“O que me incentivou a me alistar foi procurar meus direitos como homem”, é como defende o cearense Bernardo da Silva, homem trans alistado no Exército Brasileiro em fevereiro deste ano. Junto a ele, outros homens trans podem e devem fazer o alistamento militar seguindo os regimentos de todo e qualquer outro homem. Entretanto, além da burocracia, eles precisam driblar o preconceito, a transfobia e a desinformação.
A obrigação militar parte desde o momento da retificação (alteração do nome e gênero de nascimento nos cartórios). Ou seja, quando a pessoa passa a ser reconhecida juridicamente enquanto um homem trans, automaticamente passa a ser obrigada a se alistar nas forças armadas nacionais.
Em resposta a Associação Brasileira de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis, Transexuais e Intersexos (ABGLT), o Ministério da Defesa e Forças Armadas disse adotar "uma política de estrita observância ao princípio constitucional de que todos, incluindo transexuais e transgêneros, são iguais perante a lei”.
LEIA TAMBÉM | Mutirão já retificou nome e gênero de 583 pessoas trans e travestis no Ceará
“O serviço militar é obrigatório nos termos da lei”, assim diz o artigo 143 da Constituição brasileira, a mesma lei que reconhece os homens trans como pertencentes ao gênero masculino. A obrigação, ainda que carregue em si uma série de questões específicas para pessoas transgêneros, por vezes, também pode ser vista como oportunidade. Para Luidyh Batista, o alistamento foi um sonho de infância realizado.
"Desde de criança eu já via como um sonho a questão da farda. Sempre fui muito vidrado na questão do Exército. Eu queria muito desde criança, sempre ser militar. Quando eu fui crescendo fui ver a possibilidade de acontecer eu fiquei muito feliz"
Luidyh Batista
Retificado aos 44 anos e dispensado pelo Exército, ele responde que se fosse convocado “com certeza” atenderia ao chamado. Se a convocação também chegasse para Bernardo, a resposta não seria outra: ele estaria disposto a servir. “Iria exercer função no Exército sem problema nenhum. É muito importante fazer o alistamento. O mesmo direito que um homem cis tem, nós também temos”, argumenta.
Ao contrário de Luidyh e Bernardo, para Elias Andrade, também homem trans alistado, o alistamento militar é mais uma obrigação na papelada para ser reconhecido como um homem. “Normalmente eu imagino que, como a maioria dos meus amigos, é um processo que você faz realmente por obrigação. Não havia esse desejo de alistamento. Meu reconhecimento como homem não abrange essa parte”, afirma.
LEIA TAMBÉM | Jovem trans consegue realizar mastectomia após decisão judicial em Fortaleza
Para quem aguarda o processo de alistamento, como Luan Victor, servir ao Exército brasileiro não é uma ambição. “Não tenho muita vontade de servir. Até porque já tenho uma vida formada, tenho trabalho, família. Acho que a decisão de servir atrapalha", explica Luan Victor. O cearense, contudo, reforça que é direito dos homens trans ocuparem todos os espaços que quiserem, incluindo o militarismo.
"Mas se para ter uma paz dentro de si, o homem trans precisar retificar, tomar hormônio, se alistar, vale muito a pena correr atrás. Precisamos lutar mesmo pra ser quem somos. Todo lugar é nosso lugar"
Luan Victor
Ao transacionar, homens trans passam por uma série de questões para serem reconhecidos em sociedade. Muitos optam pela retificação do nome, do gênero, trocam as roupas e usam hormônios masculinos. Dentro desse contexto, parte da documentação de um homem trans entre 18 e 45 anos retificado é a dispensa militar, fato que ainda gera debate entre pesquisadores e organizações do movimento trans brasileiro.
LEIA TAMBÉM | Dia da Visibilidade Trans completa 20 anos; entenda origem da data
Para o sociólogo e pesquisador Vicente Pontes, a obrigação do alistamento para homem trans é “positiva, porque reconhece legalmente e juridicamente para o Estado, para o poder público, para a sociedade que eu passei a ser alguém, um cidadão do sexo masculino. E como toda pessoa do sexo masculino na sociedade brasileira, tenho que ter o alistamento militar. Reforça essa legitimidade, dá esse reconhecimento de que somos homens perante a lei e perante a sociedade”.
A discussão sobre ocupação de espaços, reconhecimento ou obrigação, são questões que atravessam a relação entre as Forças Armadas e homens trans no Brasil. Contudo há ainda uma limitação na documentação brasileira que motiva o alistamento, conforme explica Élio Corin, vice-coordenador do Instituto Brasileiro De Transmasculinidades no Ceará (Ibrat).
