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Pefoce estaria cometendo infração ética por examesem prédio de delegacia
Reportagem

Pefoce estaria cometendo infração ética por examesem prédio de delegacia

| Imbróglio | Norma do Conselho Federal de Medicina foi criada para resguardar autonomia do médico perito em exames, evitar interferências, pressões ou distorções. Prédio chegou a ser inspecionado pelo Conselho Regional de Medicina
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Fachada do imóvel onde funcionam o Núcleo de Atendimento ao Custodiado da Perícia Forense (Nuac-Pefoce) e a Vara de Audiências de Custódia de Fortaleza (Foto: CLÁUDIO RIBEIRO)
Foto: CLÁUDIO RIBEIRO Fachada do imóvel onde funcionam o Núcleo de Atendimento ao Custodiado da Perícia Forense (Nuac-Pefoce) e a Vara de Audiências de Custódia de Fortaleza

 

 

A Resolução nº 1.635/2002 do Conselho Federal de Medicina (CFM), em seu artigo 1º, é específica e direta: “É vedado ao médico realizar exames médico-periciais de corpo de delito em seres humanos no interior dos prédios e ou dependências de delegacias, seccionais ou sucursais de Polícia, unidades militares, casas de detenção e presídios".

Vigente desde maio de 2002, a regra definida para preservar a autonomia do médico perito de eventuais distorções, pressões ou constrangimentos e para preservar a prova técnica, lança dúvidas sobre uma possível irregularidade, de infração ética, no funcionamento do Núcleo de Atendimento ao Custodiado (Nuac), unidade da Perícia Forense do Ceará (Pefoce) situada no Centro de Fortaleza.

O Nuac coexiste num mesmo imóvel onde estão as sedes da Delegacia de Capturas e Polinter (Decap), da Polícia Civil, e a Vara de Audiências de Custódia de Fortaleza, do Tribunal de Justiça do Ceará (TJCE). No Núcleo são realizadas perícias médico-legais em pessoas detidas pelas polícias Civil e Militar e também exame de custódia em presos transferidos.

Os três órgãos são distintos, cada um com entrada principal própria, entre as ruas Antônio Pompeu e Conselheiro Tristão, mas são interligados nos ambientes internos por portas, corredores e escadarias. O estacionamento da Decap também permite os acessos. Todo o imóvel, até meados da década passada, sediava somente a Delegacia de Capturas.

O Nuac hoje é um anexo no andar térreo do imóvel, mas o atendimento pericial já chegou a funcionar, por entre 2017 e 2019, no mesmo andar superior onde estão as celas do xadrez da Decap. Era uma sala pericial diferente da atual, que só foi inaugurada oficialmente em 2022. A realidade, mesmo tendo recebido ajustes, ainda é questionada com base na Resolução do CFM. A situação foi denunciada ao O POVO por um grupo de médicos, que pede para não ser identificado pelo temor de represálias.

Quando a perícia médico-legal funcionava no andar das celas da Decap, a separação até então era apenas por um corredor em “L”, a menos de 20 passos de distância. Por dentro do imóvel, além das plaquetas nas portas, a diferenciação de cada órgão é apenas por linhas imaginárias.

Fachada do imóvel onde funcionam o Núcleo de Atendimento ao Custodiado da Perícia Forense (Nuac-Pefoce) e a Vara de Audiências de Custódia de Fortaleza(Foto: CLÁUDIO RIBEIRO)
Foto: CLÁUDIO RIBEIRO Fachada do imóvel onde funcionam o Núcleo de Atendimento ao Custodiado da Perícia Forense (Nuac-Pefoce) e a Vara de Audiências de Custódia de Fortaleza

Em maio de 2022, a perícia mudou-se para o ambiente anexo, no andar térreo do imóvel. A sala passou a ser utilizada pelo atendimento da Defensoria Pública do Ceará. Atualmente, ao lado desta sala ainda é feita a análise de biometria, com sistemas que ajudam a confirmar identidades e tentar evitar casos de homônimos.

