Ainda tratada como tabu e questão secundária no meio esportivo, a saúde mental dos profissionais — e até de torcedores — tem ocupado maior espaço nas discussões a partir da evolução da sociedade em relação à importância do tema. O futebol, modalidade mais popular do Brasil, envolto em um ambiente passional e hostil, vê um cenário alarmante diante dos relatos de ex-jogadores e atletas em atividade sobre depressão e outras questões emocionais.
O tema voltou à tona no cenário nacional na última semana de fevereiro deste ano, após o atacante Thiago Galhardo, do Fortaleza, ser liberado das atividades do clube por uma semana. Depois do atentado contra a delegação tricolor em Pernambuco, em que o ônibus foi atacado com bombas e pedras e seis jogadores ficaram feridos, Galhardo sofreu com crises de pânico e se disse "profundamente abalado".
O caso do então atacante do Leão — hoje no Goiás — envolve um episódio específico diante da tentativa de homicídio por parte de torcedores, mas, ainda assim, foi motivo de resistência e chacota nas redes sociais após a divulgação. Diante das reações, aqueles que são tratados por muitos como heróis precisam se despir de vaidades e tomar coragem para falar sobre o aspecto psicológico, que, por óbvio, também afeta o rendimento em campo.
Nomes relevantes do futebol nacional, como Pedrinho, Nilmar e Cicinho, além do astro Ronaldo Fenômeno, conviveram com a depressão ao longo da carreira. O gatilho se dá por diferentes formas: graves lesões, questões pessoais, vícios, distância da família... E nem sempre os atletas recebem o suporte necessário dos clubes.
O tabu e a vergonha de abordar o tema também têm sido deixados de lado por quem ainda está em atividade. Os atacantes Rodrygo e Richarlison, figuras constantes na seleção brasileira e que disputaram a Copa do Mundo de 2022, admitiram abalos na saúde mental após frustrações em campo e recorreram a psicólogos. O capitão da Amarelinha, Danilo, também abriu o coração sobre o que passou em 2015 no maior clube do mundo.
"Durante a minha primeira temporada no Real Madrid, eu fiquei deprimido. Estava perdido, me sentindo inútil. No campo, não conseguia dar um passe de cinco metros. Fora do campo, era como se eu não conseguisse nem me mexer. Minha paixão pelo futebol desapareceu e eu não enxergava uma saída. Eu queria voltar pra minha casa no Brasil e nunca mais jogar bola", desabafou o lateral-direito, em relato ao The Players Tribune.
Hoje, boa parte das equipes das principais divisões do Campeonato Brasileiro já possui psicólogo e até assistente social no departamento de futebol profissional — ainda há exceções, como o Flamengo. Outras, porém, entendem ser um fator irrelevante e que os jogadores devem estar sempre bem por atuarem em times importantes, o que gera visibilidade e prestígio, com grandes torcidas e bons salários — realidade restrita a uma fatia mínima da classe.
Os clubes passaram também a dar atenção ao entorno dos atletas, como a adaptação das famílias a uma nova cidade ou a uma nova realidade financeira, no caso das jovens promessas que são alçadas a outro patamar. Algumas equipes oferecem suporte na mudança, indicação de escola para filhos e acionam a assistente social para acompanhar estes processos, certificando-se que o jogador está confortável no lado pessoal para corresponder na parte profissional.
"No Ceará, acreditamos que a família é parte fundamental na busca pela alta performance do atleta. Temos recebido feedbacks muito positivos desse acolhimento. Muitos nunca viram isso nos clubes por onde passaram. Esse cuidado não só com os atletas é foco no nosso trabalho", relatou Eliete Marques, assistente social do Alvinegro de Porangabuçu.
A Organização Mundial de Saúde (OMS) define saúde mental como "o estado de bem-estar em que um indivíduo se encontra ao ponto de utilizar o máximo de suas habilidades para contribuir aos ambientes, inclusive o corporativo, em que esteja inserido".
