À primeira vista, o apartamento da família Façanha não deixa claro um interesse compartilhado por todos os moradores na casa. Entrando pela porta, os latidos da shih-tzu Flor podem até assustar, mas, passado o cão de guarda, não demora para que se note os jogos de tabuleiro e de cartas, de todos os tamanhos, camuflados entre livros e alojados em boa parte dos cômodos.
A família representa bem o cenário atual de redescoberta dos jogos analógicos. Com um desejo crescente de vários públicos de encontrar entretenimento e interações longe de telas, boardgames — jogos de mesa — têm ganhado interesse de jogadores casuais, educadores, pesquisadores e empreendedores.
Tais jogos são ferramentas em terapias e abordagens lúdicas no tratamento de crianças e representam um setor do varejo em amplo crescimento no Brasil. Desde o isolamento social durante a pandemia de Covid-19, no início de 2020, o varejo de jogos cresceu em Fortaleza, no Ceará e no Brasil.
O segmento de jogos passou de 9,9% do total de brinquedos vendidos no País em 2019 para 13,1% em 2023, computando o maior crescimento entre as 12 categorias que estruturam o varejo de brinquedos no Brasil. Os dados são da Associação Brasileira de Fabricantes de Brinquedos (Abrinq).
Já a Circana, empresa global de análise do comportamento de consumo, aponta crescimento de 51% em faturamento dos jogos de tabuleiro entre 2019 e 2023. O segmento é alavancado principalmente por jogos voltados à família e aos adultos, que registraram um aumento de 66% no período.
Educação lúdica, descontração entre amigos, terapia durante internações, integração em família e entretenimento são só algumas das razões que explicam o crescente interesse por jogos analógicos.
No bairro Messejana, em Fortaleza, o engenheiro eletricista Walter Façanha, 45, e sua esposa, a psicóloga Carla Holanda, 46, abriram espaço para o lúdico como uma forma de promover a integração familiar. Ao lado dos filhos Catarina, 11, e Vicente, 10, a família adotou o hobby como "um motivo para se reunir'. A coleção já passa dos 80 exemplares.
O pai traz a cultura de jogos da infância, quando jogava com os primos. "Na fase adulta já não tinha tanto essa questão de parar com a família para jogar com os primos. Já não tinha mais aquela coisa de se reunir nas férias para jogar", lamenta.
Anos depois, contudo, ele redescobriu a paixão que começou na infância e aproveitou para compartilhar com filhos, sobrinhos, cunhados e quem mais desejar participar, sendo um verdadeiro incentivador do universo dos jogos de mesa na família.
Carla, que conheceu o hobby no início do relacionamento com o marido, diz que além de serem cobrados por Catarina e Vicente, recebem de vários sobrinhos inúmeros pedidos pela próxima oportunidade de reunir a família para a jogatina.
"Fortalece a integração da gente. Eles demandam isso, porque é o momento que eles percebem que estamos todos juntos em prol de uma única coisa. Quando a gente não tá nesse movimento, acabamos nos isolando dentro de casa, com cada um tocando as demandas de trabalho, celular, jogos [digitais], filmes, televisão", explica.
A psicóloga avalia, tanto como mãe, quanto como jogadora e especialista, que os jogos analógicos são uma forma de aproximar a família. Ela relata que a tradição é honrada independentemente do desgaste da rotina.
"Por mais que a gente esteja cansada, por mais que às vezes a nossa vontade seja de fazer outras coisas ou uma demanda pessoal, mas a gente repensa junto, vamos jogar só uma partidinha. Vamos fazer para poder não perder esse momento de integração com eles", garante.
Catarina e Vicente aproveitam os momentos de jogos com os pais ao máximo. Na fala, os olhos dos pequenos transbordam de animação sobre as disputas junto aos tabuleiros. Cada um garantindo ser melhor que o outro.
