Em novembro, o Ministério Público do Estado (MPCE) identificou aumento de 1.100% nas reclamações contra a Secretaria Municipal da Saúde (SMS) de Fortaleza e de 600% nas reclamações sobre o Instituto Dr. José Frota (IJF). Levantamento exclusivo mostra que foram 206 reclamações de 1º de janeiro até 1º de dezembro de 2024, se somadas as do IJF e da SMS. Desse total, 115 chegaram nas Promotorias de Saúde do MPCE na Capital no mês após as eleições, o que representa 55% do total informado.
De janeiro a outubro, os equipamentos e serviços da SMS receberam, em média, 5,5 reclamações mensais. Novembro expandiu o número para 77. O IJF, por sua vez, é uma autarquia municipal. Funciona de maneira autônoma, com personalidade jurídica, patrimônio e receita próprios. Por isso, o MPCE separou as reclamações em relação apenas à unidade.
Em um mês, as reclamações do equipamento subiram de 6 para 38 e, em 1º de dezembro, enquanto não houve registros na SMS, no IJF já haviam oito.
"São denúncias, mas também pedidos das pessoas. Pedidos de providências. Têm muitos da Fundação de Apoio à Gestão Integrada em Saúde de Fortaleza (Fagifor), questionando por que não foram chamados (profissionais selecionados), há também pedidos de renovação de contratos temporários", disse Ana Cláudia Uchôa, secretária-executiva das Promotorias de Justiça de Defesa da Saúde Pública.
A problemática da Fagifor se refere ao encerramento de contratos temporários desde julho, segundo a promotora. Aprovados no concurso substituiriam estes profissionais, mas, apesar de terem sido convocados, não foram lotados até o momento. Cenário afeta gravemente Frotinhas e Gonzaguinhas, segundo o MPCE.
No dia a dia, um dos principais impasses é a falta de insumos. Um paciente, que preferiu não se identificar, afirma ter sido atendido em novembro no IJF, onde ficou internado por dez dias. Segundo ele, "a única coisa que tinha era dipirona".
"Tive que receber antiobiótico por sete dias e no terceiro faltou. Até lençol faltou. As enfermeiras pediram para a gente tomar banho mais cedo, para que eles fossem lavados e utilizados por outras pessoas", disse.
Para Ana Cláudia Uchôa, a situação não seria um "desmonte", tendo em vista que o problema é antigo. No entanto, ela ressalta o aumento da gravidade. "Esse problema já vinha antes da eleição. Há dois anos a gente recebia reclamações, mas eram pontuais. Do tipo: 'faltou medicamento', o que era respondido com 'faltou, mas já conseguimos repor'", disse.
E completou: "Esse ano foi se agravando. E do meio do ano para cá agravou mais ainda. Eu não sei dizer se foi por conta da eleição. Foi um problema que a gente já vinha insistindo para a Prefeitura resolver", resumiu.
"Nunca vivi uma situação como essa de agora", relatou uma enfermeira que há 20 anos atua no Sistema Único de Saúde e há seis no IJF. Era 3 de dezembro, mais de um mês após o segundo turno das eleições municipais e pouco menos de um mês após a eclosão da crise no equipamento municipal.
A situação narrada pelos funcionários do IJF é de desespero. Falta de insumos, déficit de profissionais, atraso de pagamentos, superlotação. A saúde pública da capital cearense foi marcada, nos últimos meses, por relatos de problemáticas diversas, intensificadas neste fim de ano. "Não podemos oferecer o básico para os pacientes", disse a enfermeira.
Dos portões do imenso hospital no Centro de Fortaleza aos postos de saúde em bairros, as questões são sentidas na linha de frente por funcionários e pacientes, a urgência se potencializa.
Um paciente de 32 anos, que preferiu não se identificar, está na unidade há quase três meses aguardando por uma cirurgia. Ele sofreu um acidente de moto no dia 22 de outubro de 2023 em Quixadá. "Na perna, foi joelho exposto, botaram no canto. A panturrilha arrancou e foi feito enxerto. Perdi o dedão do pé e quebrou os dedos do pé. Os que não foi preciso cirurgia, clavícula, tornozelo, pulso esquerdo e o antebraço esquerdo se calcificam sozinhos. Quebrei todos os dedos da mão, menos o dedão", detalha.
Ele realizou várias cirurgias e, atualmente, aguarda a realização de um exame chamado arteriografia, que "o IJF está sem o profissional e sem os materiais necessários" para que o próximo procedimento possa ser realizado.
O jovem se preocupa pois aguarda o procedimento com o osso exposto e sem isolamento que, segundo ele explica, deve ser feito para evitar infecções. "Quem tem osso exposto ou ferimento aberto sempre contrai bactérias. E aqui tem demais. Eu tive no começo e foram dois meses de tratamento com um antibiótico fortíssimo", lembra. (Colaborou Ana Rute Ramires)
O que está sendo feito para resolver a situação
O IJF foi alvo, em novembro, de uma ação judicial pelo Ministério Público do Ceará (MPCE), por falta de medicamentos e insumos obrigatórios. A Prefeitura teve até o último dia 6 para tomar providências.
O superintendente do IJF, José Maria Sampaio Menezes Junior, alegou, no dia 3 passado, que "todos os empenhos estão sendo realizados para adquirir esses insumos."
Já o MPCE, na última segunda-feira, 9, informou que "aguarda a Justiça liberar o acesso do MP do Ceará ao plano de ação apresentado pela Prefeitura".
Quanto aos funcionários, o superintendente disse que o IJF "não tem interferência sobre a questão da carreira pública". "O subdimensionamento de funcionários existe, já foi discutido com outras instituições. E nós como autarquia, sempre solicitamos a contratação de mais pessoas. O IJF não tem poder de contratar pessoas. Só faz indicar", acrescentou. A SMS foi contatada, mas encaminhou a demanda ao IJF.
