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Pandemia impactou na experiência de vida em comunidade
Reportagem

Pandemia impactou na experiência de vida em comunidade

|Análise| Psicanalista Christian Dunker discute a necessidade de "superar o modelo antigo de saúde mental" e propõe modelo focado no cuidado consigo, rede de cuidado e a perspectiva do território
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CHRISTIAN Dunker é psicanalista e professor titular da USP (Foto: Divulgação)
Foto: Divulgação CHRISTIAN Dunker é psicanalista e professor titular da USP

O POVO conversou com Christian Dunker, psicanalista, professor titular em Psicanálise e Psicopatologia do Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo (USP). Dunker discute a necessidade de "superar o modelo antigo de saúde mental", baseado em medicação, psicoterapia e hábitos saudáveis, e propõe um novo modelo focado no cuidado consigo, rede de cuidado e a perspectiva do território.

O psicanalista fundou e coordena o Laboratório de Teoria Social, Filosofia e Psicanálise da USP. Ele foi duas vezes agraciado com o prêmio Jabuti por "Estrutura e Constituição da Clínica Psicanalítica" (Annablume, 2010) e "Mal-Estar, Sofrimento e Sintoma" (Boitempo) e é coautor de O palhaço e o Psicanalista - como escutar os outros pode transformar vidas, pela Editora Planeta.

O POVO - Em que medida a saúde mental da população foi afetada pela pandemia? Quais aspectos o senhor poderia destacar nessa relação?

Christian Dunker - Eu destacaria três movimentos, três efeitos dessa nossa experiência com a Covid. O primeiro deles é um aumento da importância, da relevância da autopercepção que as pessoas têm da sua própria saúde mental e daqueles que estão no entorno. Ou seja, houve um aumento muito significativo da pauta da saúde mental. Muitas iniciativas ligadas a suportes. Seja de redes sociais, seja de redes de apoio, agora com inteligência artificial.

Começou a ficar mais claro que as pessoas estão aumentando a sua preocupação com a saúde mental. Isso você tem pesquisas mostrando. Especialmente a geração millennial, geração Z. Elas têm mais preocupação com a saúde mental do que com a saúde geral, vamos dizer assim, né? Isso tem um lado interessante, mas acaba refletindo uma espécie de crise do paradigma que a gente tinha antes em termos de saúde mental. Então, muito baseado em meditação e melhora de parâmetros em qualidade de vida como alimentação e cuidados com o corpo.

O segundo efeito é o que a gente poderia chamar assim da pior estrutural que aconteceu nas relações na saída da experiência de isolamento social. Isso atingiu grupos etários, grupos de gênero de forma muito diferente. A reinserção na escola, muitos conflitos decorreram da perda de construção de habilidades sociais mais coletivas durante o tempo de isolamento. Atingiu muita gente da terceira idade, gente de 5 a 8 anos, gente que estava indo para a adolescência. Junto com isso, entre esses grupos, aqueles que tiveram uma piora da sua saúde mental por um transtorno precedente.

Os deprimidos pioraram, os ansiosos pioraram, os quadros de transtorno obsessivo compulsivo pioraram. A gente teve aumento de abuso de substâncias, a gente teve o fenômeno do aumento da violência nas escolas, que sucedeu assim ao ano do final da Covid. Então, isso também tem dados que dão suporte. Dados que falam em incremento de 70%, 50% mais na população geral de depressão e ansiedade, que são dois termômetros, vamos dizer assim, mais básicos saúde mental.

A terceira diz respeito a colocação de novos temores, de efeitos residuais, sequelas mesmo. Seja por Covid longa, seja pela perda de pessoas queridas, seja pela recuperação com sequelas de muitas pessoas, ou seja, muitas formas de vida foram, vamos dizer assim, transformadas ou destruídas pela experiência da Covid. Então, entre esses fatores, a gente poderia dizer o aumento de uma certa indignação social pelo fato de o Brasil ter se conduzido tão mal na resposta sanitária ao problema da Covid.

A gente tem um déficit de óbitos. São quase alguns dizem 500 mil, outros dizem 600 mil, que poderiam ter sido evitados. Então, esse é um efeito mais pervasivo porque ele concorre para confirmar um certo temor social de que a vida vale pouco, de que o estado se importa pouco com as vidas, de que os sistemas de saúde se importam pouco com tua vida e que, no fundo, isso vai alimentar uma série de outras violências, uma série de outras conflitivas e iniquidades que a gente atravessa. São três frentes de trabalho para quem quer pensar Covid depois de 5 anos.

