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Por que o ensino a distância brasileiro precisa mudar
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Por que o ensino a distância brasileiro precisa mudar

EDUCAÇÃO | Após proibições e mudanças, um novo marco regulatório deverá priorizar a qualidade da oferta. Especialistas concordam que nem todo EaD é igual
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Conforme o último Censo do Ensino Superior e do Exame Nacional de Desempenho de Estudantes (Enade), houve aumento de 189% no total de cursos EaD entre 2018 e 2022, com 17 milhões de vagas em cursos de graduação a distância contra 5 milhões de vagas presenciais (Foto: JÚLIO CAESAR)
Foto: JÚLIO CAESAR Conforme o último Censo do Ensino Superior e do Exame Nacional de Desempenho de Estudantes (Enade), houve aumento de 189% no total de cursos EaD entre 2018 e 2022, com 17 milhões de vagas em cursos de graduação a distância contra 5 milhões de vagas presenciais

O Ensino a Distância (EaD) no Brasil terá novos referenciais e uma revisão de marco regulatório até o final deste ano. É o que promete o Ministério da Educação (MEC) após proibir cursos EaD em áreas específicas, suspender a criação de novos cursos e mudar as Diretrizes Curriculares Nacionais (DCNs) dos cursos para formação de professores. Em meio às mudanças e proibições, a certeza é de que o problema não são as novas tecnologias, mas os processos de ensino e avaliação que não valorizam a qualidade.

Dados do último Censo do Ensino Superior e do Exame Nacional de Desempenho de Estudantes (Enade) embasaram o MEC: aumento de 189% no total de cursos EaD entre 2018 e 2022; 17 milhões de vagas em cursos de graduação a distância contra 5 milhões de vagas presenciais; dos mais de 10 mil cursos avaliados no Enade, apenas 5,5% tiveram nota máxima.

Para o professor Mozart Ramos, ex-reitor da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE) e titular do Instituto de Estudos Avançados da Universidade de São Paulo (USP), o EaD foi uma forma de as instituições de ensino promoverem mudanças no ensino superior. "Viram uma forma de baratear o processo, preservar as matrículas, mas muitas vezes sem qualidade. E o próprio MEC deixou de fazer sua parte", afirma.

Em 2017, um decreto e uma portaria tiraram a necessidade de autorização por parte do Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep) para que cursos a distância e polos fossem criados. O cenário seguiu sem monitoramento ou fiscalizações efetivas. Em janeiro deste ano, o MEC divulgou outro dado: em 11 instituições de ensino, que, juntas, detêm 65% das matrículas de EaD, a média é de 500 estudantes para um docente.

Mozart Ramos destaca que "o problema da qualidade do ensino superior não se restringe à questão do EaD" e que é necessário garantir bom pagamento aos professores e atratividade aos alunos. Para ele, os valores de mensalidade extremamente baixos não garantem a qualidade do curso e são um fenômeno brasileiro. "Isso é uma questão de grandes grupos para manter as escalas de alunos. Isso precarizou e colocou todo EaD no mesmo saco, mas isso não é verdade. Tem muita gente fazendo um ensino a distância com bom nível".

A professora e pesquisadora do ensino a distância, Andrea Soares, que atua no programa de pós-graduação em Ciência da Informação e é tutora da Universidade Aberta do Sistema Único de Saúde (Una-sus), chama atenção para a participação efetiva de tutores na formação dos alunos. "As pesquisas mostram modelos de EaD que trabalham nessa perspectiva, professores tutores acompanhando o desempenho dos alunos, em turmas com atividades práticas e interativas individuais e entre os participantes, que produzem materiais didáticos de qualidade elevada com recursos diversos", avalia.

Um dos grandes problemas, conforme Andrea, são os modelos de ensino assíncrono, de alunos em uma sala virtual, sozinhos com o conteúdo. "Os estudos e a nossa experiência como docente mostram que esses alunos têm um aproveitamento ruim. Educação a distância é uma modalidade de ensino, mas não é uma modalidade que tem um único modelo, existem vários contextos onde a EAD é aplicada", afirma a pesquisadora.

