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Soluções do agro: Inovações da ciência no Ceará reduzem carbono na produção
Reportagem

Soluções do agro: Inovações da ciência no Ceará reduzem carbono na produção

No Estado, mercado e na academia contribuem com o correto descarte de produtos não utilizados, como as sobras do coco verde e o bagaço de caju. Combustíveis e fertilizantes sustentáveis surgem como alternativas mais limpas
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CEARÁ pode se tornar uma potência nacional na produção de biocarvão proveniente de fontes orgânicas, como resíduos de caju e coco verde (Foto: FERNANDA BARROS)
Foto: FERNANDA BARROS CEARÁ pode se tornar uma potência nacional na produção de biocarvão proveniente de fontes orgânicas, como resíduos de caju e coco verde

Aliar desenvolvimento sustentável e aumento de produtividade é o objetivo central de quem está atento às demandas de mercado. Não para o futuro, mas para agora. No Ceará, o agronegócio está atento a esse movimento e recorre a estudos científicos.

Ações inovadoras e sustentáveis partem do agro ou contribuem com o setor. Além de retrair a pegada de carbono nos projetos produtivos, as ações visam transformar o que seria "lixo" em riqueza, também contribuindo para redução da desertificação no Nordeste.

Uma das soluções é vista no biocarvão. Esse movimento ganha impulso no Brasil a partir da obtenção dos resultados de estudos iniciados na última década. Dessa forma, o agronegócio ganha protagonismo no cenário de soluções que removem dióxido de carbono da atmosfera, o que é ligado diretamente à economia circular.

Os resultados de estudos relacionados ao biocarvão advindo de resíduos agrícolas, como espigas de milho, cascas de babaçu, arroz e algodão, serragem e restos de madeira, por exemplo, geraram aumento de produtividade agrícola de até 50%.

Essas ações também proporcionaram a absorção de nutrientes, reduzindo em cerca de 20% o uso de fertilizantes químicos, contribuindo com a retenção de água e contaminantes no solo. Ou seja, o biocarvão é um verdadeiro "sequestrador de carbono".

Tanto com a destinação correta de resíduos advindos da produção ou pós-processamento ou mesmo no uso do biocarvão na aplicação do solo, os ganhos ambientais são enormes.

O biocarvão uma vez aplicado no solo é muito estável e permanecerá por séculos promovendo melhorias relacionadas à fertilidade do solo. Além disso, ele age como uma "esponja" de carbono que retém água e nutrientes, atuando como um condicionador do solo, reduzindo o uso de fertilizantes.

Pelo menos três projetos desenvolvidos em universidades cearenses merecem destaque: o de produção de biocarvão a base de bagaço de caju, outro a partir de biomassa proveniente de resíduos de esgoto, além do biocarvão produzido a partir de resíduos de coco (que inclusive já conta com parceria da Universidade Estadual do Ceará com a termelétrica Energia Pecém e aporte de R$ 2,5 milhões).

Biocarvão tem o potencial de reduzir custos com fertilizantes para a produção agrícola(Foto: FERNANDA BARROS)
Foto: FERNANDA BARROS Biocarvão tem o potencial de reduzir custos com fertilizantes para a produção agrícola

Um dos projetos, feito em parceria entre pesquisadores dos departamentos de Física e de Ciências do Solo da Universidade Federal do Ceará (UFC), estudam soluções nanotecnológicas para melhoria de solos áridos e secos.

A pesquisa rendeu ao grupo uma publicação na revista científica Environmental Research, de grande relevância para a área ambiental, com fator de impacto 8.4.

O estudo é focado na utilização de materiais chamados de biocarvões: nanomateriais compostos de carbono provenientes da combustão incompleta (ou carbonização) de resíduos agroindustriais.

Tem financiamento da Fundação Cearense de Apoio ao Desenvolvimento Científico e Tecnológico (Funcap), do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) e da Financiadora de Estudos e Projetos (Finep).

Os estudos já renderam pedido de patente ao Instituto Nacional da Propriedade Industrial (Inpi) em relação à aplicação de biocarvão produzido de bagaço de caju como condicionador físico de solos em solos com consistência muito dura.

Mirian Gomes, doutora em Agronomia e parte da equipe de pesquisadores do grupo científico que participa dos projetos na UFC, destaca que esses projetos de biocarvão abrem uma nova fronteira na produção de fertilizantes e também energia.

A pesquisadora destaca que uma indústria de fertilizantes tem demonstrado interesse no projeto, que ainda está em fase de testes em condições controladas. O próximo passo é testar em campo.

