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"Do pó ao pó": Por que ainda evitamos em falar sobre a morte e a finitude da vida?
Reportagem

"Do pó ao pó": Por que ainda evitamos em falar sobre a morte e a finitude da vida?

A morte é cercada de tabu, apesar de ser uma certeza universal. Contudo, refletir sobre a finitude pode ressignificar o viver
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O irmão de Márcia Andrade, Ivo, foi vítima de um latrocínio em dezembro de 2023
 (Foto: FERNANDA BARROS)
Foto: FERNANDA BARROS O irmão de Márcia Andrade, Ivo, foi vítima de um latrocínio em dezembro de 2023

Muitas culturas possuem datas dedicadas a refletir sobre a morte e a memória dos que já se foram. No Brasil é o Dia de Finados, lembrado em 2 de novembro. Apesar disso, em especial no Ocidente, a finitude da vida ainda é rodeada por uma aura de mistério e medo. Apesar de ser uma das certezas universais da vida, é paradoxalmente um dos temas mais evitados. A dificuldade de discutir a morte envolve uma complexa teia de aspectos culturais, emocionais e psicológicos.

Uma pesquisa divulgada em 2018 pelo Sindicato dos Cemitérios e Crematórios Particulares do Brasil (Sincep) revela que 73% dos brasileiros consideram a morte um tabu. Desses, 48,6% não se sentem prontos para lidar com a morte de outra pessoa, e 30% confessam ter muito medo de morrer.

Para o tanatólogo e psicólogo Erasmo Ruiz, professor da Universidade Estadual do Ceará (Uece), foi com a modernidade que o assunto se tornou um tabu.

“No passado, as pessoas conviviam diretamente com a morte. Doenças hoje tratáveis, como infecções urinárias, eram fatais. A expectativa de vida era menor, as condições de higiene eram precárias, e epidemias, comuns. O contato com a morte era inevitável, os familiares participavam, inclusive, na preparação dos corpos”, aponta.

Segundo ele, o conceito da morte costumava ser apresentado bem cedo aos indivíduos. As crianças, por exemplo, eram expostas a velórios e rituais fúnebres dos membros e amigos da família, o que as ajudava a lidar com a morte de maneira mais natural.

O professor ainda aponta que, por volta do século XX, médicos e hospitais passaram a protagonizar o momento da morte, bem como o cuidado com o corpo passou a ser cargo de empresas funerárias. “Esse distanciamento faz com que a morte seja vista como algo assustador e desconhecido, uma ruptura ameaçadora”, diz.

Tradicionalmente, diversas religiões também oferecem explicações para a morte, minimizando a ansiedade quanto essa etapa. “Mas muitos recursos espirituais hoje não se concentram em oferecer sentido à morte, mas sim para responder às demandas do dia a dia, como conquistas e realizações materiais”, aponta Erasmo Ruiz.

Nos últimos anos, eventos extremos têm alterado a forma com que muitos lidam com a mortalidade. É o que comenta o tanatólogo Diego Benevides, doutorando em Comunicação pela Universidade Federal do Ceará (UFC) e estudante de Filosofia na Uece.

“A pandemia exigiu uma reflexão imediata sobre nossa finitude. O tema da morte se tornou impossível de evitar: estava presente na mídia e em nossas casas. Vivemos um escancaramento das perdas e do luto, mas os rituais funerários foram interditados, mudando nossa relação com a morte. A sociedade ainda processa tudo isso”, aponta.

Benevides observa que questões como guerras, crises ambientais, necropolítica, e pobreza também expõem a morte em todos os âmbitos. "Precisamos criar mecanismos para entender que o morrer faz parte de uma cadeia que começa com o nascimento e que, apesar do medo e da dor inevitáveis, podemos passar por isso de maneira consciente e até mesmo serena."

O que fazer para amenizar o sofrimento do luto e a ansiedade da morte?

Entenda a morte como parte de um ciclo e aproveite para dar sentido à vida

Atividades como escrever uma lista de coisas a realizar ou o próprio obituário ajudam a refletir sobre os próprios desejos e conquistas, estimulando uma vida com propósito.

Converse Sobre o Tema

Converse sobre a finitude com alguém com que você se sinta confortável. Se possível, busque ajuda psicológica com um profissional ou em grupos de apoio.

Leia sobre a temática Autores como Mário Quintana e Manuel Bandeira abordam com sensibilidade e beleza essa fase da vida

Se preferir,

considere a espiritualidade

A espiritualidade e

a religião podem oferecer consolo, minimizando

a ansiedade e ajudando

na aceitação.

O que é a morte sob o ponto de vista das diferentes crenças

Emerson Silveira, doutor em Ciência da Religião e professor da Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF), Minas Gerais, comenta que, em todas as culturas, a morte é um tema que desperta tanto a atração quanto o medo. Ao mesmo tempo, a pluralidade de religiões faz com que a morte seja abordada de maneiras distintas.

Confira como a morte é abordada em diferentes credos:

Cristianismo
A morte é vista como uma passagem. No catolicismo, por exemplo, há a crença no julgamento em um purgatório e, por fim, um Juízo Final. Para outras vertentes, como o protestantismo, pode haver um estado de dormência até a ressurreição da alma.

Islamismo
A morte é uma transição para a vida após a morte. Um julgamento após a morte determina o destino da alma (paraíso ou inferno).

Judaísmo
A morte faz parte do ciclo da vida e há rituais para simbolizá-la. Há a crença em uma vida após a morte, mas as interpretações variam entre as diferentes correntes.

Budismo
A morte é parte do ciclo de vida, morte e renascimento (samsara). O objetivo é alcançar a iluminação (nirvana), que transcende o ciclo de renascimentos.

Hinduísmo
A morte é vista como uma transição para um novo nascimento (reencarnação). O karma (ações) influencia as condições do próximo renascimento.

Cosmologias Indígenas
Há diversas crenças sobre a morte, que variam de uma etnia para outra. Para muitos povos, a morte tem relação com a natureza e a ancestralidade. A morte também pode ser vista como uma transformação ou continuidade.

Religiões Afro-brasileiras (como Candomblé e Umbanda)
A morte é vista como uma continuação da vida em outra forma. A ancestralidade é respeitada, e os rituais são importantes para honrar os mortos.

Espiritismo
O corpo físico é considerado um veículo temporário para a experiência terrena. A crença na reencarnação é central; os espíritos retornam à vida em novos corpos para continuar seu aprendizado e evolução espiritual.

Ateísmo ou Agnosticismo
A morte é o fim da existência individual. Alguns podem acreditar em uma continuidade da vida em um sentido mais universal, sem crença em deuses ou almas.

Há também a possibilidade de mescla entre religiões e costumes de cada região. “O catolicismo no México, por exemplo, mescla tradições indígenas com suas próprias crenças, resultando em celebrações vibrantes, como o Dia dos Mortos. Essas celebrações não são apenas momentos de dor, mas também de lembrança e celebração das vidas que passaram”, conclui Emerson Silveira.

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