Na rotina atual, se um preso é destacado por um delegado ou pelo magistrado da Vara de Custódia para a perícia médico-legal, ele é conduzido por um policial apenas atravessando um corredor, uma escadaria e um pátio interno, antes de acessar o Nuac por uma porta nos fundos do anexo.

A situação é sutil, mas não seria descartável numa interpretação da norma do CFM como infração. “Aqui é um mesmo prédio, sim. É uma coisa só, tudo interligado”, afirmou um policial ao O POVO no local.

Preso sendo conduzido para audiência de custódia(Foto: FÁBIO LIMA)
Foto: FÁBIO LIMA Preso sendo conduzido para audiência de custódia

Em outubro de 2019, a Comissão de Fiscalização do Conselho Regional de Medicina (Cremec) chegou a fazer duas visitas ao local, nos dias 1º e 18 daquele mês, para inspecionar as instalações e o possível descumprimento à norma do CFM. As informações colhidas constam no Relatório de Fiscalização 598/2019.

À época, a situação teria dividido a gestão do Cremec sobre autuação rigorosa para o caso. O cenário encontrado foi considerado como muito grave. O POVO apurou junto a fontes médicas que, na apresentação do relatório de fiscalização, foi cogitada a interdição imediata do Nuac.

Diante das irregularidades graves constatadas, a ideia de proibir o serviço médico no local teria sido discutida pela diretoria, porém a decisão tomada foi apenas a de indicar ajustes na estrutura. A mudança da sala, do andar superior para o térreo, teria partido deste acerto. A sala esteve fechada para readequações por alguns meses, até haver a (re)inauguração no espaço atual, em 2022.

Sala de exames do Núcleo de Atendimento ao Custodiado da Perícia Forense (Nuac-Pefoce)(Foto: CLÁUDIO RIBEIRO)
Foto: CLÁUDIO RIBEIRO Sala de exames do Núcleo de Atendimento ao Custodiado da Perícia Forense (Nuac-Pefoce)

A sala do Nuac de hoje é simples, pequena. Tem apenas birô, o computador para o registro médico. Não há maca ou leito. O custodiado é examinado de pé ou sentado em cadeira. A avaliação é inspecional. Não há aparelhos e equipamentos usados em rotinas de perícias médicas. A recepção, que antecede o consultório, tem uma funcionária.

O POVO apurou que de 5 a 10 presos são atendidos diariamente no Nuac. O expediente do médico perito é geralmente pela manhã, turnos de seis horas, em escalas definidas pela Pefoce.

A reportagem percorreu os ambientes do imóvel em meados de abril. Chegou a acompanhar uma audiência de custódia. O custodiado, de 19 anos, havia sido preso em flagrante na noite anterior, após uma tentativa de assalto a uma farmácia no Conjunto José Walter. Junto com o acusado, foi apreendida uma escopeta e uma moto roubada. Ele não relatou ter sofrido violência no ato da prisão. O outro envolvido no crime havia sido morto em troca de tiros com a Polícia Militar.

 

 

Fiscalização do Cremec fez duas vistorias no imóvel; órgão não respondeu ao O POVO

“As duas repartições estão situadas no mesmo prédio onde originalmente funcionava somente a Decap (Delegacia de Capturas). A despeito de terem sido feitas algumas reformas para adequação dos espaços físicos para as duas instituições, constatou-se claramente que ambas estão intimamente interligadas , com fácil tráfego entre as dependências das mesmas. Havendo inclusive áreas comuns — estacionamento pátios, corredores internos”.

Este é um trecho do relatório nº 598/2019, elaborado em outubro de 2019 pela Comissão de Fiscalização do Conselho Regional de Medicina (Cremec), a partir da vistoria feita nas dependências do imóvel onde também funcionava a sala de perícia médica-legal e a Vara de Audiências de Custódia de Fortaleza.