Na foto, a professora e cientista, Mirian Costa, uma das coordenadoras do Departamento de Ciências do Solo, de experimentos para a produção de biocarvão(Foto: FERNANDA BARROS)
Foto: FERNANDA BARROS Na foto, a professora e cientista, Mirian Costa, uma das coordenadoras do Departamento de Ciências do Solo, de experimentos para a produção de biocarvão

Mirian ainda lembra que no começo dos anos 2000, na busca por combustíveis alternativos com origem sustentável e menor emissão, os resíduos da agricultura assumiram o foco. O biocarvão, no entanto, é mais recente, agora como potencial fertilizante.

"A partir do momento em que começaram a associar os benefícios do biocarvão ao que se constata na chamada terra preta dos indígenas, começou-se a olhar para a carbonização da biomassa para uso na agricultura. A utilização de resíduos de um modo geral é mais antiga, mas a questão dos fertilizantes minerais é crítica, porque são fontes finitas. Muitas vezes o Brasil depende de outros países produtores de minerais que resultam nos fertilizantes. Isso aumentou ainda mais o interesse e a necessidade de fontes alternativas de nutrientes na agricultura", analisa.

Experiência de sistema de Integração Lavoura-Pecuária-Floresta (ILPF) da Embrapa na caatinga(Foto: Lucas Oliveira/Embrapa)
Foto: Lucas Oliveira/Embrapa Experiência de sistema de Integração Lavoura-Pecuária-Floresta (ILPF) da Embrapa na caatinga

Estudo produzido pela Empresa de Pesquisa Energética (EPE) destaca que o Brasil tem o potencial de se tornar líder na produção de biocarvão a partir de resíduos agrícolas, devido a sua alta disponibilidade.

Atualmente, o País conta com apenas uma planta industrial de biocarvão, obtido a base de resíduos agrícolas de casca de café, em Lajinha-MG. Outros dois projetos estão em desenvolvimento, o que elevaria a produção para 12 mil toneladas de biocarvão por ano.

Os principais projetos do tipo estão localizados na Europa, são 93 em operação. A principal matéria-prima é o cavaco de madeira.

Para que o biocarvão seja obtido, é necessário realizar um processo de decomposição térmica dos resíduos, chamado pirólise.

Ele consiste na queima em reator com temperaturas superiores a 400°C, num processo com controle de gases no interior das máquinas para evitar a presença de oxigênio, gerando assim a alta concentração de carbono no fim, obtendo também elevada porosidade e possibilidade de adaptabilidade em diferentes meios.

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Experiência de sistema de Integração Lavoura-Pecuária-Floresta (ILPF) da Embrapa na caatinga
Experiência de sistema de Integração Lavoura-Pecuária-Floresta (ILPF) da Embrapa na caatinga

Solução da Embrapa para a Caatinga alia lavoura, pecuária e floresta

O processo de pesquisa e desenvolvimento de inovações para o setor de agronegócio envolve também a adaptação a contextos desafiadores de clima e condições de solo. No Ceará, a questão é acentuada já que 95% do território do Estado fazem parte do semiárido brasileiro, com clima seco e poucas chuvas ao longo do ano.

Neste cenário, a Embrapa Caprinos e Ovinos de Sobral-CE propõe um novo desenho para implantação de sistema de Integração Lavoura-Pecuária-Floresta (ILPF) adaptado às condições do bioma da Caatinga, presente em 95% do território do Estado com exceção de enclaves de outras vegetações.

Esse modelo de gestão de áreas produtivas é bem difundido na região Centro-Sul do Brasil, mas não havia ainda solução para o Nordeste brasileiro.

Com o trabalho da Embrapa, que é focado em pequenos e médios produtores, tornou-se possível o uso consciente das áreas, com a produção animal e o manejo sustentável para extração de madeira, que pode conservar até 50% da vegetação nativa.

O redesenho do sistema ILPF consiste na utilização de uma área de seis hectares, faixas de vegetação conservada com faixas desmatadas, com área útil de aproximadamente 2,8 hectares. O arranjo permitiu o plantio de culturas como sorgo, milheto e feijão guandu, além do uso de capim Massai e pastagem nativa.

Com a instauração de experiências do tipo em propriedades rurais, além da produção de animais, abriu-se a possibilidade de venda de silagem e madeira para lenha e estacas. Amplia-se por três a produtividade do espaço produtivo.

O sistema ILPF ainda demonstra superar os desafios inerentes ao solo da caatinga, que é pobre em matéria orgânica. José Wilson Tavares, engenheiro agrônomo da Embrapa, destaca que os estudos têm avançado e propriedades de Ceará, Paraíba e Piauí já adotaram o modelo.

O ILPF também é uma forma de rever a forma de uso da terra para além do desmatamento de vegetação nativa para implantação de cadeia produtiva. "O nosso desafio aqui foi adaptar essa tecnologia na nossa região semiárida. Trabalhar com várias cadeias produtivas, o agrícola, pecuário e o florestal, traz benefícios para todos esses sistemas e para saúde do ambiente como um todo", pontua.

