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"O Brasil é uma das maiores vítimas das mudanças climáticas"
Reportagem

"O Brasil é uma das maiores vítimas das mudanças climáticas"

|Ecologia|Ganhador do Nobel da Paz de 2007, ao lado de 2 mil cientistas, o norte-americano vive no Brasil há 60 anos, onde se tornou uma das referências globais sobre a Floresta Amazônica
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Para o pesquisador, o Ministério do Meio Ambiente e Mudança do Clima tem feito um bom trabalho, mas o restante do Governo não está no mesmo alinhamento em pautas ambientais (Foto: Beatriz Boblitz em 17/06/2024)
Foto: Beatriz Boblitz em 17/06/2024 Para o pesquisador, o Ministério do Meio Ambiente e Mudança do Clima tem feito um bom trabalho, mas o restante do Governo não está no mesmo alinhamento em pautas ambientais

No Brasil há quase 60 anos, Philip Fearnside, 77, tem uma longa trajetória de luta pela manutenção da Amazônia. Nascido nos Estados Unidos, o pesquisador possui estudos com ênfase em ecologia, como as mudanças na maior floresta do mundo decorrentes do desmatamento e os impactos dos diferentes modos de desenvolvimento na região.

Ainda, divide o Nobel da Paz de 2007 com Al Gore e outros 3 mil cientistas do Painel Intergovernamental de Mudanças Climáticas (IPCC) pelas pesquisas relacionadas ao aquecimento global. A premiação foi um marco na extensa história de alertas científicos sobre a crise climática.

Philip esteve em Fortaleza entre os dias 17 e 18 de junho para o evento "Ceará Pelo Clima", realizado no Centro de Eventos, no bairro Edson Queiroz. O POVO conversou com o pesquisador sobre sua trajetória, as perspectivas ambientais para o futuro e como ele enxerga a atuação do Governo Federal relação ao tema.

O POVO - Antes de vir para o Brasil estudar a Amazônia, o senhor estava formando uma carreira na Ásia, especialmente na Índia, certo? O que o levou a mudar de foco e vir estudar a Amazônia?

Philip Fearnside - Eu trabalhei dois anos na Índia trabalhando com peixes e iria voltar para lá para a minha pesquisa de doutorado, sobre desertificação e mudanças climáticas. Mas, os Estados Unidos apoiaram o Paquistão na guerra de Bangladesh, então a Índia simplesmente fechou as portas para acadêmicos americanos. Foram cerca de 400 pesquisadores que tiveram que excluir pesquisas [que duraram] uma vida toda, ficavam engavetando os projetos.

Quando [a Índia], finalmente, voltou a se abrir ao público, eu já estava em Altamira [no Pará]. Morei dois anos nas agrovilas, as pequenas aldeias planejadas pelo Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra). Nesse tempo, fiquei dando seminários no Instituto e, depois, consegui um emprego [também no Incra]. Então, já são 56 anos no Incra de Manaus, [foram] dois anos no Pará e 38 anos na Amazônia. Passa rapidinho.

O POVO - O Brasil conseguiu de alguma maneira sair de um Governo totalmente negacionista e antiambientalista para um que, ao menos no discurso, se compromete com a ciência e com o meio ambiente. Mesmo assim, temos visto a defesa da ampla exploração de combustíveis fósseis, as greves do Ibama e das universidades. Como o senhor analisa a situação do Brasil agora?

Philip Fearnside - O Governo não é monolítico. O Ministério do Meio Ambiente e Mudança do Clima (MMA) realmente está fazendo [bastante coisa] no combate ao desmatamento, mas o resto do Governo não. Todo o resto [da gestão] está do outro lado dessas questões.

O Ministério de Minas e Energia (MME) quer fazer poços na Floresta Amazônica, quer aumentar [a exploração do petróleo do] pré-sal e tem esse grande projeto [de exploração de gás e petróleo], a "Área Sedimentar do Solimões", que é enorme e [acontece] no lugar mais importante de se evitar o desmatamento. É uma situação crítica [e vem junto com aquela conversa] de que é sustentável e viável ambientalmente. A pressão política também aumentou muito. É uma coisa grave.

