Sustentados por uma comunidade solidária e engajada, os jogos eletrônicos também se afirmam como ferramentas na promoção de uma cultura de filantropia. Enquanto alguns jogos cultivam valores como cooperação e empatia para fortalecer um senso de solidariedade, outros vão além, promovendo ações concretas e entrando na onda do ESG (sigla em inglês para governança ambiental, social e corporativa). Um exemplo é o PUBG Mobile, que lançou em 2024 uma campanha ambiental, conectando as experiências dos jogadores em sua plataforma às reflexões sobre a preservação do meio ambiente em três países diferentes, incluindo o Brasil.
E se o mundo fosse um mapa de jogo, no qual cada ação determinasse não apenas a sobrevivência do personagem, mas a existência do próprio cenário? É com essa provocação que o PUBG Mobile lançou em 2024 a campanha Play for Green (Jogue pelo Verde), transformando diversão em reflexão, e entretenimento em engajamento ambiental.
No coração da campanha estão "As ruínas de Erangel", uma versão sombria do icônico mapa do jogo, onde geralmente são disputadas partidas tanto no cenário casual quanto no competitivo. Na iniciativa, o mapa mostrava aos seus jogadores como Erangel ficará após 100 anos de mudanças climáticas descontroladas.
A vegetação outrora abundante deu lugar à aridez; tempestades de areia assolam o terreno e a água tornou-se um recurso tão escasso quanto a esperança. Esse seria um espelho do que o mundo pode se tornar se ações positivas não forem feitas imediatamente.
A campanha superou a reflexão ao traduzir o engajamento virtual em impacto real. Durante o evento Corra pelo Verde (tradução de Run for Green), cada passo dado pelos jogadores em modos clássicos contribuiu para ações concretas de proteção ambiental no Brasil, Indonésia e Paquistão.
"Só no evento Run For Green os jogadores contribuíram coletivamente para a retirada de 21 mil toneladas de créditos de carbono verificados em três projetos críticos de conservação", comemora em entrevista exclusiva ao O POVO Vincent Wang, chefe de publicação do PUBG Mobile e gerente geral de publicação Global e Esports, Tencent Games.
No Cerrado brasileiro, os esforços se voltaram para o Projeto Bioma Cerrado, uma iniciativa que preserva um dos ecossistemas mais ameaçados do País, crucial para o equilíbrio climático e a biodiversidade. Já em terras indonésias, manguezais foram restaurados e comunidades receberam apoio para práticas sustentáveis; enquanto no Paquistão, houve restauração de florestas costeiras que protegem populações e ecossistemas inteiros.
Outro destaque foi a competição no Mundo das Maravilhas (tradução para World of Wonder), que desafiou os jogadores a imaginar futuros sustentáveis. Com liberdade criativa, eles puderam criar mapas que reinventam o mundo com soluções ambientais. Itens temáticos, como árvores ameaçadas ou cenários que mesclam beleza e degradação, ajudaram a criar uma narrativa visual impactante, levando a reflexão para além das palavras.
"Estes resultados sublinham a capacidade da campanha de ligar os intervenientes aos desafios ambientais do mundo real, cumprindo com sucesso as metas de angariação de fundos e, ao mesmo tempo, gerando um impacto global significativo e profundo", define Wang.
O PUBG Mobile, inclusive, foi vencedor do Playing for the Planet Awards 2024 - prêmio internacional que celebra estúdios de jogos que lideram em sustentabilidade, clima e esforços ambientais. Wang destacou ainda: "Após a ativação, vimos um nível inspirador de engajamento da nossa comunidade, com muitos jogadores realizando ações verdes e se sentindo motivados a continuar fazendo escolhas ambientais positivas."
Relatos de quem atuou no Rio Grande do Sul
De Mossoró, no Rio Grande do Sul, o streamer Matheus "Xarola" foi um dos que se engajaram na causa de ajudar as pessoas na inundação de 2024. Responsável por cativar públicos de todo o Brasil com muito bom humor em suas lives jogando Valorant, ele abriu sua transmissão com intuito de arrecadar R$ 10 mil em doações. Sua ideia era atingir o valor ao longo de 24 horas de live, mas em pouco mais de sete horas ele já havia arrecadado quatro vezes mais.