O caçula insiste para que o pai buscasse Klask — jogo que se assemelha a uma partida de futebol ou uma disputa do game eletrônico "Pong" — do fundo da cama baú. Tinha certeza da vitória sobre a primogênita. Concentrado, ele se dedica à rodada. Mas a vez era da irmã. O amargor da derrota, porém, rapidamente dá lugar à alegria da próxima rodada.
Assim como tantas outras famílias no Brasil, o interesse deles por jogos de mesa cresceu exponencialmente durante o isolamento social causado pela Covid-19.
Isolados em casa e com a necessidade de entreter dois filhos pequenos, os pais precisaram bolar formas de interagir com as crianças e aliviar o estresse do confinamento. A solução estava na infância do patriarca.
Qual o lugar do lúdico na sala de aula
Eduardo Loureiro Jr., professor da Universidade Federal do Ceará (UFC), dá aulas sobre didática. Por sua mentoria passam alunos de todos os cursos de licenciatura da Universidade. Letras, Física, Matemática, Geografia, História e Pedagogia.
Ele conta que a ideia de assumir o lúdico como ferramenta no ensino das técnicas de didática surgiu na disciplina de Metodologia do Trabalho Científico. Usando o jogo "The Mind", ele organizou de 1 a 100 os elementos de uma monografia, da capa aos anexos.
"Eu fiz adaptações e poderia ser adaptado para qualquer disciplina. Qualquer conteúdo sequencial poderia usar nesse jogo", explica o professor do Departamento de Teoria e Prática do Ensino.
Loureiro defende que seu método funciona por sua paixão já existente por boardgames. "Eu não advogo que todo mundo tem que usar jogo em sala de aula. O professor precisa levar para sala de aula aquilo que é da cultura dele. No meu caso são jogos, mas um outro professor pode ser quadrinhos, outro pode ser dança", explica.
A educação lúdica é uma ferramenta para tornar a sala de aula um espaço mais dinâmico. Embora não seja novidade entre educadores infantis como forma de facilitar o entendimento de assuntos mais complexos, Loureiro reforça que a prática é um instrumento igualmente eficaz para alunos universitários.
O professor de didática destaca que a prática apresenta saldo positivo especialmente entre os graduandos que estudam e trabalham. Neste caso, ele reforça o ensino lúdico como fundamental para que os alunos consigam assimilar o conteúdo e ter um momento de descontração naquele dia, promovendo assim o ensino e também o bem-estar dos estudantes.
Luderias: paixão que virou negócio
Enquanto há cada vez mais um público que busca os jogos com o propósito de entretenimento, há aqueles que unem a paixão pelos jogos de tabuleiro ao sonho do empreendedorismo. Em Fortaleza, Pedro Parente fundou e é um dos sócios da Balboa's Hobby Games, uma das mais populares luderias da Capital.
Embora a explosão dos jogos seja relativamente recente, a loja existe desde 2013, e já passou por várias mudanças nesse período. A principal foi a adesão de dois sócios em 2017: Kevly Karyn e Marcos Mayora.
"O meu público, eu pensava que ia ser mais nerd mesmo ou mais jovem também. Hoje em dia o foco é muito mais em grupos de amigos. E ele não é predominante masculino, quem vem jogar jogos de tabuleiro aqui é quase meio a meio", explica Pedro.
Kevly complementa que houve aumento da presença de famílias. "Normalmente vem muitas famílias com filhos de várias idades [...] não só necessariamente com criança, mas às vezes vem o casal com os filhos adultos para jogar, ou às vezes a pessoa vem no primeiro encontro para quebrar o gelo", diz.
Pedro explica que as restrições da pandemia de Covid-19 houve uma crescente de público que mudou por completo o negócio. "Realmente foi bem difícil na pandemia, difícil para todo mundo. Mas é bem nítido quanto realmente teve uma procura grande a partir do lockdown [...] foi um tempo muito rígido, mas nisso a gente fez nossos clientes mais fiéis", revela.