O POVO - Um dos temas de maior preocupação quanto a Amazônia é em relação ao ponto de inflexão, de não retorno. Conforme pesquisas, a Floresta pode entrar em colapso até 2050. O senhor pode explicar o que significa "ponto de não retorno"?

Philip Fearnside - São vários pontos de não retorno. Tem, por exemplo, o quanto pode desmatar e o resto da Floresta ainda continuar em pé. Se passa um certo ponto, não tem reciclagem de água para o resto da Amazônia, que começa a se definhar. De acordo com o cálculo atual de Carlos Nobre [cientista brasileira, pesquisa mudanças climáticas], [o ponto] seria entre 20% e 25% [de desmatamento]. Em 2007, o Governo dizia que era 40%. Parte da Amazônia brasileira já está [desmatada] em quase 20%.

E, tem outras coisas [que influenciam], como o clima. O número de épocas de seca é muito importante para determinar se [o bioma] vai virar uma savana ou vai continuar como floresta. Estamos na beira da situação. É só pensar em Santarém (PA), tem um corredor seco que cruza o rio Amazonas. Lá, a época seca é mais longa e a chuva menor do que em Belém (PA) e Manaus (AM), por exemplo. A chuva anual por lá é quase idêntica às chuvas de Brasília (DF). Mas, Brasília é no Cerrado e Santarém na Floresta Amazônica.

Então, as épocas secas estão se alongando. [A situação] chega a influenciar o norte do Mato Grosso e ameaça o Brasil de conseguir tirar duas safras de soja no mesmo ano, além de ameaçar a própria Floresta [Amazônica].

Outra coisa é a temperatura, se passa [no sentido de aumenta] 1,5 °C da média mundial, acima da que era antes da Revolução Industrial [período entre o fim do século XVIII e início do XIX], a probabilidade dessas secas aumentam além do limite para manter a Floresta Amazônica. Estamos já com 1,3 °C, quase lá. São vários pontos de não retorno e estamos perto de todos.

O POVO - O doutor Carlos Nobre deu uma entrevista em abril de 2024 pro El Espectador no qual ele confessou não ser otimista com a possibilidade de evitar o ponto de não retorno da Amazônia. E o senhor? É otimista ou pessimista?

Philip Fearnside - Se as [situações] continuarem, obviamente, vai ser um desastre. Mas, o ponto de não retorno não é igual a um precipício, que se você der mais um passo, você cai. É uma coisa que vai aumentando o perigo. O risco de ter essas grandes secas que acabam com o resto da Floresta aumenta muito. Então, mesmo se passar dos 1,5 °C, [por exemplo], não vai acabar tudo de uma vez. [Apesar disso] Tem que lutar para voltar, mas tem que começar agora.

O POVO - O senhor acha que se concentrar na redução do desmatamento da Amazônia é suficiente para o Brasil realmente fazer uma diferença frente à crise climática?

Philip Fearnside - Não. Também precisa parar com o uso de combustíveis fósseis. Na questão dos desmatamentos, o Ministério do Meio Ambiente e Mudança do Clima está reprimindo, fiscalizando, multando etc. Isso é essencial, porque senão o sentimento de impunidade vai aumentando, como aconteceu na época do [ex-presidente do Brasil, Jair] Bolsonaro. Mas, se todo o resto do Governo está agindo pelo outro lado, fazendo estradas que abrem [caminho] para outras áreas [de exploração], o que acontece é que o Governo perde o controle. Milhares de pessoas vão entrando e tomando suas próprias decisões.