SAIBA MAIS | LGBTQIA+: entenda a luta e o significado do termo
Para ele, uma das motivações do alistamento por homens trans surge por uma negligência no novo RG, a Carteira de Identidade Nacional (CIN). O novo modelo aprovado pelo Governo Federal trás o campo do “nome social” abaixo do “nome de nascimento” e, logo depois, o campo do sexo biólogico, o que para o movimento trans é um retrocesso e desrespeito.
Assim, Élcio explica que, com a dispensa militar, a identificação do gênero masculino é potencializada para reconhecimentos institucionais — como no mercado de trabalho, por exemplo. Todavia, para o Ibrat o alistamento militar não contribui para a luta trans.
"Não contribui para a luta, lugares onde o militarismo impera, geralmente, são violentos aos nossos corpos. À medida que nossos pares manifestam o interesse por ocupar, se faz necessário lutar por inclusão e respeito em todos os espaços, inclusive nesses"
Ibrat
O distanciamento do juramento à bandeira pode ser motivado pelo receio do tratamento do Exército com homens trans, conforme explica Vicente. “O ambiente militar é hostil. Ele dá medo historicamente porque é excludente, é um ambiente muito masculino, muito heteronormativo. Então, para as pessoas LBGTs, ele é um lugar que causa um certo receio, mas isso tá mudando também”, argumenta.
“O alistamento militar é um divisor de águas e divide opiniões também. Então, muitos homens trans que têm medo desse alistamento, têm receio de chegar lá e serem discriminados. Muitos têm orgulho de jurar a bandeira e de passar por esse momento”, completa Vicente.
Sob o argumento do sociólogo é fácil se perguntar se existe algum movimento que possa mudar tamanhos receios e limitações no alistamento de homens trans.
Questionado pelo O POVO, o Exército Brasileiro disse que as “equipes responsáveis por fazer a seleção e orientação dos jovens sobre o serviço militar inicial estão plenamente preparadas para receber todos os públicos da sociedade brasileira”.
No entanto, afirmou que não há um protocolo ou treinamento específico para o tratamento com pessoas trans nas Juntas Militares.
A discussão parece nova, mas não é. O Supremo Tribunal Federal (STF) autorizou a retificação de gênero mesmo sem cirurgia de redesignação e junto com todos os deveres do gênero em sociedade — como o alistamento para homens — em 2018. Seis anos se passaram, mas ainda não há dados que comprovam a existência e participação desta comunidade no militarismo.
“Não há dados referentes ao alistamento militar de homens trans no banco de dados do Sistema Eletrônico de Recrutamento Militar e Mobilização do Exército Brasileiro. A respeito do alistamento para homens trans, é importante esclarecer que pode ser realizado após a retificação do registro civil”, diz o Exército em nota enviada ao O POVO.
A falta de dados reflete, na percepção do sociólogo que, também na condição de homem trans, analisa o cenário:
"O que eu vejo acontecer com frequência quando a gente se identifica como homem transexual já somos direcionados a receber o certificado de dispensa, ou seja, esse ambiente não é pra gente. E se eu quiser servir o Exército? Se eu quiser ter carreira militar? Não posso? A gente vê raríssimas pessoas trans dentro das Forças Armadas. O Exército tem que se adequar a pessoas trans e homens transexuais que queiram servir"
Vicente Pontes
A negligência com os dados não é apenas seara do Exército, se não fosse a iniciativa de movimento populares não teríamos dados da existência de pessoas transgeneros no Brasil. A primeira pesquisa que vai estimar a população transgênero no Brasil realizada pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) será divulgada no último trimestre deste ano. O mapeamento será feito através da Pesquisa Nacional de Demografia e Saúde que questionará ao entrevistado a orientação sexual e identidade de gênero.
O processo de alistamento militar de um homem trans não é diferente do de um homem cis. Conforme explica o Exército, o alistamento militar é uma atividade obrigatória, prevista na Constituição Federal, que começa no dia 1º de janeiro do ano em que o cidadão completa 18 anos e se encerra até 31 de dezembro em que este completar 45 anos.
Um guia de orientação para alistamento militar de pessoas trans foi elaborado pela Associação Brasileira de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis, Transexuais e Intersexos (ABGLT) com o passo a passo e exigências do processo. Para conferir o guia completo, acesse aqui
O homem trans que não se alistar em até 30 dias após a mudança oficial sofrerá as mesmas restrições de um homem cis. Como por exemplo:
Luidyh, Luan, Elias e Bernardo são todos homens trans retificados e alistados em virtude do trabalho realizado pela Coordenadoria de Diversidade de Caucaia, município da Região Metropolitana de Fortaleza (RFM).