OP - Qual perfil foi mais atingido, que sentiu mais essa consequências?

Christian - É um pouco intuitivo porque isso tem muita avaliação com recorte de classe, com região do país, com o suporte que você tem em termos de escola, de saúde. Mas fazendo uma generalização, aquelas crianças que estavam no início do seu processo de socialização escolar, 5 anos, 6 anos, que estavam entrando e tiveram que passar por um processo de retorno para casa. Não é aquela que adiou entrar na escola, mas a que já tinha uma experiência escolar e que voltou, perdendo laços, perdendo o seu processo de contato com o outro. Essa foi uma população que teve um prejuízo importante.

A segunda são os adolescentes, que estavam no processo de grupalização, de definição de identidade, que já estavam numa numa certa turbulência que caracteriza a adolescência e se viram obrigados a enfrentar isso de forma solitária. Ou então em contato com outras etariedades. O conflito que se espera acontecer entre adolescentes e seus pais ou cuidadores. Porque você não tinha aquela válvula de escape, que é o teu deslocamento identificatório pro grupo de referências.

Também a entrada na vida sexual, os primeiros encontros, as primeiras paixões, isso tudo foi prejudicado. A ponto de, agora, a gente colher — isso para alguns é um argumento — um declínio muito importante das relações sexuais na geração deles. Estão transando muito menos do que as gerações anteriores. Essa, claro, é uma curva que já vinha vindo, mas se imagina que a Covid não ajudou.

A terceira idade também foi muito atingida porque é mais frequente a presença sequelas, porque retirar relações nesse momento da vida é um prejuízo cognitivo, emocional, vinculatório, muito maior do que em outras fases da vida.

OP - Professor, com relação à geração jovem que, além da pandemia, tem questões como o uso das redes sociais, como o senhor acha que isso afetou?

Christian - Então, certos aspectos mais nocivos, como o excesso do uso de telas, o mau uso de telas, foram turbinados pela Covid. A gente vê um aumento muito expressivo, de fenômenos de linhagem narcísica. O fechamento em grupos, aquela irritação, agressividade com a contrariedade, com pontos de vista e formas de vida que não são simétricas e congruentes com as suas. Uma dificuldade de negociação, né? Não só com outro, mas consigo mesmo.

A gente tem fenômenos do narcisismo das primeiras diferenças. Então, o que alguns chamam de existe uma sensibilidade a um comentário, a uma colocação. Porque é como se aquela flexibilização na identidade da representação que a gente tem em si mesmo ficasse mais potencializada, ficasse mais fragilizada pelo uso de tela.

Você tem um incremento de exposição de vida privada, um incremento da importância da vida pública, da socialização por por likes, por por exposição ao palco. E você tem um declínio de duas experiências muito protetivas em termos de saúde mental. A primeira delas é a intimidade. A gente vê prejuízos para a intimidade quando tudo que você fala pode ser usado contra você. Tudo que você fala deixa rastro em memória, pode ser tirado de contexto, pode ser manipulado.

Tudo isso acua as pessoas e torna o outro perigoso. Foi exatamente essa a mensagem que a gente foi recebendo durante a Covid. O outro é perigoso porque pode te contaminar. O outro você não sabe quem é, o outro você não sabe que política de proteção ele tá seguindo ou não tá seguindo.

A segunda experiência que a gente perdeu ou reduziu, não foi favorecida, é a da comunalidade. Que é a experiência de você está um entre outros. De você ter mais um. De você não ser uma pessoa especial, não ser uma pessoa privilegiada, não ser uma pessoa que tem dotes do poder e precisa, vamos dizer assim, de super conhecimento. E isso a gente aprende estando na massa, vivendo. O que é um carnaval, um bloquinho de carnaval? O que é participar de uma torcida num jogo de futebol? O que é passear nas ruas e sentir que você é meio anônimo mas que você tá ali em contato com as pessoas também, né?

Isso tudo foi prejudicado pela Covid e potencializado pela linguagem digital. Porque a gente acha que a gente tá realmente um entre outros quando a gente tá na nossa bolha digital que a gente escolheu, que o algoritmo selecionou, que você vai formando a partir das suas de inclinações de consumo. Não é o mundo real do estar um entre outros, porque você selecionou aquele você tá no condomínio, né?

