Quatro dos cinco cemitérios públicos de Fortaleza estão com capacidade máxima de atuação neste início de janeiro, segundo dados da Secretaria Municipal da Gestão Regional (Seger). Sem vagas para novos mortos, as unidades têm recebido apenas cadáveres de pessoas que já tenham jazigos ali reservados, limitando o acesso aos que já têm familiares enterrados no local.
O POVO visitou os cemitérios Parque Bom Jardim (Siqueira), São José (Parangaba), Santo Antônio (Antônio Bezerra), São Vicente de Paula (Mucuripe), bem como o do bairro Messejana. Dentre esses, apenas o primeiro informou ainda ter vagas para mortos que não tenham lugar reservado.
Essa lotação não é de hoje. Funcionários dos equipamentos visitados indicam que alguns dos locais, como o São José, trabalham nesses moldes há pelo menos três décadas. De acordo com a Seger, isso ocorre porque os cemitérios não são originalmente públicos, mas sim passaram a ter administração pública ao longo dos anos.
Fundados há cerca de um século, os equipamentos inicialmente eram geridos pela iniciativa privada. Logo que foram inaugurados, esses proprietários venderam jazigos para algumas famílias, que até hoje mantêm essa posse, mesmo após os empreendimentos serem repassados ao Município.
Desse modo, não existe nenhuma taxa ou qualquer pagamento das famílias à Prefeitura para a manutenção desses jazigos. O que ocorre é que, de cinco em cinco anos, as documentações que comprovam a permissão para usá-los devem ser apresentadas na Secretaria Regional dos bairros de cada cemitérios, a fim de manter o cadastro atualizado.
Os quatro cemitérios que já se encontram lotados possuem capacidade bastante inferior se comparados ao Parque Bom Jardim. Juntos, eles somam cerca de oito mil jazigos, o que representa menos de 15% das sepulturas presentes na unidade do bairro Siqueira.
Em contrapartida, essa alta quantidade de túmulos no Parque Bom Jardim tem sido cada vez mais demandada, já que conforme funcionários das quatro unidades lotadas, todos os mortos sem jazigos e indigentes que chegam aos equipamentos, são remanejados para o maior cemitério da cidade.
A supervisora do Núcleo de Direitos Humanos e Ações Coletivas (NDHAC) da Defensoria Pública do Estado do Ceará (DPCE), Mariana Lobo, explica que essa alocação é comum nas cidades com grande população como Fortaleza. Entretanto, a defensora ressalta que independente do número de solicitações, o município é obrigado a atender toda a demanda da população em vulnerabilidade social que busca esse serviço.
"É princípio da dignidade da pessoa humana e está previsto no Código Civil o direito ao sepultamento digno. Óbvio que existem questões administrativas de locais desse sepultamento, mas o Município tem que providenciar um local para esse sepultamento de maneira digna", pontua Lobo.
Esse foi um cenário visto por exemplo durante o ápice da pandemia do novo coronavírus, onde os mortos por Covid-19 eram todos enviados para o Parque Bom Jardim. Segundo a administração do cemitério, a unidade que hoje realiza em média 13 sepultamentos diários, chegou a sepultar 46 pessoas em um período de 24 horas nos meses de maior incidência de mortes por casos da doença.
A fim de controlar a lotação no Parque e garantir a disponibilidade de vagas para novos mortos, a Prefeitura informou que realizada exumação dos corpos ali enterrados a cada cinco anos, tendo a última ocorrido em agosto de 2024. Nas outras quatro unidades a remoção dos cadávers ocorre mediante solicitação da família, após no mínimo cinco anos de sepultamento.
Em 2024, 91 corpos foram sepultados sem identificação em Fortaleza
Único com vagas para população geral, o Parque Bom Jardim também é o destino final dos corpos não reclamados, popularmente chamados de "indigentes". Todo mês o cemitério sepulta um grupo de cadáveres em parceria com a Perícia Forense do Estado do Ceará (Pefoce), órgão responsável pela identificação desses indivíduos.
Dados do Perícia indicam 15 inumações sociais ao longo do ano de 2024, onde 150 mortos foram sepultados. Entre estes, 59 cadáveres foram identificados, enquanto outros 91 permaneceram sem nominação.
Atualmente, 45 corpos aguardam reclamação e estão sob responsabilidade da Pefoce. As famílias com parentes mortos ou desaparecidos que desejarem reconhecer um cadáver devem se dirigir ao setor de acolhimento familiar do órgão, localizado na avenida Presidente Castelo Branco, 901, bairro Moura Brasil, em Fortaleza.
Até chegarem ao Parque, os corpos passam por etapas de identificação, a fim de encontrar o nome da pessoa morta, bem como seus familiares. O procedimento inicial é uma papiloscopia, técnica que colhe as impressões digitais dos cadáveres.
Após a coleta, a Pefoce busca se essas impressões digitais já foram utilizadas em documentos emitidos pelo órgão, como a carteira de identidade. Caso não seja possível nominar a pessoa nesta etapa, o corpo é submetido a um odontograma e à coleta de material genético.
O resultado dos exames fica guardado até que uma família apareça na Pefoce procurando reconhecer um corpo. Caso estes tenham exames dentários do parente falecido, a perícia compara com o resultado do cadáver embalsamado.
Além da arcada dentária, também é possível fazer o reconhecimento a partir da comparação entre o material genético da pessoa que procura um familiar morto com o DNA do corpo não reclamado. Deste modo, é seguro afirmar se há parentesco ou não.
A espera pelo reconhecimento de familiares dura entre dois e três meses, tempo que o corpo fica armazenado na Pefoce. Após esse período, o cadáver é encaminhado junto a outros mortos para uma inumação social (enterro coletivo) no Parque Bom Jardim.
Cada corpo é colocado em uma sepultura e identificado com numeração específica. Esses códigos são passados à Pefoce, que os mantém guardados para o caso de alguma família aparecer para reclamação póstuma.
"A gente nunca inuma em um espaço de tempo curto. A gente procura dar o máximo de tempo que a gente consegue, para dar tempo de que alguém possa vir reclamar esse corpo, famílias com parentes desaparecidos venham e consigam reconhecer o corpo", explica a coordenadora de Medicina Legal da Pefoce, Ana Leopoldina.
Quem passou por uma espera até maior do que essa foi Andressa Menezes, 49, que perdeu o filho, Felipe Menezes, 22, em 2022. No dia 4 de agosto daquele ano, ela foi informada pela companheira do jovem de que ele teria saído de casa, no município de Pacajus, Região Metropolitana de Fortaleza (RMF) e não retornado mais.
A peleja só foi encerrada em outubro do ano seguinte, quando Andressa foi informada pela DPCE de que a ossada de seu filho estava enterrada no Parque Bom Jardim. Ao recordar o caso, a mãe lembra da dor que sentiu ao confirmar que Felipe estava morto, mas ao mesmo tempo ressalta o alívio de finalmente poder dar um sepultamento digno ao jovem.
"Foi doloroso porque eu, como mãe, no fundo, ainda tinha esperanças de achar ele. Mas acalmei meu coração, porque eu dizia 'meu Deus será que eu nunca vou encontrar meu filho?'. Sou muito devota de Nossa Senhora e sempre pedia 'Nossa Senhora, devolve meu filho do jeito que for'. De qualquer maneira, eu fui atendida", comenta a agricultora.