Desde de sua criação, em dezembro de 2023, a coordenadoria já realizou dois mutirões com foco no alistamento militar de homens trans. Ao todo, 25 homens trans já foram alistados na Junta Militar de Caucaia.
O alistamento militar é uma das últimas etapas do acompanhamento da Coordenadoria na retificação de pessoas trans. O coordenador Jô Diversidade, como gosta de ser chamado, explica que o processo inicia com interesse pela mudança de nome e de gênero.
Com a confirmação do interesse, inicia-se toda a papelada, que já começa com a emissão de pelo menos 15 certidões a nível estadual e federal— certidões que envolvem histórico trabalhista, criminal e entre outros.
LEIA TAMBÉM | Menino trans de 12 anos consegue mudar o nome e gênero após decisão judicial no Ceará
Com os documentos em mãos, a coordenadoria inicia um diálogo com os cartórios e a Defensoria Pública para solicitar uma nova certidão de nascimento. Após essa etapa, a mudança de RG, CPF, Título de Eleitor acontecem em parceria com o Caminhão do Cidadão, que é acionado pela Coordenadoria a cada mutirão.
“Eu estava passeando pela internet e vi um anúncio. Achei que fosse até brincadeira, mas fui tentar. Eu só tenho a agradecer à Coordenadoria e ao Jô. É algo novo em qualquer lugar para comunidade LGBT, principalmente para pessoas trans. Acabei sendo chamado para fazer todo o processo e foi tudo muito rápido, tudo gratuito”, comenta Luidyh ao relembrar sua primeira oportunidade para retificação.
Elias compartilha a visão de Luidyh. Retificado em Caucaia, ele relata que já tinha tentado o processo em outros locais mas sempre enfrentava uma grande burocracia.
“Eu tentei primeiro em uma geral de Fortaleza que abrangia outras regiões. Mas não consegui ir pra frente. O processo de Caucaia foi, eu diria que muito rápido e bem orientado, bem programado, com datas muito bem estabelecidas e explicações bem claras. Com um diálogo que eu não tinha visto nos outros, por exemplo”, ressalta.
CONFIRA AINDA | Mostra artística discute a expectativa de vida de pessoas trans
Os relatos são semelhantes em relação ao tratamento na Junta Militar de Caucaia. Apesar de não existir um protocolo oficial para o acolhimento de pessoas trans no momento do alistamento, Jô explica que insiste em dialogar previamente com a Junta Militar para o recebimento e tratamento adequado para esta comunidade.
“Como coordenador estive com eles antes e falando qual é a forma de tratamento. Não faço totalmente uma capacitação, mas nós batemos um papo antes, tiro todas as dúvidas. E em nenhum momento, eles têm aquele erro de querer usar o ‘ela’, sempre é no masculino”, comenta.
“Receberam a gente muito bem, os outros meninos trans também, a gente fez questão de jurar pela bandeira brasileira, a gente prometeu perante a pátria todos os nossos direitos e também deveres a cumprir. Achei super legal”, relembra Luidhy.
“Foi um momento muito importante. Acredito que muitos homens trans devem ficar receosos de ir, mas no meu caso quando cheguei na Junta Militar fui bem recebido e me trataram muito bem, não houve divergências”, complementa Bernardo.
No âmbito estadual, O POVO questionou a Secretaria de Diversidade do Ceará quanto à conscientização em Juntas Militares e a existência de algum trabalho para o incentivo e amparo a homens trans que precisam se alistar. A pasta respondeu que a “orientação é via Centro Estadual de Referência LGBT+ Thina Rodrigues I (Localizado em Fortaleza). O Centro disponibiliza serviços nas áreas socioassistencial, psicológica e jurídica. E dentro disso, encaminhamos caso a caso, o que complica o detalhamento público por conta da necessidade de sigilo das informações das pessoas atendidas”.
Em Fortaleza, o procedimento é semelhante. Segundo a Coordenadoria Especial de Diversidade Sexual da Secretaria dos Direitos Humanos e Desenvolvimento Social (SDHDS), o Centro de Referência LGBT Janaína Dutra, da Prefeitura de Fortaleza, “oferece a assessoria jurídica para retificação do nome de homens trans e fornece as informações necessárias para facilitar a busca pelo alistamento militar”.
E se por acaso ainda resta dúvidas de homens trans no Exército, talvez um recado de Luidyh resolva: “Talvez haveria algum algum olhar diferenciado, mas é vivendo, né? Já estamos lutando em sociedade, o Exército é mais um espaço para lutar”.