O POVO teve acesso ao teor do documento, com alguns pontos reproduzidos textualmente, que indicam a interligação permanente, no mesmo imóvel, do Núcleo de Atendimento ao Custodiado (Nuac), da Perícia Forense do Ceará, com a Delegacia de Capturas e a Vara de Custódia de Fortaleza.

Sede do Conselho Regional de Medicina do Ceará (Cremec) (Foto: Mauri Melo/ O POVO em 9/11/2016)
Foto: Mauri Melo/ O POVO em 9/11/2016 Sede do Conselho Regional de Medicina do Ceará (Cremec)

Noutro ponto, mais indicações no relatório de que os acessos entre os órgãos distintos são facilmente compartilhados entre quem transita no local: “A Decap tem sua entrada pela (rua) Conselheiro Cristão, já a Vara de Custódia tem sua entrada pela Antônio Pompeu. Ambas com acessos principais distintos. De fato, tem as duas fachadas, mas o estacionamento é comum e a passagem interna que permite o trânsito livre. (...)De forma mais detalhada, percorrendo as dependências das instituições, compartilhado entre ambas existe um portão com grade de ferro que permite o acesso livre entre elas.”

O POVO procurou o Cremec sobre as vistorias de fiscalização feitas e o desfecho dado, mas não recebeu resposta. Ou, melhor: o órgão prometeu responder, mas não o fez. No dia 3 de abril deste ano, O POVO pediu oficialmente o acesso à íntegra do relatório 598/2019, do Cremec, que descrevia “não-conformidades” nas dependências do imóvel.

A reportagem solicitou o documento ao Cremec tanto por demanda enviada à assessoria de imprensa do órgão, por email, como em protocolo aberto no Sistema Eletrônico do Serviço de Informações ao Cidadão (e-SIC).

Cremec mantinha como "prorrogada" a situação do pedido de informações feito pelo O POVO sobre vistoria feita no Núcleo da Pefoce(Foto: reprodução)
Foto: reprodução Cremec mantinha como "prorrogada" a situação do pedido de informações feito pelo O POVO sobre vistoria feita no Núcleo da Pefoce

O pedido no e-SIC foi registrado com o nº 24.6000003231-0. No dia 3 de maio, segundo o site do Cremec, a análise do pedido foi “prorrogada”. A justificativa dada é que estaria “ainda em processo de análise e discussão, junto à Diretoria do Cremec”. O novo prazo seria dentro de dez dias.

A resposta não foi cumprida no tempo prometido. Até o dia 4 de junho, o pedido ainda constava no sistema e-SIC com a situação “prorrogada”. O POVO registrou a reclamação. O atendimento deveria funcionar semelhante à Lei de Acesso a Informações (LAI), com tempo determinado para resposta.

Entre os vários contatos feitos pela reportagem, por ligações ou troca de mensagens, a informação dada foi de que a demanda entraria “na próxima pauta de reuniões” da diretoria do órgão. Esse retorno direto por telefone aconteceu pelo menos duas vezes, o que depois não se confirmou.

Uma assessora da presidência do Conselho disse que a demora seria por temas “mais emergenciais” que teriam tomado o lugar na pauta de discussões. Segundo ela, não teria como apontar quando o assunto seria avaliado.

 

 

Funcionamento começou em 2017, mas inauguração só ocorreu em 2022

O Núcleo de Atendimento ao Custodiado (Nuac) da Perícia Forense começou a funcionar ainda em 2017 no endereço atual, no Centro da Capital. Na mesma época em que a Vara de Audiências de Custódia deixou a sede do Fórum Clóvis Beviláqua, onde existia desde 2015, e se mudou para o imóvel da rua Antônio Pompeu, em agosto daquele ano. Apesar disso, o Nuac só foi registrado oficialmente cinco anos depois.

A inauguração, em 11 de maio de 2022, foi feita em solenidade pela Secretaria da Segurança Pública e Defesa Social do Estado (SSPDS), a quem a Pefoce é vinculada. A própria divulgação do evento exaltava que “a escolha do local foi um ponto estratégico”, pelos órgãos policiais, judiciários e de perícia médica num mesmo endereço.