Ele conta que se comoveu com a tragédia após receber relatos de um fã que foi diretamente atingido pelas águas. "Eu não estava acompanhando muito, mas quando vi a situação, com água entrando nas casas, pessoas perdendo tudo e bairros sendo devastados, pensei: preciso fazer alguma coisa", diz.
Após nove horas de live, Xarola comunicou que precisaria encerrar a live pois precisaria resolver burocracias com o banco para poder retirar o dinheiro da plataforma da campanha e direcioná-los ao Rio Grande do Sul. Ele também deixou links de outras instituições que tinham o mesmo intuito de levar auxílio às vítimas e passou a se preparar para, dias depois, realizar outra live de 24 horas em parceria com outros streamers da organização de esports Furia.
Outro exemplo de como o universo gamer pode se mobilizar para transformar vidas vem de Paula Nunes, conhecida na Twitch como "Choke7". Ela liderou sua comunidade em 2022 em uma campanha de arrecadação em prol do Lar Abrigo Amor a Jesus, uma instituição filantrópica de longa permanência para idosos que fica em Nova Friburgo (RJ).
Impulsionada pelas doações da comunidade, a instituição foi diretamente beneficiada pela empatia e pela capacidade de engajamento que Choke7 encontrou em seus espectadores. Segundo ela, o espírito solidário é capaz de unir jogadores em torno de uma causa.
Atuação em momentos de crise no Brasil
Em momentos de crise, como ao longo da pandemia de Covid-19, streamers e espectadores atuaram juntos para apoiar trabalhadores da linha de frente da saúde e de serviços essenciais, além de pessoas afetadas pela crise global. Mais recentemente, durante as enchentes no Rio Grande do Sul, iniciadas em abril de 2024, comunidades inteiras se uniram online para arrecadar fundos a serem destinados às vítimas do desastre.
Entre os principais nomes brasileiros do League of Legends (LoL, um dos jogos mais populares do mundo), o streamer Gustavo "Baiano" (@baianolol) usou sua relevância para mobilizar sua comunidade em uma corrente solidária durante a pandemia de Covid-19. Com apenas R$ 25 investidos na contratação de um designer para criar a arte de divulgação, Baiano deu vida ao CBolão, um torneio beneficente que reuniu grandes personalidades do LoL no Brasil. O evento, realizado de forma totalmente online, combinou disputas emocionantes entre jogadores profissionais com um propósito maior: levar apoio às pessoas afetadas pela crise.
"A comunidade de LoL estava num momento de muito hype, de fazer competição em estádio para mais de 30 mil pessoas. Com a pandemia, isso deixou de existir. Ao mesmo tempo, a galera estava em casa precisando de entretenimento, algo para se distrair. Notei a necessidade das pessoas de se sentirem juntas, mesmo trancadas dentro de casa. Também veio a vontade de ajudar" explica o streamer, que é natural de Bom Jesus da Lapa, na Bahia.
Logo na primeira edição, o CBolão arrecadou mais de R$ 125 mil, alcançando marcas impressionantes, como mais de 100 mil espectadores simultâneos em diversas partidas. Além do mais, foram direcionadas ainda doações para instituições como o Médicos Sem Fronteiras, que inclusive agradeceu publicamente a iniciativa, reconhecendo a importância da comunidade gamer na ajuda humanitária durante a pandemia. O torneio entrou no gosto do público e tem sido realizado todos os anos, já tendo gerado mais de R$ 1 milhão em doações.
Streamers usam mobilizam suas comunidades com impacto social
Para criar uma ponte que conecta espectadores e streamers além do simples consumo de conteúdo, promovendo uma relação de verdadeira parceria, diferentes plataformas oferecem essa possibilidade. No universo dos jogos digitais, uma das mais renomadas é a Twitch, que impulsiona diariamente volumosas doações e incentiva ações solidárias.
Atualmente, a plataforma de transmissões ao vivo disponibiliza diversas formas de monetização direta para seus criadores de conteúdo. Isso inclui programas de afiliados e parceiros, além de oportunidades para publicidade e arrecadações realizadas por meio de plataformas externas, como Pix, Vakinha Online e Apoia.se. Para fomentar uma cultura de solidariedade dentro de sua própria rede, a "roxinha" também desenvolveu uma ferramenta exclusiva para ações beneficentes realizadas durante as transmissões ao vivo.