O equipamento teve até ontem para informar sobre o déficit de profissionais. A equipe de transição foi questionada sobre os desdobramentosm, mas não houve retorno até o fechamento desta edição.
Por fim, foram anunciados investimentos milionários. Dentre eles, o governador do Estado do Ceará, Elmano de Freitas (PT), anunciou que o Ministério da Saúde (MS) irá repassar R$ 9,5 milhões para a Santa Casa de Misericórdia de Fortaleza, e R$ 9,6 milhões para o IJF.
Transição governamental revela falta de diálogo
A crise nos equipamentos de saúde de Fortaleza explodiu durante a transição governamental entre opositores - do atual prefeito José Sarto (PDT) ao prefeito eleito Evandro Leitão (PT). Em meio às problemáticas, o processo foi marcado pelo desencontro de informações e a demora na celeridade dos encaminhamentos.
Momento demanda atenção especial dos órgãos fiscalizadores por aumentar o risco de desmontes. O processo está marcado por alegações de desencontro de informações. Conjuntura existia na relação entre Prefeitura e Governo do Estado e, agora, estendeu-se para o governante atual e o eleito de Fortaleza. Ao longo das semanas pós-eleição, houve relatos de falta de dados entre as Comissões e dos gestores com os órgãos fiscalizadores.
Em meio aos casos, Ministério Público informou que "segue em fiscalização" e acionou a equipe de Evandro para esclarecer as reclamações.
Já o Tribunal de Contas do Ceará (TCE-CE), por meio do diretor Cristiano Goes, afirmou: "Estamos acompanhando o processo de transição de Fortaleza, inclusive registrando as matérias de imprensa e relatos chegados ao próprio TCE". O diretor adiantou ao O POVO que o órgão irá agir diretamente em breve, mas preferiu não informar detalhes no momento.
IJF funciona com contingente menor do que o necessário
Nas doze horas corridas de trabalho, funcionários do Instituto Dr. José Frota (IJF) contam que a soma da falta de insumos com os poucos profissionais resulta em acúmulo de escalas, desgaste físico e emocional. "É desesperador. Eu passei situações em que saí chorando do hospital. Você sai com a sensação de que não fez nada", relatou uma enfermeira, que preferiu não se identificar.
O acúmulo ocorre em meio a um déficit de mais de mil pessoas no hospital, de acordo com entidades representantes das categorias profissionais atuantes na unidade.
Desde, pelo menos, 2017, Conselhos recebem denúncias sobre o cenário. Em agosto do ano passado, o Conselho Regional de Enfermagem do Ceará (Coren) e o MPCE, com o aumento da recorrência de denúncias, atestaram a situação atual, pessoalmente, via vistoria. Foi solicitada uma relação de vagas ocupadas e disponíveis ao IJF.
Em março deste ano, o Ministério Público, por meio da 137ª Promotoria de Justiça de Fortaleza, recebeu os dados solicitados, não apenas da enfermagem, mas de modo geral. Foi informado o montante de 1.772 vagas, por lei. Destas, 1.630 estão ocupadas, o que representa uma vacância de 142 funcionários. Foi expedida uma recomendação, mas o problema persistiu e o número, na verdade, mostrou-se ainda maior.
Foi constatada, pelo Conselho Regional de Medicina do Estado do Ceará (Cremec), uma redução de oito a dez cirurgias por turno.
Já na enfermagem, relatório solicitado em março após vistoria do Conselho Regional de Enfermagem do Ceará apontou déficit de 245 enfermeiros e 490 técnicos.
Algumas das vacâncias oficiais foram preenchidas e, em julho, o número caiu para 88 vagas. No entanto, no mesmo mês, o MP tomou conhecimento de 372 processos de aposentadoria pendentes de servidores. Alguns carecem de análise/decisão desde 2016. Ou seja, há oito anos estas vagas de trabalho estão ocupadas, sem plena atividade.
Foi atestada ainda a criação de 54 novos cargos não preenchidos. O IJF alegou ao Ministério Público que "o chamamento dos profissionais está condicionado à análise de disponibilidade orçamentária e financeira" e, em paralelo, apresentou um estudo da Controladoria Geral do Município.
O material mostrou serem necessários 821 profissionais das mais diversas categorias para preencher as escalas descobertas do equipamento. Apenas 57 foram nomeados e estão em exercício até o momento.
Entre 2021 e 2024, segundo a SMS, o quadro foi reforçado com a convocação de 547 novos funcionários. No entanto, os três últimos concursos, realizados em 2020, se vencerão neste mês de dezembro, sem a devida convocação.
Em 2 de dezembro, 26 dias antes do fim do prazo, o Ministério Público do Ceará ingressou com uma Ação Civil Pública (ACP) para a convocação de, no mínimo, 88 candidatos para ocupar os cargos vagos no IJF. A ACP ainda solicita a conclusão, em até seis meses, dos 372 processos de aposentadoria pendentes de servidores do IJF.
Na prática, a superlotação virou rotina. Mais de 6.000 pessoas são atendidas todos os meses no IJF, apenas na emergência. Em 3 de dezembro, funcionários relataram quadros em que apenas um profissional precisa atender cerca de cinquenta pacientes. "É impossível dar um tratamento digno assim", relatou uma das profissionais, que manteve anonimato.
O paciente entrevistado pelo O POVO, que também não quis se identificar, relatou cenários de pessoas "dormindo nos corredores". "Se acumulavam. Cadeiras eram guardadas como se fosse vida. Os profissionais são excelentes, médicos e enfermeiros. Mas estava muito lotado e faltava tudo", informou.