Há quase quatro anos, o estudante de Jornalismo Lucas Vieira se arruma, pega sua bengala e sai de casa para mais um dia de aula na Universidade Federal do Ceará (UFC). Cego e com mobilidade reduzida, ele encara desafios diários para se locomover pelo campus.
Para ele, as dificuldades vão além das barreiras físicas — há também os obstáculos invisíveis, criados pelo desconhecimento das necessidades de quem aprende de um jeito diferente.
A realidade de Lucas reflete a de aproximadamente 1.500 estudantes com deficiência nas três principais universidades públicas de Fortaleza.
Somente na Universidade Federal do Ceará (UFC), há 1.188 estudantes com deficiência distribuídos entre a graduação, a pós-graduação e casas de cultura. Isso representa cerca de 3,6% do total de alunos, que soma 33 mil estudantes.
Na Universidade Estadual do Ceará (Uece), são 244 estudantes com deficiência, matriculados nos campi Itaperi e Fátima. Esse número representa cerca de 1,5% do total de 16.738 alunos de graduação.
No campus Fortaleza do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Ceará (IFCE), há cerca de 145 estudantes com deficiência, o que corresponde a 2,08% do total de 6.986 alunos.
Pessoas com deficiência (PCDs) têm direito a cotas em universidades e institutos federais desde a sanção da Lei nº 13.409/2016, que ampliou a Lei de Cotas (nº 12.711/2012). O estudante da UFC, Lucas Vieira, 28, ressalta, no entanto, que não basta apenas garantir espaço para pessoas com deficiência, “é preciso garantir que elas tenham condições de estudar e participar plenamente da vida acadêmica”.
O jovem perdeu a visão aos 12 anos, devido à atrofia do nervo óptico, condição que o fez enxergar apenas vultos e perceber a luz. Além disso, tem mobilidade reduzida devido à mielomeningocele [malformação congênita da coluna vertebral] e à hidrocefalia, o que o leva a utilizar órteses nas pernas para auxiliar na locomoção.
O estudante menciona desafios estruturais no prédio onde cursa a graduação, no campus Benfica, como a ausência de sinalização apropriada. "Uso o elevador para acessar o segundo andar, mas sempre preciso de ajuda para pressionar os botões, pois não há sinalização em braile", explica.
Ele também enfatiza que as calçadas e pisos irregulares dificultam a locomoção. "As calçadas e os pisos são irregulares, dificultando a mobilidade tanto para pessoas com deficiência visual quanto para cadeirantes", pontua.
Desafios semelhantes são observados por Bianca Gomes, 19, que cursa Serviço Social na Uece. Ela conta que observa melhorias estruturais nos últimos dois anos, como a instalação de pisos táteis em pontos da universidade.
“No entanto, ainda falta nos corredores centrais e nos blocos mais movimentados. Também falta elevadores nos blocos que possuem andares superiores”, detalha.
Bianca também questiona a eficácia das adaptações existentes: “Os banheiros acessíveis existem, mas aí entra um problema: nos andares superiores, eles estão adaptados, mas se uma pessoa cadeirante não consegue subir sem elevador, de que adianta?”
Conforme Plínio Silveira, mestre em Arquitetura e Urbanismo pela UFC e especialista em acessibilidade, a longevidade das universidades de Fortaleza é o principal desafio para uma infraestrutura acessível.
"Principalmente as públicas possuem edifícios muito antigos, construídos antes da existência das legislações que asseguram a acessibilidade, o que dificulta a adaptação. Isso impõe desafios à administração e aos setores de projetos, pois adaptar prédios existentes não é tão simples", destaca.
Plínio destaca ainda que frequentemente as adaptações não atendem às normas técnicas. "Muitas universidades implementaram adaptações básicas, como rampas de acesso. No entanto, nem sempre essas adaptações seguem rigorosamente os padrões da ABNT, o que pode comprometer sua eficácia", explica o arquiteto.
Um exemplo, segundo ele, é a falta de pisos táteis, essenciais para a orientação de pessoas com deficiência visual. “Quando existem, frequentemente não apresentam o contraste necessário para pessoas com baixa visão”.
Ele também destaca a falta de rotas acessíveis entre edificações e a má qualidade do pavimento, como calçadas irregulares, que dificultam a locomoção de cadeirantes.“Essas rotas devem contar com rebaixos, travessias elevadas, padronização das calçadas e piso tátil”.
Vitória Rocha, 26, é estudante do quarto semestre de Engenharia da Computação no campus Fortaleza do Instituto Federal do Ceará (IFCE). Surda, ela encontrou na tecnologia um universo de possibilidades, mas também esbarrou em barreiras que vão além das questões acadêmicas.