Uma má formação que poderá refletir diretamente no exercício da profissão daquele estudante. De acordo com Adriana Eufrasio, professora da Faculdade de Educação da Universidade Federal do Ceará (UFC), algumas pesquisas constataram que a depender da metodologia utilizada, alguns dos alunos egressos não conseguem exercer a profissão. "Eu percebi que alguns alunos se formam, se certificam, mas não conseguem exercer a profissão por uma certa deficiência na formação" explica.

A expectativa dos especialistas em Educação é de que as mudanças impostas e o marco regulatório prometido pelo MEC, que acontecem de forma atrasada, consigam promover uma formação profissional mais qualitativa, com mais participação, fiscalização e também valorização aos professores tutores.

Em nota, o MEC informou que "para além da proibição do funcionamento deste ou daquele curso superior (...) a percepção é que para garantir simultaneamente a sustentabilidade e a qualidade da modalidade de oferta de cursos de graduação, é necessário uma reflexão mais ampla e um movimento coordenado, que integre novas regras regulatórias, revisão das diretrizes e a construção de instrumentos de avaliação capazes de captar as peculiaridades do ensino a distância".

Dados e estudos

De acordo com dados do Censo da Educação Superior, o EaD representa 12% das matrículas em 2012 e, dez anos depois, reuniu 46% das matrículas

Em nota, o MEC reconhece a democratização do acesso ao ensino superior possibilitado pela EaD, interiorizando a oferta e alcançando novos públicos

MEC informa ainda que os últimos referenciais de qualidade para a modalidade são de 2007, portanto, "defasados em relação às tecnologias atuais e a nova forma de utilização e relacionamento com essas tecnologias".

Os temas que estarão em debate, ainda conforme o Ministério, são presencialidade (percentual, quais atividades devem ser presenciais, estágios e extensão); indicadores (desempenho, fluxo, egressos) e parâmetros de qualidade ( relação entre professor/tutor e estudante, material didático, infraestrutura dos polos, controle de frequência e provas).

Como as novas diretrizes afetam a formaçãode professores

Alvo importante das resoluções do Ministério da Educação (MEC) são os cursos para formação inicial de profissionais do magistério, principalmente em relação às modalidades ensino a distância (EaD), que agora precisam ter 50% de aulas presenciais. Antes, o percentual era de cerca de 10%, referente ao estágio. No ano passado, 65% dos professores se formaram em modelo EaD no Brasil.

A normativa do MEC é válida para cursos de licenciatura (carga horária mínima passa de 1.200 a 1.800 horas), de formação pedagógica para graduados não licenciados (de 760 para 1.600 horas) e também para segunda licenciatura (de 1.200 para 1.800 horas).

Em dezembro de 2023, uma portaria do MEC já havia suspendido os processos de autorização de novos cursos a distância de 17 áreas, incluindo as licenciaturas. Foram ainda paralisados os pedidos de credenciamento de instituições de ensino superior que quisessem oferecer cursos a distância, mas não obtiveram conceito 4 (numa escala de 0 a 5) na avaliação federal.

As mudanças não afetam quem já está matriculado, sendo válidas para inscritos nos próximos semestres. Os cursos terão dois anos para se adaptar e as suspensões são válidas até o dia 25 de março de 2025.

Uma das medidas mais recentes foi o estabelecimento do Exame Nacional de Desempenho dos Estudantes (Enade) específico das licenciaturas. O novo formato será aplicado na avaliação deste ano, com provas que contemplam a formação geral dos docentes e conteúdo específico de cada área.

"A preocupação maior é conectar a formação teórica com a prática, como já existe na Medicina. Infelizmente, no Brasil, na maior parte dos cursos isso é dissociado", afirma a economista e diretora do Centro de Excelência e Inovação em Políticas Educacionais da Fundação Getúlio Vargas (FGV), Cláudia Costin.

A demanda atual é por professores que, além do conhecimento da área que ensinam, possuam também didática. "Mesmo o professor pedagogo precisa saber como a criança aprende, quais abordagens têm mais chances de sucesso", avalia Costin.

Antes das novas Diretrizes Curriculares Nacionais (DCNs), a formação de um professor era de apenas 400 horas voltadas ao estágio supervisionado, enquanto a parte teórica consumia outras 2.400 horas. Com as mudanças do MEC, o tempo mínimo agora é de 3.200 horas para cursos de licenciatura.

"A exigência do estágio permeia vários pontos, acompanhamento, carga horária. E quase nada disso é monitorado e fiscalizado de fato", reforça o professor Bruno Marques, referência nas áreas de didática e legislação educacional.

