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Como o desafio da sucessão "engole" a tradição no interior do Ceará
Reportagem

Como o desafio da sucessão "engole" a tradição no interior do Ceará

|Ofícios| Atividades tradicionais do interior cearense têm como desafio a sucessão. Condições de trabalho e baixa remuneração não atraem os mais jovens às profissões dos "enta"
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Carlos Andrei Faustino, 19, com o pai, Carlos André, em Jaguaruana
 (Foto: Júlio Caeser)
Foto: Júlio Caeser Carlos Andrei Faustino, 19, com o pai, Carlos André, em Jaguaruana

Foi-se o tempo em que, no interior do Ceará, a "tarefa" das crianças, depois da escola e antes do brincar, era aprender sobre o ofício dos pais. Para um dia obter dele o sustento da família e garantir a continuidade das tradições e do artesanato. Trançar a palha de carnaúba, criar vacas e caprinos para produção de leite e queijo, empunhar, tecer, e entrelaçar varandas de rede. Nada disso está nos planos dos mais jovens. São as profissões dos "enta", protagonizadas por pessoas com mais de 40 anos.

A sucessão rural é um desafio, que exige soluções inovadoras para questões que têm como pano de fundo falta de apoio aos produtores, desorganização entre eles, informalidade, machismo, inexistência de capital de giro e de capacitações que considerem — e mudem — a realidade. Acima de tudo, a desvalorização financeira: em Jaguaruana, terra das redes e que tem até Selo de Identificação Geográfica, uma mulher passa dias entrelaçando um par de varandas pelo qual só receberá R$ 4.

Um mapeamento feito pela Agência de Desenvolvimento Econômico (Adece) identificou Arranjos Produtivos Locais (APLs) em algumas cidades do interior cearense. O APL é definido como um conjunto de agentes econômicos, políticos e sociais, localizados em um mesmo território, com foco em um conjunto específico de atividades econômicas. Em 2021, pelo menos 1/3 dos APLs identificados pela Adece apontaram como um dos grandes desafios o desinteresse da juventude em continuar as atividades tão antigas e passadas entre gerações.

"Inovação e tecnologia é algo comum entre as demandas. E praticamente todos têm a questão da sucessão de negócios, destacando a governança fraca. O mapeamento pode fazer com que a expertise da atividade não se perca ao longo do tempo. Para trabalhar essa questão produtiva e potencializar o local para inibir a extinção da atividade por falta de interesse dos mais jovens", afirma Luana Bandeira, assessora técnica da Adece.

O POVO publica hoje a primeira reportagem de uma série sobre profissões tradicionalmente cearenses que podem, ao longo das próximas décadas, não ter mais mão de obra capacitada para fazer os pontos do artesanato na palha de Itaiçaba, produzir o queijo de Jaguaribe e Jaguaretama ou as redes de Jaguaruana, que ganham o mundo com detalhes de uma arte feita à mão e, em sua imensa maioria, por mulheres.

Arte na palha da carnaúba: dependência do sol e falta de apoio

Ainda era fim do "inverno", sol quente e nuvens carregadas, cenário nada perfeito para Conceição Falcão, 63, que precisava vigiar e correr para tirar as folhas de carnaúba que secavam no meio da rua de pedras. As folhas colhidas no carnaubal precisam ficar por até quatro dias sob o sol para depois ser matéria-prima na mão dos artesãos. "A chuva deixa a palha mole, aí não presta. Pode usar verniz para endurecer, mas não é todo cliente que quer", conta. O inverno então impõe severa sazonalidade à atividade.

Na varanda da casa de Conceição, várias bolsas no meio do processo produtivo, trabalho feito pela filha dela, Edvânia Falcão Rodrigues, 41, que se diz desiludida com o artesanato. "Só tem lucro para quem compra para revender, mas não para quem trabalha na mão de obra. Tudo aumentou, até a quantidade de palha que a gente leva no lombo. Mas o trabalho que a gente faz está do mesmo jeito, sem valorização", destaca.

A dinâmica de captação de matéria-prima e produção das peças de palha de carnaúba é extensa. Envolve diferentes atores e tem raiz indígena. Em Itaiçaba estima-se que cerca de 80% das famílias estejam envolvidas nas atividades com a palha, de forma direta ou indireta. A atividade secular passou a ser mais organizada na década de 1990, quando surgiu a Associação Comunitária das Mulheres Artesãs de Itaiçaba.

