica nas proximidades da Rodoviária de Messejana, por onde chegam viajantes à Cidade.
Feira de Messejana
Assim como outros comércios populares, esse nem sempre foi seu endereço; e, tal como os outros, esse também não é seu único nome: Feira dos Cacarecos, Feira do Rolo e Feira do Malandro são algumas das alcunhas pelas quais atende.
O primeiro é uma referência ao “de tudo um pouco” que é o chamariz das feiras livres, uma alternativa ao comércio formal que oferece ao consumidor produtos diversos a preços acessíveis; já os outros dois referem-se à prática do rolo, sistema de trocas informais, e ao estigma da malandragem que habita esse que é um dos bairros mais populosos de Fortaleza Situado ao sudeste de Fortaleza, Messejana é um dos bairros mais populosos e conhecido por sua autonomia, não à toa ser considerado uma cidade à parte, contíguo à Região Metropolitana (RMF). Localizado na periferia, faz divisa com os bairros Cajazeiras, Parque Iracema, Cambeba, José de Alencar, Curió, Guajeru, Coaçu e Paupina, abrigando uma população estimada em mais de 41 mil pessoas. e fica na periferia.
Fato é que o evento dominical para feirantes e frequentadores há pelo menos 80 anos já se tornou parte da cultura local. Uma vez dentro, mesmo que esteja certo de que não precisa de nada, algo há de lhe interessar: frutas e verduras, carnes, confecções, calçados, miudezas, artigos de mobiliário, novos e usados, ferramentas, produtos de limpeza e higiene pessoal, bicicletas e acessórios para a bike, produtos automotivos, pássaros, artigos de pescaria e o que mais se possa imaginar.
A montagem das barracas começa bem cedo, entre 3 e 4 horas da madrugada — porque às seis já tem cliente. “Ao invés de ir ao Centro, venho aqui na feira da Miss Jane”, brinca uma jovem enquanto separa as bananas que vai levar. Não antes sem pechinchar por um desconto: “Faz quatro por cinco (reais)?”.
Pelo labirinto de barracas coloridas exala o aroma dos temperos de nome poético como a pimenta do reino ou a dedo-de-moça, das frutas e do “Doutorzinho”, o famoso gel para massagem.
O cheiro verde faz inspirar bem forte só para respirar sua cor de esperança — que logo muda a paleta e vira odor de peixe, mas também não demora a tornar-se cheiro de comida fresca.
O ► som de feira é acompanhado pela música que varia à medida em que se caminha, às vezes com uma disputa de caixas de som entre os dois gêneros que mais prevalecem: brega e forró.
Clássicos que combinam com a dose de choro engolida com a cachaça que dona Vera já começa a servir às 8 da manhã — até antes; vai do freguês. “Meu fi, hoje é domingo, graças a Deus”, lembra um senhor.
Se não vender pela qualidade da trilha sonora — a placa anuncia o pendrive com mil músicas gravadas (forró, dance, brega, pagode, sertanejo, seresta, rock, hip-hop, Jovem Guarda, gospel, clássicas, internacional, funk, reggae, MPB) —, certamente a qualidade do aparelho sonoro vai atrair clientes. Não pode é sair sem comprar.
“Minha filha, você rodando aqui, você encontra cada curiosidade que dá uma novela. Todo dia tem uma coisa diferente. Tem gato, pinto, galinha, cacareco, vidro de perfume seco, você fica abismado. Botijão de gás, bicicleta, celular, tudo o que você imaginar”, conta a feirante Aurênia, dona de um quiosque de comida.
Ela explica que a feira voltou ao funcionamento normal há pouco tempo, depois que a Prefeitura finalizou as obras de requalificação no entorno da lagoa.
“Eles entregaram em janeiro, ficou bom o calçamento, mas pode rodar que você não encontra um banheiro. E outra, a estrutura lá do Mercado não aguentou nem a primeira chuva. Fizeram a gente sair pra ver se acabava com a feira, mas a gente ficou. A gente já perdeu ali, se saísse daqui ia perder também. Quando era do outro lado era melhor, porque dava acesso a quem vinha do terminal. Aqui o movimento é bem menor. Enfraqueceu muito com essa mudança”, relata.
“Mudou pra cá, depois foi pro terminal, depois voltou pra cá, daqui botou pra lá de novo. Já rebolaram a gente pra todo canto. Mudou muito o movimento, a situação financeira do povo, acho que o que não muda é só a ruma de coisa que tem aqui. Gosto de trabalhar aqui por causa disso, essas figuras que aparecem de vez em quando, as conversas, as amizades, o movimento. São 20 anos servindo caldo de peixe, panelada, arroz, cuscuz, sarrabulho pra esse povo”, diz.
No ritmo frenético, não há como “atalhar” ou “empaiar” ninguém para entrevista — a conversa tem de ser em movimento mesmo. Todas acontecem enquanto os feirantes despacham um cliente, trocam dinheiro para um colega ou organizam suas mercadorias.
— Tá com raiva hoje?
— Não, senhor, esse é meu jeito mesmo. Muita gente me faz essa pergunta que o senhor me fez agora.
O diálogo acontece entre seu Luciano Pedro e um cliente da Banca do Bem, onde vende “tudo em ferramentas” há mais de 20 anos com o bom humor de quem trabalha com atendimento ao público de domingo a domingo: “Faço no São Cristóvão, Palmeiras, Sítio São João, Santa Maria e aqui”.
“Criei meus filhos tudo com o dinheiro dessas feiras, me aposentei e não consegui deixar (as feiras). Aquela coisa que você faz e gosta, sabe? A minha profissão é essa. Gosto de trabalhar onde tem gente, movimento. O nosso dinheiro tá nos bolsos desse pessoal aí. Se a gente não souber falar com o freguês, vai embora e o dinheiro vai junto”, expressa.