Ela conta que a adaptação, muitas vezes, recai exclusivamente sobre o estudante com deficiência. “Muitas vezes, os materiais não são adaptados para nós, surdos”, aponta.
Além disso, explica que alguns professores não têm conhecimento sobre como lidar com alunos com deficiência. “Na prática, somos nós que precisamos nos adaptar e nos impor para sermos reconhecidos. Temos que insistir para que eles adaptem o ensino, o que deveria ser um processo natural”, critica Maria Vitória.
Outra grave questão é a oferta limitada de intérpretes de Língua Brasileira de Sinais (Libras). Segundo João César Abreu de Oliveira Filho, coordenador do Núcleo de Acessibilidade às Pessoas com Necessidades Específicas (NAPNE) do IFCE Fortaleza, o núcleo possui 14 intérpretes de Libras: 13 terceirizados e um concursado.
“Muitos desses profissionais terceirizados enfrentam condições de trabalho precarizadas, com altas cargas horárias e salários reduzidos. Por isso, defendemos a regulamentação da profissão, incluindo a retomada dos concursos para intérpretes de Libras na rede federal”, comenta o professor.
Ele faz referência ao Decreto nº 10.185 do Governo Federal, que extinguiu em 2019 o cargo efetivo de Tradutor/Intérprete de Libras. Desde então, conforme o professor, o número de profissionais concursados – que já era insuficiente – vem diminuindo ainda mais.
Segundo Leonardo Padilha dos Santos, professor do Departamento de Letras-Libras e Estudos Surdos da UFC e doutorando em Educação, a contratação de intérpretes terceirizados nem sempre é suficiente. “Esses profissionais são contratados por períodos curtos, como seis meses, e quando seus contratos se encerram, os alunos ficam sem suporte”, destaca.
Ele ressalta que a atividade do intérprete exige revezamento para evitar sobrecarga, com intervalos a cada 15 minutos devido ao esforço físico e mental. Por isso, é necessária a ampliação da oferta de profissionais, já que o trabalho é feito em duplas ou trios.
Leonardo ressalta que a falta de intérpretes compromete a qualidade do ensino e reforça desigualdades educacionais. “Justificativas financeiras não podem substituir o direito garantido por lei. É essencial ampliar a formação e a contratação de profissionais para garantir uma educação inclusiva aos alunos surdos”, conclui.
A falta de intérpretes também é uma questão identificada na Universidade Federal do Ceará. Segundo a professora Marilene Calderaro da Silva Munguba, diretora da Secretaria de Acessibilidade da UFC, a instituição conta com cinco intérpretes efetivos em atividade.
Para suprir essa demanda, a universidade contratou intérpretes terceirizados. “Conseguimos dobrar a carga horária dos intérpretes terceirizados, o que permitirá a participação de alunos surdos em atividades como monitoria, extensão e pesquisa”, explica.
Quanto à acessibilidade nos prédios mais antigos, a diretora explica que, em muitos casos, não é possível instalar elevadores ou plataformas elevatórias. “Por isso, orientamos os coordenadores de curso a evitar alocar turmas de alunos com mobilidade reduzida nesses locais, a fim de minimizar barreiras e evitar constrangimentos.
Ela ainda explica que as melhorias estruturais acontecem conforme orçamento disponível. Segundo a diretora da Secretaria de Acessibilidade, a próxima ação é a criação de rotas acessíveis no Centro de Humanidades 1, no Benfica, “estamos aguardando a aprovação do orçamento para iniciar as obras”, diz.
Marilene Calderaro também ressalta a garantia de acessibilidade nas duas residências universitárias em construção no Benfica, com previsão de entrega ainda em 2025.
Contudo, a diretora ressalta que, atualmente, não há transporte adequado dentro do campus para alunos com mobilidade reduzida. “Os ônibus universitários são cedidos pela prefeitura. Estamos tentando resolver essa questão em diálogo com a Secretaria de Transporte para tornar 100% da frota acessível”, afirma.
No IFCE Fortaleza, onde o campus é predominantemente vertical, há três elevadores. “Mas precisamos de mais elevadores e rampas”, diz João César Abreu de Oliveira Filho, coordenador do NAPNE.
De acordo com a Uece, a universidade vem buscando, pouco a pouco, cumprir as determinações da NBR 9050. “Existem locais já atualizados com pisos, elevadores acessíveis, rampas acessíveis, em processo contínuo de cumprimento às normas”.
Segundo a Instituição, calçadas estão em reforma e terão piso tátil. A Uece diz oferecer transporte interno com horários específicos para o complexo esportivo, com prioridade para alunos com deficiência. O NAAI ainda solicita, quando necessário, transporte exclusivo para estudantes com deficiência visual.