OP - O senhor acabou já falando um pouco disso, mas de que forma esse contexto da pandemia e o retorno à "vida normal" afetou a forma como as pessoas se relacionam, se socializam? Essa questão do individualismo, como é que foi o choque nesse retorno?

Christian - Contrariou um pouco a nossa expectativa, talvez nossa expectativa fosse crivada assim de um certo otimismo. Mas, realmente, temos que admitir que a gente esperava mais aprendizagem por parte das pessoas ao longo dessa experiência tão sofrida.

Parece que assim houve um bloqueio como costuma, às vezes, acontecer em experiências socialmente traumáticas. A gente não fala mais sobre isso, a gente esquece, já passou, ficou para trás, 'não gosto nem de pensar naquela época'. E os efeitos daquilo? Portanto, os efeitos transformativos ficam retidos. Como se a gente tivesse entrado numa neblina, saiu da neblina e a vida continua. Não, né?

É muito possível que efeitos residuais da Covid comecem a se mostrar agora. Comecem a aparecer em certas dificuldades de socialização, como você falou, né? Em certas dificuldades, por exemplo, de se comprometer com o futuro, né? Isso emergiu de forma um pouco saliente depois da Covid, né? Muitos jovens falando algo assim: "Olha, eu não vou fazer meu plano de saúde, meu plano de aposentadoria porque o mundo vai acabar antes, né? Essa história climática, o degelo, o calor que tá aumentando. No fundo, eu não preciso me preocupar tanto assim com o futuro."

O futuro é tão perigoso. O futuro é uma figura do outro, né? É esse outro que você não sabe que pode ser perigoso ou não. Então muitos dizem: "não me ocupo tanto assim de fazer planos pro futuro, de desejar um futuro. Eu vou mais ou menos sobrevivendo porque a vida me mostrou que os planos podem ser atravessados, interrompidos, destruídos de uma hora para outra, como a gente teve no caso da Covid."

OP - E quais caminhos as pessoas devem buscar no sentido de ter mais saúde mental? Hoje, há um aumento do discurso de estilo de vida saudável, bem estar nas redes sociais. Mas o que as pessoas podem fazer ativamente para ter uma melhor saúde mental?

Christian - Nessa matéria, a gente tem uma certa convicção de que o modelo antigo não funciona mais, mas a gente não tem efetivamente um novo modelo.

OP - O que seria o modelo antigo?

Christian - Medicação, esporte e alimentação. "Faça isso porque sua saúde mental vai funcionar. Porque, no fundo, todos nós temos uma depressão, um autismo ou um TDAH. Conforme-se com isso e entenda que isso é uma diabetes mental, uma doença crônica que você tolera." Não é bem assim, né? Tanto pela terapêutica, pela diagnóstica, quanto pela relação com o problema. Então, muitas empresas, muitas associações, muitos grupos têm se formado para enfrentar essa essa questão.

O que a gente tem mais ou menos estabelecido é que a gente precisa entender que a saúde mental não é uma coisa para especialista só. Ela não começa quando você tem um sintoma, ela tem que começar em um cuidado anterior, que envolve muita coisa. Cada um tem o seu caminho, mas a escuta em relação é muito importante. Aprender a escutar, aprender a se escutar, aprender a escutar o outro. Isso não precisa ser especialista para praticar. Isso envolve formação de repertório, passa pela cultura, pelo teatro, pelo cinema. Isso envolve procura de certas experiências que têm valor terapêutico para as pessoas.

Para pensar esse novo modelo de saúde mental, você tem que olhar para o teu sofrimento. Do que que ele é feito? Qual é o sofrimento que a gente tem que aceitar, porque a vida vem com o sofrimento? Qual é o sofrimento que tem algo a mais. Quais são as coerções de pensamento, de comportamento, de afetos que a gente tá vivendo? Como elas estão sendo acolhidas, negadas, tratadas no cenário das minhas relações sociais, afetivas, amorosas?

E esse tipo de reflexão faz parte do primeiro nível do cuidado de saúde mental. É preciso desenvolver uma cultura do cuidado de si como a gente teve até aqui o desenvolvimento de uma cultura do cuidado para a saúde. Todo mundo controla o açúcar, cuidado com a gordura, emagreça, vai à academia. Isso tá implantado e em relação à saúde mental? Zero.