Quem a dirige é Cerzina Ferreira da Silva, 54. É ela também quem sabe sobre a importância de mostrar o que as mulheres produzem, de ter capital de giro para possibilitar negociações mais vantajosas e de, com isso, atrair o interesse dos filhos e netos.

"Os jovens poderiam ser mais ativos na tecnologia, na venda online, mostrando os produtos, sabendo fotografar as peças dos pais. É sair do tradicional", compreende, consciente também de que "tem mulheres que vendem o que fazem por qualquer preço, mas porque precisam comer". A atividade, inclusive, tem em seu histórico as negociações em forma de escambo: artesanato em troca de comida.

O risco da falta de representatividade entre produtores de queijo e leite

Filadelfo Pinheiro, 45, presidente da Cooperativa dos Produtores de Caprino e Ovinos do Vale Jaguaribano (Cooprivale), diz que uma das preocupações atuais sobre a continuidade da agropecuária é sobre representatividade e corporativismo. "A maioria das pessoas que estão em associações é de idosos. Na Cooprivale, 28 integrantes têm mais de 50 anos, três têm até 30 anos e não tem ninguém com 20 anos", contabiliza. Seus dois filhos em idade adulta — são quatro, ao todo — também não estão nessa estatística: um estuda Ciências Contábeis e o outro Engenharia Civil.

"Sempre trabalhei a mente deles, levava para o meio rural, para conviver com as cabras. Queria que eles continuassem, como aconteceu de papai para mim, uma coisa natural o meu interesse por zootecnia e agropecuária. Mas eu respeito a escolha deles", conta.

Filadelfo reconhece que por muito tempo a questão da sucessão rural não era vista como ameaça, portanto, não há um histórico de investimento em ensino, gestão, e sobre a importância da cooperativa para a cadeia. "Agora que os diretores estão ficando mais velhos essa preocupação surge", destaca.

No Ceará, a caprinocultura está em quase todos os municípios, com destaque para as cidades de Jaguaretama e Tauá. Ainda não se configura como atividade principal, pois os produtores diversificam seus trabalhos com bovinocultura leiteira e agricultura de sequeiro — técnica para o cultivo em áreas onde chove pouco.

Na família de Elisvando de Lima Lemos, 36, foi ele quem herdou a missão de continuar e transformar a produção bovina de leite, que passou a ser também de queijo. "É um negócio familiar porque precisa ser. É muita persistência, de domingo a domingo, então só dá certo se for entre a família", afirma. Ele lembra de quando, na adolescência, quis sair de Jaguaribe para estudar, depois de passar os últimos nove anos trabalhando com o pai, na vacaria da propriedade.

"Mas meu pai queria me segurar, ao mesmo tempo em que dizia que era difícil. E eu, ouvindo isso, não queria ficar. Queria algo que não tivesse dificuldade. Na época, eu não tinha descoberto o tanto de potencial que a fazenda tem. Hoje eu digo para os jovens: não precisa sair", pondera Elisvando. Ele destaca ainda que sua geração, diferente da dos pais, teve mais acesso ao estudo, o que considera importante para manutenção dos negócios rurais. "O pai precisa ver isso, de trazer o filho, com estudo, para juntar prática e conhecimento".

A produção de queijo coalho do Vale do Jaguaribe passa pelo período das charqueadas do século XIX. O queijo surge como um dos produtos derivados do leite e que evitava o estrago de excedente. Por muito tempo, a produção foi associada à subsistência, sendo também objeto de troca por farinha, rapadura e sal. É objeto da cultura relacionada ao "saber fazer" e elemento da identidade e memórias sociais.

Saber fazer de uma herança cultural valiosa

Sucessão do negócio foi um dos quatro desafios apontados pelos produtores de rede de dormir em Jaguaruana. Uma atividade que perpassa o século XVIII, a produção de algodão cearense e a típica fabricação familiar, em que os homens são responsáveis pelo comércio, enquanto mulheres e filhos se dedicam ao acabamento artesanal.