A jovem Yanne Sibéria, 20, ficou paraplégica em 2020 após ser baleada pelo próprio pai, que atirou contra ela, seu irmão e sua mãe. O caso ganhou grande repercussão na época. Enquanto os dois se recuperaram, Yanne infelizmente perdeu o movimento das pernas.
Cinco anos após o ocorrido, Yanne agora é estudante de Direito na Universidade de Fortaleza (Unifor). Ela destaca que, embora tenha uma boa infraestrutura em comparação com outras instituições, ainda há pontos na Unifor serem melhorados.
Segundo ela, um dos maiores problemas está nas rampas de acesso. “A inclinação é inadequada e o piso não tem antiderrapante. É perigoso até para quem anda”, comenta. Yanne ainda destaca falhas nos banheiros, pois poucos têm o tamanho adequado ou apresentam portas que "abrem para dentro", que dificultam a utilização.
Cadeirante, a aluna explica que precisa usar a força dos braços para se deslocar em sua cadeira de rodas e a má estrutura das áreas dificulta ainda mais a tarefa.
“O piso é horrível. Tem muitos buracos e ondulações, e eu já quase caí sozinha por causa disso”, conta. Já passei por isso também na chuva e quase caí nas rampas tentando subir sozinha”, desabafa.
A questão do estacionamento também é um desafio constante. “O campus é gigantesco e o estacionamento dos alunos fica longe dos blocos. Já o estacionamento dos funcionários fica dentro do campus. Contudo, eles cobram mais de R$ 100 para fazer uma carteirinha que permite estacionar nesse local. Eu acho um absurdo ter que pagar para usufruir de um direito”, critica.
De acordo com a Universidade de Fortaleza (Unifor), atualmente há cerca de 295 estudantes com algum tipo de deficiência matriculados na instituição.
Ao O POVO, a Unifor esclareceu ter criado, em 2017, o Plano de Ação para a Acessibilidade, com foco em adaptações estruturais no campus. Além disso, anualmente, as necessidades de intervenção e melhorias são incluídas no Plano de Investimento.
“O Complexo de Medicina Veterinária, sendo um projeto recente, já foi planejado conforme as diretrizes da Norma Brasileira NBR 9050, e as adequações nos edifícios mais antigos também seguem essa norma”, disse.
Também informou que as vagas de estacionamento ficam próximas às salas de aula e laboratórios, facilitando o acesso aos alunos com deficiência. A universidade disse também que utiliza pisos adequados nas áreas comuns para prevenir acidentes, e rampas e rebaixos nas calçadas garantem maior facilidade de circulação. Além disso, oferece transporte acessível, com ônibus noturno e diurno para o Complexo Veterinário, além de carrinho elétrico para deslocamentos internos.
Se o ambiente acadêmico já apresenta desafios, a inserção no mercado de trabalho pode ser ainda mais complexa para pessoas com deficiência. Para Lucas Vieira, estudante de Jornalismo na Universidade Federal do Ceará, muitas empresas não estão preparadas para receber PCDs.
"Para mim, que sou cego, os computadores das empresas nem sempre possuem os programas necessários ou não estão configurados corretamente", relata. Além disso, a automatização e os prazos rígidos do mercado nem sempre consideram as limitações enfrentadas por esses profissionais.
"Se o leitor de tela falha, a entrega de uma tarefa pode atrasar, e a pessoa pode ser penalizada por isso. O que falta é mais humanidade, mais empatia para enxergar as dificuldades do outro."
Já Vitória Rocha, estudante de Engenharia da Computação no Instituto Federal do Ceará (IFCE), a inserção no mercado de trabalho também pode ser mais complexa para pessoas com deficiência auditiva.
“Além das exigências técnicas, algumas empresas também esperam que o candidato seja oralizado, pois a equipe geralmente não conhece Libras. A responsabilidade da comunicação acaba recaindo apenas sobre a pessoa com deficiência, quando, na verdade, a empresa também deveria se adaptar”, critica.
O Ministério Público Estadual (MPCE) pode ser acionado em casos de não cumprimento da acessibilidade física, digital e pedagógica, tanto em universidades públicas quanto privadas. As denúncias podem ser feitas à Secretaria Executiva das Promotorias de Justiça responsáveis pela Defesa do Idoso e da Pessoa com Deficiência, na rua Maria Alice Ferraz, 120, Luciano Cavalcante, Fortaleza, pelo telefone/WhatsApp (85) 98956-5840 ou e-mail sepid@mpce.mp.br.