O primeiro ponto é cuidado consigo. Cuidado, atenção, escuta. Quais são os seus recursos básicos de saúde mental? A questão básica não são seus sintomas. Não comece pelos seus sintomas, não comece por ter depressão, TDAH. Comece por onde você sofre, como você sofre, do que você acha que sofre. O segundo ponto é que a saúde mental precisa ser enfrentada em rede.

O pior inimigo da saúde mental é a solidão, o isolamento. É você achar que tem certas coisas que estão em você e você tem que se envergonhar disso, que você tem que resolver isso sozinho porque isso é culpa sua. Essa abordagem moral da saúde mental, assim como a abordagem exclusivamente medicamentosa, fazem parte do passado, fazem parte da abordagem antiga. A gente tem que superar isso.

O primeiro nível do cuidado, segundo nível da rede. Qual é a tua rede de segurança de saúde mental? Onde estão aqueles amigos que você diz: "Ah, uma hora eu vou vê-los, uma hora eu passo lá. Onde está a tua relação com a família? Onde tá o jantar junto, almoçar junto? Onde tá o compartilhar dos problemas? "Isso depois eu vejo". Você está prejudicando o seu recursos de saúde mental.

O terceiro nível é que a saúde mental deve ser pensada no território. Nós estamos juntos aqui. Não adianta dizer que eu tenho o tio Cris lá em outro estado, vamos lá. Não, não é assim. Isso é parte da cultura antiga baseada em especialistas, em psicoterapia e profissionalização do cuidado de saúde mental. É muito importante que a gente qualifique, que a gente organize melhor as práticas de saúde mental. Isso dá para você entender no campo. O que é uma psicoterapia, o que é um embuste? O que é um sujeito que promete mundos e fundos? Um mentiroso, um charlatão.

E surge aí na internet à rodo. É importante a gente tentar diferenciar as coisas. Mas também criar uma cultura em que a gente possa publicamente saber onde estão as boas práticas e onde estão as práticas problemáticas. É um pouco que a gente tá fazendo aqui, né? É preciso uma cobertura da imprensa, das políticas públicas, a divulgação de políticas públicas mais claras nessa área. Hoje, ela está um pouco obscurecida por problemas que a gente sabe são reais, como o desinvestimento, como o fato de que a maior parte do aparelho de saúde mental do estado está dirigindo a situações graves, psicoses, dependências graves.

Então, aquele que tem uma questão, uma dificuldade que está em um nível médio não tem muito para onde correr. Não sabe muito como lidar. E nós temos essa função da mídia, da academia, das universidades, dos jornais de prover onde estão as boas práticas, o que as caracterizam, que você pode sim se beneficiar e cuidar da sua saúde mental.

OP - Ainda que a gente precise superar essa questão do focar em medicamentos. Em alguns casos, medicação, terapia são indicados…

Christian - Claro, claro. A psicoterapia é um método muito bom, muito eficaz, assim como a medicação é altamente recomendada, inclusive, em níveis crônicos. Porque parte do nosso problema é imaginar que o psicológico é uma questão de fé, força de vontade. Que eu tenho autonomia, eu escolho. Não é verdade. A gente sofre justamente com essa perda de autonomia que os problemas de saúde mental, os sintomas trazem pra gente.

Claro que depois desse nível mais básico, procurar um psicoterapeuta, um psiquiatra, acompanhar principalmente, a medicação ao longo do tempo. Porque a maior parte dos brasileiros, são 16%, consomem algum tipo de medicação. Seja para dormir, seja para transar. Qual o acompanhamento efetivo e duradouro dessas prescrições? Muito baixo. Quem faz essas prescrições? Clínicos gerais, dermatologistas, cardiologistas, ginecologistas e não o psiquiatra.

Então, você tem uma uma uma situação de grande anomia, de grande incerteza na área. Procure um bom psicoterapeuta. Como é que você vai fazer para achar ele? Vai precisar pesquisar, vai precisar se dedicar à matéria, desde que a gente também produza essas referências para as pessoas. Assim como tratar, como encontrar e como lidar com a medicação. Precisamos produzir melhores referências sobre isso. Precisamos alertar as pessoas, procure um psiquiatra, procure um neurologista, procure uma segunda opinião.

Os problemas de saúde mental são complexos. Não acredite que 'eu vou fazer isso aqui, essa única coisa, e aí eu vou resolver a minha vida'. São dois instrumentos muito muito importantes. E contar sempre, isso é muito importante, com o sistema dos Caps (Centro de atenção psicossocial) que são a base, que hoje a gente tem da saúde mental pública.

 

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