No meio de fios, barulho, teares e muito tecido, Carlos André Faustino da Silva, 39, e o filho, Andrei Faustino da Silva, 19, dividem o fazer das redes de uma das fábricas de Jaguaruana. Não foi pelo objetivo de passar o ofício entre gerações, nem pela tradição, mas para manter um adolescente perto do pai e não no meio da rua, vulnerável à violência e uso de drogas. "Ensinei ele a trabalhar, consegui o emprego e ele ficou. Tem até carteira assinada", orgulha-se André.

Lado a lado, cinco dias por semana, pai e filho fazem cerca de 20 redes por dia e destacam as vantagens de não trabalhar aos fins de semana e nem com o corpo exposto ao sol, como muitas das atividades rurais.

"Tem muito jovem que tem preguiça de aprender e eu também tinha. É complicado de aprender no começo, mas depois é mais fácil", diz Andrei. A perspectiva futura de pai e filho nada tem a ver com o segmento fabril de redes, o desejo é montar um negócio próprio, "para vender carne, em um comércio de alimentos".

A família trabalha na fábrica de uma outra família, a do atual presidente da Associação de Fabricantes e Artesãos de Redes de Jaguaruana, José Pinheiro Júnior, 58. Depois de morar durante 19 anos em Belém (PA), ele voltou para sua cidade natal em 1985 e, mesmo sem querer, se apaixonou pela tecelagem de redes. "Quando eu vi o barulho do tear, tecendo, pedi para ficar olhando, fui aprendendo, comecei a ajudar e a fazer tudo, tingir… comecei a conhecer todos os processos", lembra.

Ele então passou a ser o responsável pela fabricação iniciada com a avó e que, entre os filhos, nenhum quis seguir. "Em Belém, onde cresci, minha mãe vivia falando das redes da minha avó e eu sempre via pessoas lá vendendo a 'rede de Jaguaruana'", lembra. Pinheiro reavivou o negócio da família e criou as duas filhas fazendo as redes e conhecendo os processos. As duas, porém, saíram da Cidade para se formar em Engenharia Civil. Uma delas segue longe, mas a outra voltou. E hoje é responsável pelas redes sociais e comunicação da fábrica.

O que dizem os mais jovens

"Uma profissão que aos poucos está diminuindo. Essa é uma profissão dos nossos pais, nossos avós, e na maioria das vezes os filhos não se interessam pela mesma coisa". A afirmação é de Luiz Felipe Falcão Lima, 19 anos. Ele é filho e neto de artesãs de Itaiçaba, sabe fazer a arte de palha de carnaúba, tem noção da importância econômica e cultural da atividade, mas deixa claro: "Quero ir embora da Cidade".

Mais, Felipe diz entender o que a tradição significa e deixa mais uma vez sua opinião: "Vai chegar um momento que a tradição vai parar de ser executada e vai ser mais como uma parte histórica mesmo, de saber que uma cidade teve por muito tempo sua economia baseada no artesanato de palha. E vai chegar um momento que não vai ser mais a principal economia da Cidade".

Trabalhar muito, em condições desfavoráveis — sentado no chão, num tamborete, por horas, no sol quente, em movimentos repetidos, todos os dias da semana. Com pouco retorno financeiro e sem perspectiva de crescimento. É assim que muitos jovens veem as profissões mais tradicionais do Ceará. E eles não estão errados. Entretanto, a realidade ainda é de casas sendo sustentadas pelos mais velhos, jovens "nem-nem" (fora da escola e do mercado de trabalho), violência e adolescentes expostos a vulnerabilidades.

Felipe tem outras perspectivas. Trabalha com o tio em uma loja de motos, diz gostar do ramo automotivo e destaca as vantagens empreendedoras do segmento que escolheu. "É o que estou interessado em aprender e me aprimorar. É sobre o que mais tem curso e também tem a questão de ser pioneiro. Hoje somos o número 1 e quando você é o número 1, não quer ficar para trás", vende.

Na mesma rua de Felipe mora Jackson Douglas do Vale Silva, 34. Gerações diferentes criadas com o artesanato de palha de carnaúba. Servidor público municipal em meio período, Douglas inovou a produção feita pela mãe e diz gostar da máquina de costura, de criar novos pontos do trançado da palha e de construir novas "grades", que formatam as bolsas produzidas.