"Você sente uma tristeza, parece que nada te deixa feliz, nada te deixa animado. Tem gente que pensa que isso é frescura, que é coisa da cabeça da pessoa. Mas quem passa sabe que não é".
O relato de 2017, à TV Globo, é do atacante Thiago Ribeiro, campeão mundial com o São Paulo e com passagens por equipes como Cruzeiro, Santos e Atlético-MG. Ele teve diagnóstico de depressão em 2013, quando defendia o Peixe. Passou a tomar medicação e viu o rendimento esportivo ser afetado, inclusive com perda de apetite e maior letargia.
Os atletas de alta performance têm o desafio de lidar com a cobrança por melhor desempenho no ambiente profissional — do próprio clube, de torcedores e da imprensa — e equilibrar com as questões pessoais. As relações familiares, obviamente, também pesam na saúde mental dos jogadores, por vezes tratados como máquinas diante do nível de exigência.
O colombiano Jhon Arias passou por isso ao chegar ao Fluminense, em 2021. Com poucos dias no Rio de Janeiro, recebeu a notícia do falecimento da avó. Foi liberado pelo clube para voltar à terra natal e pensou em desistir da carreira. Emily Gonçalves, psicóloga do Tricolor das Laranjeiras, entrou em ação para conversar com o atacante e dar o suporte necessário.
Dois anos depois, no momento de maior alegria no futebol, com a inédita conquista do título da Copa Libertadores em pleno Maracanã, Arias procurou Emily e deu um abraço cheio de gratidão. "Minha avó queria que eu estivesse aqui, e eu estou feliz. Então é pelo seu pai, pela minha avó... Estamos na história e sei que falta ainda. Obrigado por tudo. Você me faz ser o que eu sou hoje", disse o jogador à profissional.
A despeito da impressão equivocada de parte do público consumidor do futebol, os atletas que moram nos principais países da Europa, ganham salários astronômicos e convivem com as grandes estrelas — não só do esporte — também estão sujeitos à depressão. Foi o que ocorreu com o lateral-direito Cicinho, que disputou a Copa do Mundo de 2006 pela seleção brasileira e depois passou por Real Madrid, da Espanha, e Roma, da Itália.
"A depressão é muito louca. A galera acha que depressão é entrar em um quarto e querer morrer, e não é. O meu era o que? Eu não conseguia ficar sozinho e nem dormir sem estar embriagado. Eu não conseguia pegar no sono. Odiava dormir. Eu deitava 4 horas e 5h30min estava acordado, sóbrio. Precisava beber", contou o ex-jogador ao Charla Podcast.
Hoje presidente do Vasco, Pedrinho foi revelado pelo clube carioca e logo se destacou como um talentoso meio-campista. Vestiu outras camisas relevantes, como de Palmeiras, Santos e Fluminense, e chegou à seleção brasileira. A trajetória, porém, não foi fácil.
O jogador sofreu graves lesões ao longo da carreira e passou longos períodos longe dos gramados — o que rendia críticas dos torcedores —, chegando ao quadro de depressão. "Não é uma 'tristezinha'. No meu caso, as coisas tomaram uma proporção que eu não conseguia mais ter um raciocínio normal. Se eu olhasse para o meu joelho, e achasse que ele estava inchado, era como se eu tivesse recebido um diagnóstico de lesão", disse Pedrinho, em entrevista ao Charla Podcast, em outubro de 2022.
"Às vezes, eu ia para o treino, eu tinha um carro importado, eu abria o vidro e colocava o braço para fora com o relógio para ver se eu era assaltado para acontecer alguma coisa para ver se eu morria. Eu não tinha mais vontade. Foi muito difícil", desabafou na mesma entrevista.
De perfil discreto, o também atacante Nilmar chamou a atenção quando voltou aos holofotes para revelar que teve depressão durante a trajetória como jogador, já na reta final. O paranaense percebeu que chegara ao limite mental em 2017, quando estava no Santos, e teve consequências físicas.