Foi depois de uma graduação de cinco anos em Ciências Biológicas e um mestrado, os dois presenciais, que Thais Borges Moreira, professora de EAD, decidiu encurtar o tempo para formação em Pedagogia, em um curso com duração de um ano, também em EaD. O curso exigia encontros presenciais nos polos, onde inicialmente seriam aplicadas as provas, porém, como aconteceu durante a pandemia, Thaís conta que nunca pisou lá.

"Todas as minhas aulas foram gravadas. E a parte prática foi realmente somente os estágios. Um deles até tive aproveitamento (da outra graduação), mas os outros dois, não", conta.

 

O impacto das restrições e a necessidade de monitoramento

A Portaria Normativa que proibiu os novos cursos de graduação em Ensino a Distância (EaD), bem como a criação de novas vagas e polos EaD, também exibe questões mercadológicas. Os impactos econômicos diante das resoluções do Ministério da Educação (MEC) incluem a limitação quanto a possíveis expansões e melhorias.

Para o diretor da Associação Brasileira de Educação a Distância (Abed), Jair dos Santos Júnior, a medida do MEC não surte o efeito esperado. "Não ataca onde existe problema hoje, só impede que novos empresários entrem, criando uma reserva de mercado para as instituições que estão operando. Se o Ministério diz que quem está hoje no mercado tem má qualidade, o ideal seria fiscalizar", pondera.

Um amplo programa de monitoramento junto a essas instituições deveria ser colocado em prática, de acordo com Jair, que também é membro da Comissão Assessora de Atuação Transversal do Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep). Ele afirma que já há dispositivos previstos dentro do MEC para avaliar a qualidade das instituições. E destaca flexibilização que ocorreu em 2017."No governo seguinte esse monitoramento não foi feito. A fiscalização nas instituições era feita de forma virtual, com um representante do local mostrando", conta.

De acordo com o MEC, através de nota, a "legislação vigente - Decreto 9.057/2017 e Portaria Normativa 11/2017 - conferiu certa flexibilidade para a abertura e funcionamento dos cursos a distância, como a autorização para a criação de um quantitativo de polos por ano, sem a necessidade de avaliação in loco por parte do Inep.

Para Borges Neto, que atuou como professor-visitante da Université Téluq, de Quebec, no Canadá — universidade 100% EaD —, as mudanças feitas pelo MEC representam um "retrocesso". Ele fala sobre falta de incentivo, apoio e orçamento para áreas que fazem a diferença quando se fala em qualidade de ensino EaD.

"Lembro que, pelo início dos anos 2000, lancei uma disciplina obrigatória de Educação a Distância na UFC. Na primeira reforma que fizeram, tiraram. Eu questionei e mostrei que era uma nova forma de interagir, que a sala de aula não acaba no físico, a importância das comunidades. Aí voltou, mas como optativa", relembra. Pondera ainda que o modelo de EaD construído no País é deficitário, sem a mediação direta de professores e sem a movimentação de comunidades que possibilitem a troca entre os alunos.

"Falta amadurecimento para usar as expertises que temos. O Brasil é muito rico em experiência nessa área e não é aproveitada", ressalta.

 

Visão de quem vive: por que eles fazem EaD e o que acham do ensino

Uma rotina "caótica". É como a estudante de Ensino a Distância (EaD) em Publicidade e Propaganda, Elania Costa, 31, descreve a correria de responsabilidades cotidianas que a levou a buscar uma formação superior neste modelo. Moradora do bairro Vila Manoel Sátiro, em Fortaleza, Elania é graduada em Biblioteconomia e conta que sai de casa para a biblioteca onde trabalha às 7 horas, retornando apenas às 20 horas.

"Não conseguiria fazer de forma presencial, somente se minha rotina mudasse. Tanto por conta do tempo como por conta dos gastos. Presencial a gente gasta não só com transporte, mas também com alimentação", explica.

Argumento parecido tem Gabriel Mendes, 25, que mora no Jardim América, em Fortaleza, e cursa Relações Internacionais. "Escolhi o EaD porque hoje com a rotina é tão corrida que fica difícil alinhar estudos e trabalho e ainda ter uma rotina social", explica. Ele acredita que os estudantes da modalidade poderiam ter mais suporte e que é preciso melhorar em relação às plataformas.