FORTALEZA-CE, BRASIL, 17-10-2024: Na foto, os professores e cientistas, Mirian Costa, coordenadora do Departamento de Ciências do Solo, e Jaedson Cláudio, professor do departamento. Ambos realizam experimentos para a produção de biocarvão (Foto: Fernanda Barros/ O Povo)
FORTALEZA-CE, BRASIL, 17-10-2024: Na foto, os professores e cientistas, Mirian Costa, coordenadora do Departamento de Ciências do Solo, e Jaedson Cláudio, professor do departamento. Ambos realizam experimentos para a produção de biocarvão (Foto: Fernanda Barros/ O Povo)

A diversidade das pesquisas ligadas ao biocarvão

As possibilidades em torno da produção de biomassa para queima e transformação em biocarvão são diversas. Atualmente, os projetos de produção industrial são restritos aos resíduos de cafezais. Mas as possibilidades no Ceará envolvem resíduos abundantes na região, como biomassa do caju, tanto do bagaço quanto da poda de cajueiro, que mostram grande potencial, considerando a expressiva produção.

Há ainda estudos em torno da viabilidade do biocarvão do coco verde, que, baseado na cocoicultura pujante no Estado, demonstra potencial. Mona Lisa Oliveira, professora e pesquisadora da Universidade Estadual do Ceará responde por esta pesquisa.

Outra iniciativa é desenvolvida em conjunto com a Companhia de Água e Esgoto do Ceará (Cagece), que envolve a produção de biomassa com resíduos de lodo de esgoto. Jaedson Cláudio Anunciato Mota, professor do Departamento de Ciências do Solo da UFC, destaca o potencial da solução, que está em estudo desde 2019.

"Grandes cidades, como Fortaleza, produzem diariamente toneladas de lodo de esgoto. Surge a questão: o que fazer com esse material? Como depositá-lo no ambiente de forma segura e correta? Quando transformamos em biocarvão, estamos contribuindo para resolver um sério problema ambiental e agregando valor a um produto com muita utilidade melhorando substancialmente os solos", pontua.

CEO da 3v3, Michel Freire
CEO da 3v3, Michel Freire

O papel dos editais públicos

A disponibilização de recursos para investimentos em projetos de pesquisa, desenvolvimento e inovação (PD&I) tem tido papel importante para o lançamento de produtos amistosos ao meio ambiente.

Seja financiamento da Funcap em nível estadual, ou do CNPq e Finep, muitas novidades de mercado surgem a partir do PD&I financiado.

Um dos exemplos na região Nordeste é o Fundo de Desenvolvimento Econômico, Científico, Tecnológico e de Inovação (Fundeci), do Banco do Nordeste (BNB). Com recursos não reembolsáveis, os editais fomentam o desenvolvimento de soluções inovadoras.

Em setembro, o BNB lançou o novo edital, Fundeci 01/2024, de Desenvolvimento Territorial Sustentável e Regenerativo, no valor de R$ 25 milhões.

Beneficiada em edital anterior do Fundeci, em 2019, a 3v3, empresa cearense de automação e sensoriamento agrícola, lançou uma solução para agricultura irrigada que já está difundida como um produto de mercado.

O CEO da 3v3, Michel Freire, explica que o projeto consiste no controle inteligente de bombeamento, com uma regulagem mais precisa conforme a necessidade de irrigação de cada setor a partir do uso de inversores de frequência.

Michel destaca que a marca também oferece soluções em outros editais, como da Funcap, com desenvolvimento de soluções como estações meteorológicas, controladores de fertilizantes e sistemas de gestão. "Já temos uma linha de produtos que surgiu dessa parceria".

"Os órgãos de fomento são criteriosos e temos que encarar esses recursos como um investimento que precisa gerar retorno. Posso dizer que o investimento recebido no projeto já deu retorno, pois gerou automações, inteligências e produtos de alto valor agregado", aponta.

Com produção industrial em Fortaleza, a 3v3 atua no mercado nordestino e está em processo de expansão para o Sudeste, como projetos em São Paulo, atendendo a demanda da produção de suco de laranja, por exemplo.

Sequestro de carbono

A comunidade científica internacional, representada pelo Painel Intergovernamental sobre Mudança do Clima (IPCC), já constatou que medidas de mitigação das mudanças climáticas focadas apenas na redução de emissões de GEE não serão suficientes para conter o aquecimento global a níveis seguros para a sociedade (aumento de até 1,5°C da temperatura média global), implicando assim necessidade da adoção de práticas de remoção de carbono, capazes de retirar efetivamente carbono da atmosfera.

Créditos

O biocarvão e outras tecnologias de baixo carbono que podem ser beneficiados com a aplicação de créditos de carbono poderiam avançar mais rapidamente. Mas esse movimento depende da aprovação final da PL do mercado de carbono, que completará dez anos de tramitação no Congresso.

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