A decisão de fazer uma estrada é do Governo, o que vem depois não. A legalização dessas invasões é uma coisa que se autopropaga. [É uma coisa que atrai] não só os pequenos, mas também os grandes grileiros. De alguma forma, tem que parar. Estão roubando terras do estado brasileiro. Mesmo que multem ou se comprometam a plantar árvores, não resolve, fica como terra. É como se eu fosse roubar um banco, por exemplo, e o juiz diz "pode ficar com o dinheiro desde que você assine um termo [dizendo] que você vai obedecer as leis". É mais ou menos assim. É uma coisa que tem que mudar. Só as multas não resolvem o desmatamento.

O POVO - O desmatamento na região amazônica costuma acontecer com a desculpa do desenvolvimento econômico, de lucrar com o espaço. Mas, os impactos a longo prazo acabam sendo bem maiores do que o dinheiro gerado com a exploração. Por que a floresta em pé é mais importante do que ela derrubada?

Philip Fearnside - É muito mais importante a floresta em pé, mas, do ponto de vista de quem está desmatando, dá mais lucro desmatar do que manter a floresta. Então, é uma coisa que é uma decisão do Governo que representa todo o País e não apenas a empresa e a pessoa [que explora].

É algo que tem que mudar. Tem que existir uma estrutura que represente o interesse nacional, não apenas o interesse financeiro de cada um. É preciso [legislações] que não permitam isso, é uma decisão do país. Também é bom lembrar que o grosso disso não é o que sustenta a população na Amazônia. O número de empregados é mínimo. Não sustenta a população da região. Então, as pessoas não vão morrer de fome se não houver o desmatamento.

O POVO - O senhor faz alertas sobre as mudanças climáticas há décadas. Muitos pesquisadores citam que, no passado, não eram levados a sério, eram tachados como "emergencialistas" e muitas das propostas apresentadas não eram levadas para frente. Diante disso, como o senhor se sente vendo esses alertas se tornando realidade?

Philip Fearnside - A pessoa tem que ter uma estrutura psicológica para conseguir lidar com essas coisas, senão fica paralisado. Tem que continuar fazendo o que pode: fazer pesquisa, divulgar os resultados etc. Mas, tem que ser algo muito mais amplo. Não é apenas [trabalho] dos cientistas. A população inteira tem que se envolver.

O POVO - Parte da pesquisa do senhor foi relacionada aos impactos das hidrelétricas na região, chegou a escrever sobre a usina de Balbina, no Amazonas. Pode falar um pouco sobre esses impactos? E, diante da situação, como enxerga a importância da transição energética acontecer?

Philip Fearnside - Não tem como não fazer. Metade da emissão [de Gás Carbônico (CO2)] do Brasil vem do desmatamento, mas também tem toda a parte de energia. Então, para diminuir, tem que enfrentar a parte energética.

A transição também é importante para que o Brasil tenha um papel de liderança no mundo. Tem que dar um exemplo, não é só manter esse discurso que os países ricos têm que pagar [pela transição]. O discurso é verdade, eles tem que pagar mesmo, mas [o Brasil] tem que dar o exemplo.

O POVO - O senhor divide um Nobel da Paz com o corpo de mais de dois mil cientistas que integram o Painel Intergovernamental de Mudanças Climáticas, um número que realmente demonstra a dimensão do que é estudar o aquecimento global e suas complexidades. O senhor vê alguma mudança de postura dos cientistas quanto à divulgação científica sobre a crise climática desde o começo do século?

Philip Fearnside - Sim, mas os cientistas são diversos. Tem alguns que se encaixam nesse estereótipo de que não quer divulgar [as pesquisas], só ficam no laboratório, mas outros não. Hoje é muito mais comum que as pessoas divulguem [os resultados]. Eu tenho uma coluna na Amazônia Real e toda semana sai um texto de divulgação científica, dou palestras e entrevistas, mas cada um faz o que pode.