"Paralisou todo meu lado direito do corpo, fui para o hospital e fiquei dois dias. Exames no corpo todo e não tinha nada. Coração a 200 por hora e não era 'nada'", relembrou em entrevista ao Canal Duda Garbi, em 2021. "Procurei ajuda, foram seis meses sem fazer nada, só deitado no sofá. Eu tinha vergonha. O que me conformou foram pessoas que passaram pelo problema, conhecidas, treinadores famosos, jogadores, que tiveram e não veio a público. Aquilo foi me confortando, fui conversando com eles. É uma coisa química. Procurei ajuda, psicólogo, tomei medicamentos. Foi difícil aceitar me medicar", admitiu.
A dura e rotineira cobrança por resultados no futebol não se resume aos jogadores. Os treinadores, na verdade, podem ser apontados como as principais vítimas, já que, no Brasil, costumam ver o emprego a perigo em sequências de resultados negativos.
Diante da alta rotatividade no mercado, boa parte dos técnicos — inclusive estrangeiros — optam por deixar a família onde têm residência fixada e se mudam sozinhos para a cidade do clube da vez. Portanto, nos momentos de maior dificuldade, não contam com o suporte familiar de forma presencial, o que deve agravar o abalo psicológico.
E, por vezes, o corpo é reflexo disso. Em 2011, o ex-zagueiro Ricardo Gomes comandava o Vasco em um clássico contra o Flamengo. No segundo tempo, passou mal, foi carregado até a ambulância e seguiu para o hospital, onde foi submetido a uma cirurgia de quase três horas para conter a hemorragia no cérebro. O treinador sofreu um Acidente Vascular Cerebral (AVC).
Em 2016, o multicampeão Muricy Ramalho, conhecido pelo jeito impaciente à beira do campo e nas entrevista, teve arritmia cardíaca na véspera de um jogo do Flamengo e, após se recuperar, não mais voltou à área técnica: decidiu encerrar a carreira de treinador — hoje é coordenador do São Paulo.
Ex-Ceará e Fortaleza, Enderson Moreira teve mais episódios extracampo que afetaram a saúde mental e aumentaram o desgaste no mundo do futebol nos últimos anos: AVC, câncer da esposa, Covid-19 e infarto. Com tantos desafios superados fora dos campos, o comandante fez forte desabafo acerca da pressão no esporte após o vice-campeonato da Copa do Nordeste de 2023, em que o Sport foi derrotado pelo Ceará.
“O sentimento que a gente tem num momento desse é de que se a gente pudesse desaparecer do mundo, a gente desapareceria. Futebol cobra um preço muito forte de um treinador. Eu tenho passado nesses últimos anos uma pressão absurda, uma saúde mental que está sendo cobrada muito forte. Vocês não têm ideia de como as palavras das pessoas, essa pressão, minam a gente”, admitiu.
“Meu sentimento é de viver outras coisas, porque é um preço desumano que o futebol faz aqui nesse País, em quem quer ser sério. Futebol cobra demais. É desumano o que fazem com a gente. A maneira que tratam a gente quando perdemos, como que a gente é achincalhado em várias outras coisas. Talvez seja tão difícil para a minha família como para mim. A gente sofre muito, porque nos dedicamos muito para que as coisas possam funcionar", analisou Enderson.
Após anos de ausência de um profissional da Psicologia na comissão técnica da seleção brasileira masculina, a Confederação Brasileira de Futebol (CBF) reforçou o setor com a chegada da mineira Marisa Santiago após a contratação do técnico Dorival Júnior.
Marisa, que é psicóloga do Bahia, é convocada para a Amarelinha em períodos de jogos e competições. Ela iniciou a carreira no vôlei, trabalhando no Minas Tênis, migrou para o futebol no Atlético-MG e depois rumou para o Esquadrão.
"Trabalho como coesão de grupo, como liderança, em como lidar com a ansiedade, com a pressão, em controle dos pensamentos e várias questões que eles podem ter algumas dificuldades. A psicologia do esporte vai exatamente trabalhar nesses pontos para ajudá-los a dar o melhor desempenho técnico e tático", explicou a profissional.