Para Bárbara Carneiro, 31, estudante de Jornalismo, a flexibilidade ajuda, mas ela questiona as metodologias adotadas pela instituição onde estuda, por causa da ausência de atividades práticas. "A gente deveria ter mais avaliações direcionadas à disciplina realmente. O Jornalismo é muito prático, então eu sinto falta de avaliações que saiam das questões de múltipla escolha", pondera.

A estudante de Ciências Contábeis, Georgia Alana, 31, reclama dos materiais didáticos distribuídos. "Falta um pouco de atenção em relação aos materiais escritos como PDF, que poderiam ser mais completos, acho que são um pouco resumidos. Poderiam ser disponibilizadas mais aulas gravadas, acredito que precisa melhorar", argumenta.

Outra questão pontuada pelos estudantes é sobre os métodos de avaliação. Como muitas provas são online, isso possibilita que os alunos acessem bancos de questões reutilizadas e que ficam disponíveis nos chamados "sites de cola". "Exige muita disciplina do aluno, principalmente com o cenário da inteligência artificial e chatbot atualmente", avalia Lucas Guerreiro, 28, recém-formado em Ciência de Dados.

O diretor da Associação Brasileira de Educação a Distância (Abed), Jair Júnior, destaca, porém, a necessidade de novas metodologias de avaliação. "A prova sem cola é uma ilusão. Tem que ser feita de uma forma que o aluno possa consultar materiais, mas de uma forma que ele seja instado a pensar. É metodologicamente que se resolve esse problema", pondera.

 

Com ponderações, conselhos defendem a proibição de cursos EaD

Os cursos EaD da área da Saúde (Enfermagem, Farmácia, Fisioterapia, Fonoaudiologia, Nutrição, Oceanografia, Odontologia, Psicologia, Saúde Coletiva, Terapia Ocupacional) foram fechados pelo MEC em novembro do ano passado. Portaria contemplou ainda os cursos de Ciências da Religião, Direito, Educação Física, Geologia/Engenharia Geológica e Oceanografia.

Os conselhos das diferentes categorias concordam com a proibição do MEC, mas fazem ponderações. Através de notas, os órgãos se posicionaram. O Conselho Federal de Nutricionistas (CFN) afirma que a formação requer integração entre as atividades práticas e vivências presenciais integradas aos ambientes profissionais.

O Conselho Federal de Farmácia (CFF) não se diz contrário ao uso do EaD na sua integralidade, mas deve se "restringir às disciplinas em que consegue contribuir com o desenvolvimento do aluno". O Conselho Regional de Fisioterapia e Terapia Ocupacional da 6ª Região (Crefito-6), que atua no Ceará, critica "fiscalização precária" do MEC. "Para se ter ideia, há locais em que o endereço cadastrado é um terreno baldio, não há controle da parte do MEC", denuncia Jacques Esmeraldo, presidente do órgão.

Titular do Conselho Nacional de Saúde (CNS), Francisca Valda afirmou que o Sistema Único de Saúde está "preocupado". "O SUS é o maior empregador da saúde e tem responsabilidade com a população. Trabalhamos muito para não cometer erros profissionais". Francisca se diz a favor de que os estudantes que já estão matriculados nestes cursos sejam remanejados para cursos presenciais, sem custos que possam prejudicá-los.

Dorisdaia Humerez, integrante da Câmara Técnica de Educação, Pesquisa e Inovação em Enfermagem, do Conselho Nacional de Enfermagem (Cofen), lembra a responsabilidade dos procedimentos hospitalares. "Se não estivermos habilitados, as pessoas correm risco". Dorisdaia pede mais posicionamento do Conselho Federal de Medicina (CFM) sobre as demandas e preocupações relacionadas ao EaD, principalmente para o maior entendimento junto à população.

O vice-presidente do CFM, Jeancarlo Cavalcante, disse que o órgão é totalmente contra a utilização da modalidade EaD na área da Saúde. Ele afirma que há falta de articulação entre os conselhos e que os mesmos precisam exercer seu poder regulatório no Conselho Nacional de Educação (CNE). "O EaD é uma tendência mundial, porém, na área da saúde, ele é difícil porque você tem uma carga horária de prática muito grande, e requer um aprendizado da questão médico paciente, e isso não é possível se passar por EaD".

 

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