Além da variedade de produtos, é possível encontrar serviços diferenciados. Fabiano Leitão aprendeu a fazer corte de cabelo e design de barba há mais de 20 anos, num curso que participou enquanto estava detido. Desde que saiu da prisão, trabalha como barbeiro e cabeleireiro numa parte da feira voltada aos cuidados com a beleza.
“Acompanhei essas mudanças de lugar tudo. Cheguei a ter um salão no José Walter, mas desestabilizei (financeiramente) e tô tentando estabilizar de novo. É assim a vida”, retrata.
Entre os clientes debaixo da mangueira, pessoas que só cortam o cabelo com ele e vão aos domingos na feira apenas para isso. “Se garante. A gente só faz com ele, eu e meu esposo”, enuncia uma cliente.
Um processo contínuo de embates, tensões e resistência marca o cotidiano e a história dessa feira popular, que vaga feito ambulante sem um lugar definitivo e vez por outra sofre com a ameaça de deixar de existir.
Neto é morador da Messejana e tem esse comércio na rotina desde a infância, quando ia com o pai “dar uma olhada nas bicicletas”. Já adolescente, passou a ir sozinho, “só para olhar mesmo e comprar alguma besteirinha”.
Depois de adulto, deixou o emprego como vigilante para vender antiguidades. Começou com alguns videogames e hoje tem uma loja “que você quase não consegue andar dentro de tanta coisa que tem”. Mesmo assim, não deixa a clientela da feira por nada.
Foi graças a ela que, junto com a esposa Ana Cláudia, uma feirante que trabalha com brechó, teve de onde tirar o sustento por décadas. Juntos, eles vendem em casa e também nas feiras do São Cristóvão e do Canindezinho.
“Hoje, graças a Deus, a gente não tem nenhuma mansão, mas tem uma casa muito boa, um carro. Tudo daqui”, conta. Durante a conversa, um cliente chega e, no meio da negociação, Neto faz uma pergunta cuja resposta diverte a todos:
— Você mora aqui na Messejana?
— Não, eu moro em Fortaleza! (risos)
Ao falar sobre as constantes mudanças, o feirante reflete: “Eu sou da época que a feira era em frente à pracinha onde tinha as caçambas. Já levaram e trouxeram a gente várias vezes, e tiram na marra mesmo. Nada contra política, mas o prefeito daqui também devia rever que nós também pagamos impostos. A partir do momento que eu compro uma água ali eu estou pagando um imposto”.
“Nós aqui não temos um banheiro químico. Um vereador botou na época da eleição, antes de terminar eles tiraram. As mulheres sofrem muito. Os homens em qualquer canto fazem, mas elas, não. Aqui tem meses que a gente não vê um policial. Direto tem confusão, porque você sabe, né, com bebida no meio. Aí quem paga o pato somos nós. Já caíram por cima de mercadoria minha brigando, já tive que apartar confusão. E a gente tem medo, porque já teve gente baleada por isso. Se alguém mexe com nossas mercadorias a gente não pode fazer nada. E a gente chega aqui é de madrugada pra montar as barracas e colocar as coisas. Fica perigoso”, observa.
Neto, que hoje é careca, brinca que iniciou quando o cabelo batia na cintura. Vizinho de dona Virgínia, viu Fernanda nascer, depois Ana Luiza: “Essa menina até pouco tempo ela andava na areia aqui da feira, nesse pedaço que hoje é pavimento, hoje ela já é mãe e tá aí ajudando a vó dela”. Quando termina de despachar outro cliente, esse de longa data, ele conta:
— Me esqueci o nome dele porque só chamo pelo apelido.
— E qual é?
— Coqueiro. Você já viu o tamanho dele?
“Ele é gaiato, é daqueles ricos mala. Diz que compra aqui pra terapia, ele pega os produtos e restaura só por hobbie, porque se aposentou e era muito elétrico, aí não sabe ficar parado. Agora tá pensando em abrir uma lojinha na Cidade dos Funcionários pra passar o tempo, porque a mulher dele já está brigando por acumular coisa demais no apartamento. Aí ele quer comprar as coisas bem baratinho pra revender lá”, comenta.
“Eu boto aqui e não tem esse valor todo, não, mas se eu botar lá na Beira-Mar tem. Uma peça que eu vendo aqui por 150 (reais), lá eu vendia por 350. E os turistas pagavam. Só que quando eu fui vender lá quem me tirou foi a Guarda Municipal, como se eu não fosse nem gente”, acrescenta.
O comerciante acredita que “pelo prefeito, até pelo governo, se pudesse acabar com essa feira aqui já tinham acabado”.
“Ano passado ameaçaram de tirar a gente daqui. Mas a Feira do Malandro já é uma parte histórica de Fortaleza, não acaba, não. Não pode acabar. É a mesma coisa que fizeram com a caixa d’água da Messejana, que demoliram quando ainda tinha condição de recuperar. Ainda tenho lembrança da caixa d’água quando eu era pequeno, me lembro dela todinha bem direitinho”, reivindica.
“A gente precisa de uma pessoa que fale pela gente lá dentro. E vocês (jornalistas) são a nossa voz. Porque vocês falando, aí o prefeito, o governador, vai ver com outros olhos. Que aqui é gente também, e eles precisam da gente. Eu sei que a sua voz vai longe. Vai chegar a outros feirantes também. O que eu estou lhe passando é a mais pura verdade do que eu vejo acontecer aqui há 25 anos”, finaliza.