O POVO - Nas suas colunas, o senhor costuma escrever bastante sobre a BR-319, que visa ligar Manaus e Porto Velho. Ao longo da sua palestra no "Ceará pelo Clima", chegou a mostrar entrevistas de pessoas que têm interesse na construção da rodovia. é interessante que eles sempre usam termos como 'desenvolvimento sustentável' e "sustentabilidade" para passar a imagem de que a rodovia seria benéfica, o que acaba caindo bastante na questão do greenwashing. Como o senhor vê a situação, a apropriação desses termos?

Philip Fearnside - É evidente que o caso da BR-319 é uma obra que não tem nenhum fundamento econômico, como a BR-63, que teve um grande impacto [ambiental], mas tinha uma lógica econômica. Milhares de caminhões de soja são transportados. Na 319, não tem nada parecido com isso.

Em Manaus, todos os políticos são a favor [da construção] e a população também, que há mais de 20 anos é alvo de desinformação constante, dizendo que a rodovia vai ser importante para a Zona Franca [do estado]. Mas, levar os materiais pela 319 vai ser muito mais caro do que [a forma de transporte] atual: de balsa e caminhão [em outras estradas].

Tem que lembrar que Manaus tem 2,2 milhões de pessoas, cerca de 1% da população brasileira, e todo mundo está a favor, desde que seja pago pelo Governo Federal. Ou seja, pelos contribuintes do resto do País.

É grave que temas como "sustentabilidade", "desenvolvimento sustentável", "bioeconomia", estão sendo usados para justificar muitas coisas. A primeira coisa que o Governo do Amazonas fez quando começou a gestão foi liberar oito grandes áreas para exploração de madeira com "bioeconomia". É uma deturpação dos temas.

O POVO - Com base na série de dados sobre a dinâmica e a interação do clima na Amazônia e no planeta, o senhor considera que ações da sociedade civil podem ter peso na balança a favor da salvação do meio ambiente?

Philip Fearnside - A sociedade civil tem um peso na situação, mas o histórico mostra que, mesmo quando existe uma pressão da população, não se resolve as questões de [desmatamento]. O Código Florestal de 2012 foi uma grande revelação. Na primeira votação, foram sete contra um. Sete a favor de perdurar mais 40 anos de crimes ambientais e um [contra].

A opinião pública era totalmente contra [o desmonte do Código]. Cerca de 80% da população não queria nenhuma mudança no documento, segundo as pesquisas de opinião.

A representação da Câmara dos Deputados é proporcional à população. O Brasil é mais de 85% urbano. O grosso da população não tem o mínimo de interesse em ser liberado para desmatar. Mas, como os representantes do povo [os deputados] votam desse jeito, contra o interesse dos próprios eleitores? A explicação é dinheiro, que vem da soja e se transforma em poder político.

Outro exemplo é [a usina hidrelétrica de] Belo Monte, mais de 80% é contra a barragem e o projeto simplesmente foi para frente, o que vai trazer enormes impactos.

O POVO - O senhor entende que os cientistas deveriam entrar na política para serem mais ouvidos? Deveriam ser mais políticos quando fazem divulgações das pesquisas que realizaram?

Philip Fearnside - Pode ser, mas, sendo um pesquisador, as pesquisas precisam ser neutras. Não pode ter o viés que reforça minha visão política.

Mas, uma vez que você fez a pesquisa, você precisa tirar conclusões, que pode ter uma participação política para fazer os resultados acontecerem. Também tem a questão de decidir o que estudar, essa é a chave.

O POVO - Qual o senhor diria que é o diferencial do ambientalismo brasileiro? O que nós, como uma nação e não apenas como pesquisadores, trazemos de diferente para a mesa?

Philip Fearnside - O Brasil é uma das maiores vítimas das mudanças climáticas, mas também é um país muito sortudo porque tem muitas opções energéticas que não sejam os combustíveis fósseis. O grosso dos países não tem isso. Em termos de transição energética é muito mais fácil acontecer aqui do que em outros lugares.

Então, tem toda uma razão para assumir um papel de liderança. Existe o discurso, mas precisam começar a fazer. Não dá para continuar explorando petróleo, isso não vai levar o país a uma posição de liderança.

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