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Do quilombo à universidade: o impacto decisivo das políticas públicas
Reportagem

Do quilombo à universidade: o impacto decisivo das políticas públicas

| DESAFIOS |As histórias de vida dos quilombolas que chegam às universidades ensinam e inspiram. Quem está lá quer manter as portas abertas para que outros ingressem e permaneçam
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Joseli Cordeiro foi a primeira cotista quilombola da 
Pós-Graduação em História da UFC a defender a dissertação (Foto: FÁBIO LIMA)
Foto: FÁBIO LIMA Joseli Cordeiro foi a primeira cotista quilombola da Pós-Graduação em História da UFC a defender a dissertação

Sair do quilombo para estudar requer, sobretudo, coragem. O percurso — até este ano de 2024 — foi trilhado por quilombolas que foram abrindo caminhos. Mas a luta é para que sejam apenas os primeiros de muitos. Racismo institucional, desigualdade social, violências epistêmicas são percalços na trajetória de filhos de quilombos no ensino superior. Para um quilombola na universidade, além de políticas específicas e apoio institucional, é preciso aquilombar.

Joseli Cordeiro, da comunidade quilombola Batoque, no município de Pacujá, localizado na região norte do Ceará, defendeu neste ano sua dissertação no Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal do Ceará (UFC). Ela foi a primeira cotista quilombola do programa a defender a dissertação. O programa foi o primeiro a reservar vagas para quilombolas, antes mesmo dos cursos de graduação fazerem isso, o que só ocorreu neste ano, após a atualização da Lei de Cotas.

Mas chegar lá "foi uma aventura". "Nos meus anos iniciais de ensino, tive a oportunidade de estudar dentro do quilombo. Não era uma escola quilombola, mas era muito motivada e estava entre os meus. No ensino médio, tive que ir para a cidade, foi uma ruptura muito conturbada", lembra. Na escola, ela e os primos sofriam racismo constantemente.

Joseli sempre quis fazer faculdade e a família sempre a apoiou. "Mas sempre teve o receio de estar mais longe do quilombo, da coletividade. Deixava meus pais muito aflitos", lembra. No ensino superior, ela passou pelo que chama de "violências epistêmicas". "Ser um quilombola é uma coisa muito exótica para os que estão lá, para os pesquisadores e outros graduandos. Tinha que explicar o que é ser quilombola e de onde eu venho", rememora.

Joseli foi a primeira da família a se formar. Posteriormente, ela passou na seleção do edital com cotas para quilombolas na UFC. Na graduação e na pós, ela cita a importância de "núcleos de aquilombamento" que tornaram o processo possível.

"Isso fortalece para viver a universidade que, na maioria das vezes, não está preparada para nos receber. Fui acolhida por grupos, pessoas que me possibilitaram sentir o sentimento de quilombo mesmo não estando no meu território de referência. Amigas pretas periféricas que, embora não viessem do ambiente rural, me apoiaram. Pessoas pretas, outros quilombolas, pessoas de povos originários", destaca a historiadora.

Por outro lado, ela menciona processos que de formas sutis invisibilizam. "Muitas vezes, é um currículo. Uma pesquisa sobre quilombo em uma disciplina, não tem um autor quilombola, não tem um texto que discuta sobre quilombo", exemplifica.

Nesse cenário desagregador, ela avalia que editais específicos são um caminho para que pessoas quilombolas tenham a oportunidade de competir de forma minimamente igualitária. "Editais que pensem em um número maior do que um ou duas vagas."

Além do acesso, as universidades devem garantir permanência e apoio psicológico. A maioria dos estudantes quilombolas sai de territórios distantes e, na maioria dos casos, com dificuldades financeiras. "Eles precisam ter a garantia de onde morar, do que comer. E aí tem a questão das bolsas de permanência, de pesquisa."

Joseli frisa ainda necessidade de apoio psicológico visto que o ambiente acadêmico pode ser hostil e os quilombolas carregam uma carga pesada do racismo institucional. É preciso também adequar os currículos. "A gente tem professores que trabalham os mesmos autores brancos europeus há 20, 30 anos", expõe.

Essas são estratégias para garantir o direito de que outros quilombolas como Joseli possam estar no ensino superior. "Eu me sinto muito feliz. Mas eu acho o espaço de ser a primeira muito solitário. Eu penso que não estar sozinha é muito melhor. Eu sou fruto de um processo coletivo. Ser quilombola, justamente, estar cercada pelos meus e as minhas", reflete.

A maior alegria é pensar que outras e outros poderão também fazer essa trajetória. "É o meu intuito, enquanto filha quilombola de Batoque, enquanto uma mulher negra, é, não sei se abrir portas, mas mantê-las abertas, para que muitos mais dos meus e das minhas possam fazer isso também", sonha.

Comunidades longe das escolas

Pesquisa do Mapeamento das Comunidades Quilombolas do Ceará publicada em 2019 indicou que a distância da comunidade do Sítio Veiga (onde ocorreu o 17º Encontro das Comunidades Quilombolas do Ceará) para a escola de ensino fundamental mais próxima era de 3 km. Já quem precisava acessar uma escola de ensino médio precisava percorrer uma distância maior: 14 km.

De acordo com informações coletadas pelo Censo Demográfico 2022, o Nordeste concentra a taxa mais baixa de alfabetização de quilombolas (78,40%). O Censo indica que o analfabetismo entre quilombolas a partir de 15 anos de idade era 2,7 vezes superior ao registrado na população total do País.

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