Sala de audiências de custódia(Foto: FÁBIO LIMA)
Foto: FÁBIO LIMA Sala de audiências de custódia

“Nós temos aqui Polícia Civil, Polícia Militar, Perícia Forense, Justiça, Ministério Público, OAB, ou seja, todos esses órgãos atuando no mesmo local. Esse espaço é uma referência de integração e tem como objetivo contribuir para um Ceará melhor, buscando que se faça justiça, investigação de qualidade, sempre respeitando as garantias e direitos fundamentais”, discursou à época o então titular da SSPDS, Sandro Caron.

A ideia de criação do Núcleo, na justificativa divulgada por SSPDS e TJCE, foi para dar celeridade às perícias, reduzindo a necessidade de deslocar o preso até a sede da Pefoce na avenida Leste Oeste. O exame feito no Nuac tem caráter inspecional, serve para atestar se há lesões ou qualquer violência sofrida a partir do momento da prisão. O exame serve de prova técnica para confirmar a integridade física do preso. 

 

 

O que dizem a Perícia Forense e o Tribunal de Justiça

A Perícia Forense do Ceará (Pefoce) nega que esteja havendo infração ética no funcionamento do Núcleo de Atendimento ao Custodiado (Nuac), por dividir espaço no mesmo imóvel onde também funcionam a Delegacia de Capturas da Polícia Civil (Decap) e a Vara de Audiências de Custódia de Fortaleza.

"Os atos médicos executados no Nuac não afrontam a resolução do Conselho Federal de Medicina 1.635/2002, ou qualquer outra publicada pela autarquia, considerando não se tratar o núcleo de uma delegacia, seccional ou sucursal de polícia, unidade militar, casa de detenção ou presídio", respondeu a Pefoce, em nota.

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A Pefoce pontuou que "o local é destinado exclusivamente para realização das perícias médicas e não dispõe de cárcere ou de qualquer equipamento privativo de liberdade". O órgão também destacou que "o imóvel onde está localizado o Nuac é de administração exclusiva e autônoma da Pefoce e, portanto, sem ingerência de qualquer outra vinculada da Secretaria da Segurança Pública e Defesa Social (SSPDS)". A Pefoce é vinculada à pasta.

As duas visitas de vistoria feitas pela Comissão de Fiscalização do Cremec, que resultaram no relatório 598/2019, ocorreram nos dias 1º e 18 de outubro de 2019. Conforme a Pefoce, "naquele período, a sala pericial se encontrava com localização e estrutura diversas das que compõem o Nuac atualmente".

A gestão da Perícia Forense sustenta que o Nuac "está localizado em endereço próprio, situado na rua Antônio Pompeu nº 260C, e foi inaugurado em 11 de maio de 2022.(...) O prédio é adjacente à vara judicial mencionada e possui vagas próprias de estacionamento, logo à frente do núcleo".

Estátua da Deusa da Justiça na recepção do prédio do Tribunal de Justiça do Ceará (TJCE)(Foto: Fco Fontenele/O POVO)
Foto: Fco Fontenele/O POVO Estátua da Deusa da Justiça na recepção do prédio do Tribunal de Justiça do Ceará (TJCE)

Já o Tribunal de Justiça do Ceará (TJCE), também por nota, informou que "reconhece a importância da conformidade regulatória" descrita na Resolução 1635/2002, do CFM. "Nesse sentido, tem buscado ativamente soluções em colaboração com o Poder Executivo para aprimorar as condições estruturais de todos os procedimentos relacionados às audiências de custódia".

O TJCE especificou que "o Nuac funciona em edificação vizinha à Vara Única Privativa de Audiências de Custódia", no número 260 da rua Antônio Pompeu. "É importante destacar que o ambiente adequado para o exercício dessas atividades judiciais está sujeito à colaboração e ação coordenada do Governo do Estado. As duas Instituições estão em diálogo para a eficácia dessas melhorias", ressaltou o TJCE.

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