A última vez que a seleção brasileira tinha contado com uma profissional especializada no cuidado com a saúde mental havia sido na Copa do Mundo de 2014, quando Regina Brandão fez parte da comissão técnica de Felipão. Nos dois Mundiais seguintes, sob comando de Tite, o Brasil não levou psicólogo. Os atletas de alto nível passaram a integrar estes profissionais aos seus estafes, seja com psicólogo ou com coachs.
"Como jogador da seleção com voz ativa, falo para as pessoas procurarem porque ajuda. Salvou minha vida. Já estava no fundo do poço. Muito importante a seleção ter psicólogo para ajudar os atletas. Só nós sabemos a pressão que sofremos, não só dentro, como fora de campo. Eu sofri mais até fora. Importante ter um psicólogo", destacou o atacante Richarlison, que sofreu duras cobranças na Amarelinha e no Tottenham, da Inglaterra.
"A terapia me ajudou muito, não só sobre esse erro, sobre tudo na minha vida. Eu senti que precisava ser melhor, uma pessoa melhor em todas áreas. [...] A psicóloga, a Rosana, que foi quem me ajudou muito, conseguiu desenvolver esse meu lado de me ajudar em tudo. [...] Eu aprendi a lidar melhor com os momentos de dificuldade, que antes, talvez, eram mais complicados. Eu já consegui ter uma visão melhor, pensar melhor. Então me ajudou muito", relatou o também atacante Rodrygo, que perdeu um dos pênaltis da seleção na eliminação para a Croácia, na Copa de 2022.
Um ano após a chegada da comissão técnica argentina comandada por Juan Pablo Vojvoda, o Fortaleza voltou a contar com um psicólogo no estafe do elenco profissional. A função existiu entre 2016 e 2017, mas foi deixada de lado a partir de 2018 por opção do técnico da época, Rogério Ceni. Quando era necessário, profissionais das categorias de base eram acionados.
Em 2022, o mexicano Christian Rodriguez desembarcou no Pici e foi peça importante na recuperação da equipe naquela temporada, em que o Leão saiu da última posição do Campeonato Brasileiro, evitou o rebaixamento e conseguiu uma vaga para a frase prévia da Libertadores do ano seguinte.
Christian é especialista em ciência do esporte para atletas de alto rendimento e já havia trabalhado em clubes da Argentina e da Costa Rica, além de ter atuado na seleção do México por muitos anos. Ele costuma acompanhar os treinos dentro do campo e também está presente em todos os jogos, mantendo contato com os atletas e repassando feedbacks para Vojvoda. O psicólogo faz palestras para todo o grupo e também tem reuniões individuais com os jogadores.
Discreto, o profissional evita os holofotes e nunca deu entrevistas, mas já teve o trabalho exaltado por dirigentes e atletas. Após o atentado no Recife, em fevereiro deste ano, procurou conversar com os envolvidos para se certificar sobre as condições psicológicas depois de um forte trauma.
Em Porangabuçu, o Ceará reforçou o setor em março e criou o departamento de performance mental, composto pelo psiquiatra Carlos Celso, pelo psicólogo Ricardo Ângelo e pela assistente social Eliete Marques.
"A minha parte dentro desse setor é trabalhar, juntamente com a comissão técnica, para identificar dentro do campo, nos treinos, jogos e competições como um todo, como é que a gente pode trabalhar os aspectos psicológicos que estão dentro do alto rendimento. Concentração, garra, comunicação, liderança, tomadas de decisões e outros aspectos como saúde mental, para que os nossos atletas trabalhem isso de maneira preventiva", explicou Ricardo, chefe de setor.
Carlos tem um trabalho mais voltado à parte clínica, como atendimento aos atletas, e Elite dá o suporte às famílias dos atletas. Parte deste trabalho já era realizado nas categorias de base e foi ampliado para o estafe do elenco principal.