"Muitos modelos eu que criei, tinha uma forma e eu adaptei. Vejo muitos modelos de bolsas de couro, pesquiso… eu não tenho vergonha, nem preconceito, gosto de costurar. E vejo as novidades", conta. Sem capacitação para gerir ou aumentar o negócio da família — a mãe costura na máquina ao lado da dele e acredita que a profissão não é para homens — Douglas faz do Instagram seu principal canal de vendas e conhecimento.

Em Jaguaruana, Maria Juliana de Oliveira, 19, faz varanda de rede enquanto assiste sua série predileta em um dos streamings mais conhecidos no País. Ela diz trabalhar justamente para poder pagar a assinatura, além de poder fazer a sobrancelha e comprar o perfume predileto. "Como eu passo o dia em casa, já ocupa a mente com alguma coisa e quando chega o final do mês tem alguma coisa para receber. É melhor do que passar o dia todinho com o celular na mão", afirma.

O negócio de uma Cidade sustentado por mulheres

Um município, uma atividade, um segmento econômico. Grande parte — enorme mesmo — do trabalho artesão e regional que imprime representatividade a algumas cidades cearenses é feito na varanda de casa, com pernas e braços cansados, porém, sempre ativos. Corpos femininos, acima dos 50 anos, que sustentam casas, filhos, netos e todo um comércio que, por mais que lucre, não possibilita ascensão financeira a quem de fato o torna diferente.

O POVO esteve em quatro municípios cearenses (Itaiçaba, Jaguaribe, Jaguaretama e Jaguaruana) e constatou que, em relação ao artesanato, (quase) tudo se deve às mulheres. Em Itaiçaba, a fabricação de artigos com fibra natural da palha da carnaúba pode até ser pensada e herdada por e entre homens, mas nas máquinas de costura, só foi possível ver mulheres trabalhando. Nos tamboretes onde a palha é traçada, também.

Da atuação na máquina à agilização para buscar mercados e novas possibilidades de comercializar está Cerzina Ferreira da Silva, 54, presidente da Associação das Mulheres Artesãs de Itaiçaba. É ela quem peleja em busca de apoio e para levar entendimento às artesãs sobre como o que fazem é valioso. É ela também quem pensa com esperança e objetividade: "Queria ser uma lojista aqui, que a cidade tivesse um grande centro de artesanato e a gente administrasse. Vai ter sempre famílias fazendo a arte da palha, porque é uma atividade domiciliar. O turista vem e a gente precisa levar ele até os locais de compra, porque não tem um lugar que concentre".

Quem compra a rede de dormir de Jaguaruana, no mundo inteiro, é atraído não apenas pelo tecido, mas principalmente pelos detalhes do punho, da mamucaba, das varandas produzidas de forma minuciosa, histórica e cheia de detalhes. "Não mudou nada. Eu via minha mãe trançar, perfilar, empunhar", afirma Maria de Lourdes Silva Rodrigues, 58. Todos os dias, entre 7h e meio-dia; depois, das 14 horas e até o fim da tarde, ela vai e volta na varanda de casa como a mãe fazia.

Ela faz, desde que se entende por gente, a arte da mamucaba, um dos processos de acabamento da rede. É feito manualmente, onde os fios vão se alternando até formar uma trama lisa, que então une os torcidos da rede. O principal objetivo e diferencial é aumentar a capacidade de carga da rede, além de deixá-la mais bonita. Em todas as apurações do O POVO em Jaguaruana, o que mais se destacou em relação às redes de dormir: qualidade e beleza.

Ainda mais bonita do que a mamucaba é a varanda da rede, também feita de forma manual por mulheres nos quintais e áreas externas das residências, algumas em distritos encravados no semiárido cearense. "Isso não é trabalho para homem, é para mulher. Homem tem que caçar alguma coisa no campo", diz, em uma dessas casas, a varandeira Maria Juliana de Oliveira, 19. A arte que ela faz, que corre países afora, é vista por Juliana apenas como o dinheiro para pagar maquiagens e streamings.

Apesar de ser base da economia de seus municípios, o trabalho dessas mulheres resistentes e artistas não recebe o retorno devido. Horas, dias, tradição, herança, vocação, habilidade, arte. Tudo que é essencial para que peças e marcas tenham comércio garantido e lucrativo, não é recompensado considerando o esforço e o peso que aquela arte tem para o produto final. Produtos vendidos por centenas de reais. Pagamentos feitos em poucas unidades do mesmo real.

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