A funcionalidade, chamada Charity Tool, permite que os criadores escolham organizações beneficentes de uma lista pré-aprovada, enquanto os viewers podem fazer doações sem precisar sair da transmissão. Além de facilitar o processo, a Twitch garante que os valores arrecadados sejam enviados diretamente às instituições escolhidas, assegurando transparência e segurança para todos os envolvidos.
No universo gamer, portanto, percebe-se que a relação entre streamer e viewers vai muito além de um simples vínculo entre quem produz e quem consome conteúdo. Esse relacionamento pode se traduzir em apoio financeiro essencial para os streamers, possibilitando a aquisição de equipamentos, o pagamento de despesas e a continuidade da produção. Exemplo disso é o caso do cearense Lucas Ferrinho, cuja trajetória está narrada mais acima.
Mas essa relação também possibilita uma elevação nessa conexão, a qual pode garantir um forte impacto social. Muitos streamers aproveitam sua influência para mobilizar comunidades inteiras em torno de causas sociais, incentivando ações solidárias que transcendem as fronteiras do digital.
Como os gamers abraçam causas sociais e transformam em ação
Como exemplo de jogador acolhido por sua comunidade, está o cearense Lucas Aquino. Conhecido como "Ferrinho" (@ferrinhoooo), ele é formado em Direito e até 2020 dividia a rotina burocrática de um escritório com a agitação do universo gamer. Em Fortaleza, sempre esteve imerso no mercado de jogos, organizando campeonatos e eventos, atuando ainda como caster - termo usado para se referir a apresentadores e comentaristas de esportes eletrônicos.
Com a chegada da pandemia de Covid-19, porém, quando o futuro parecia incerto, Ferrinho decidiu apostar nas transmissões ao vivo para compartilhar sua paixão pelos games. Embora o desejo de streamar (fazer transmissões de jogos ao vivo) já o acompanhasse há anos, a falta de equipamentos adequados adiavam seu sonho. Ainda assim, com o isolamento social, ele aproveitou o que tinha à disposição e deu início a uma jornada que permitiu criar conexões com pessoas de todo o Brasil e construir uma carreira na Twitch.
Lucas Ferrinho descreve que, "em uma noite tranquila de quinta-feira", durante uma transmissão ocorreu um desafio inesperado: "Deu tela azul no computador! A placa de vídeo tinha queimado." "Aí coloquei uma meta para comprar outra placa de vídeo. Falei pro pessoal que ia me organizar financeiramente para isso, mas para quem pudesse ajudar eu ia realizar uma campanha de arrecadação…", recorda.
"Surpreendentemente, o pessoal foi donatando (doando). Tinha gente do Rio Grande do Sul mandando R$ 30, gente de São Paulo mandando R$ 50. A galera foi doando e, em seis dias, eu já tinha R$ 850, dinheiro suficiente para comprar uma nova placa de vídeo. Foi uma surpresa, porque eu sabia que os games tinham essa força, pois já tinha visto campanhas de outros streamers, mas não sabia que isso viria para mim", reconhece.
Inspirado pela comunidade, Lucas Ferrinho transformou as perspectivas sobre o seu trabalho como streamer. Agora mais do que apenas jogar títulos como CS2, Valorant, Dota 2 e Rocket League, ele transformou suas lives em um espaço para interagir. Para isso, buscou criar um ambiente acolhedor e interativo, tentando fazer com que os viewers (espectadores) se sentissem à vontade para conversar, desabafar e se divertir. Hoje, além de jogar, ele assiste a vídeos com o chat, discute assuntos variados e constrói relacionamentos com sua comunidade. Ferrinho também realiza uma live mensal em que coloca os seguidores para soltar a voz em cantorias ao vivo.
Tudo isso é usado como forma de retribuir o apoio e de estar sempre mais próximo das pessoas que o acolheram. "Eu me sinto muito abraçado pela comunidade, porque, se for parar para pensar, na realidade, eu falo olhando para uma câmera, mas sei que ali são pessoas que estão me ouvindo, me apoiando, e isso traz um sentimento de muita gratidão", afirma, reforçando que todo o carinho recebido é retribuído com ainda mais lives, conversas e dedicação.