Fortaleza amanhece com o peso de quase três séculos nas costas. A cidade de jangadeiros, histórias e promessas completa 299 anos com cenários transformados, mas ainda marcada por ausências e desigualdades. A história recente da capital cearense se entrelaça com os homens e mulheres que a governaram — e é por eles que seu retrato político está sempre em movimento.
Às vésperas dos três séculos, a história recente da capital cearense mostra que cada gestão deixou um traço visível — ora em concreto, ora em memória política. Cada um desses nomes, com acertos e impasses, ajudou a desenhar a Fortaleza de 2025.
Logo nas primeiras eleições diretas após a Ditadura Militar, Fortaleza escancarou sua rebeldia ao eleger a primeira prefeita de uma capital brasileira. Nascida em Quixadá, Maria Luiza Fontenele venceu em 1985 com 159.846 votos, superando Paes de Andrade (PMDB) por mais de 11 mil votos. Ele era tido como favorito ao cargo.
No ano seguinte, a socióloga assumiu o cargo em condições adversas. Sem apoio do então governador Tasso Jereissati, enfrentou uma Prefeitura sem recursos, com greves e boicotes políticos e sociais.
“O boicote era parte do sistema. O sistema não podia admitir uma mulher liderando uma capital e sendo a primeira mulher eleita num país como o Brasil”, disse Maria Luiza ao O POVO. “O boicote foi mais local do que federal. Os recursos que vinham eram para pagar o endividamento feito nas gestões passadas.”
Maria Luiza implantou uma gestão participativa, com Conselhos Populares e incentivo ao envolvimento direto da população — medidas que incomodaram a Câmara Municipal. Ela investiu em moradias populares, desagradando setores do mercado imobiliário.
Sua gestão foi duramente criticada. Após o mandato, foi expulsa do PT por divergências internas. Em 1987, elegeu-se deputada federal pelo PSB.
Na mesma década, o então governador eleito Tasso Jereissati (PSDB) lançou o jovem deputado Ciro Ferreira Gomes, na época do PMDB, como candidato à Prefeitura. Ciro venceu em 1988 com 179.274 votos, ao lado do vice Juraci Magalhães (PMDB), derrotando Edson Silva por pequena margem.
Inspirado no discurso de modernização de Tasso, propôs o “Governo das Mudanças” e, já no terceiro dia de mandato, lançou um plano emergencial para limpar a cidade das 120 mil toneladas de lixo acumulado e tapar buracos nas ruas. A periferia, contudo, permaneceu negligenciada.
Ciro ficou pouco tempo na Prefeitura. Com apenas 15 meses de gestão, assumiu o Governo do Estado e passou o comando municipal ao vice, Juraci Magalhães.
O professor e pesquisador de ciência política, Cleyton Monte, considera que Ciro Gomes já teria chegado à gestão municipal com o objetivo de ser governador do Estado e, já naquela época, com ambições para a presidência da República. “O foco dele era se apresentar como prefeito destemido, o prefeito mais jovem de capital, para ser aquele nome desbravador para concorrer ao Estado. Então, é muito difícil, em 15 meses, você conseguir estabelecer uma marca”, explica o cientista político.
A partir de 1990, Juraci liderou obras como a reforma do Instituto Doutor José Frota (IJF) e redesenhou ruas e avenidas. Com dois mandatos (1991–1992 e 1997–2004), é o prefeito que mais tempo permaneceu no cargo nos últimos cem anos. O recordista da história de Fortaleza é Guilherme César da Rocha (1892–1912).
A reeleição só foi permitida a partir de 1997. Juraci, ao fim de seu primeiro mandato, indicou seu secretário de Finanças, Antonio Cambraia (PMDB na época), que assumiu com o compromisso de continuidade.
Para o cientista político Cleyton Monte, Cambraia foi um gestor subordinado politicamente a Juraci. “Ele continuou obras como o mercado de São Sebastião, hospitais, vias. Foi um reforço das ações de Juraci”, afirma.
O próprio Cambraia reforçou essa leitura. Em seu discurso de posse, declarou que daria continuidade ao projeto do “eterno prefeito de Fortaleza”. Ao O POVO, destacou obras de infraestrutura como a ampliação do esgoto, conservação de vias e reforma do Paço Municipal. “Elas estão, ainda hoje, servindo à população”, afirmou. Em seus quatro anos de mandato, ele pareceu entre os três melhores prefeitos do Brasil.
Então Juraci voltou ao poder municipal e ficou por mais oito anos. Apesar dos feitos, o terceiro mandato registrou forte desgaste. No início dos anos 2000, sua gestão foi acusada de desvio de recursos da merenda escolar. O Tribunal de Contas dos Municípios (TCM) apontou que a Prefeitura havia investido apenas 23,11% da receita em educação, abaixo dos 25% exigidos pela Constituição.
A reprovação chegou a 55% ao final de sua gestão, refletida nas urnas de 2004. Juraci faleceu em 2009, após longa luta contra o câncer. O POVO estampou em sua capa: “Morre o homem que mudou a cara da cidade”.
Quando Maria Luiza assumiu a Prefeitura, em 1985, a próxima mulher a comandar Fortaleza ainda era uma adolescente de 17 anos. Em 2004, Luizianne Lins tornou-se a segunda mulher eleita prefeita da Capital, derrotando Inácio Arruda (PCdoB), Moroni Torgan (PFL) e Antonio Cambraia (PMDB). Ela também era filiada ao PT como Maria Luiza foi quando eleita.
Luizianne, que carregava uma visão menos radical que Maria Luiza sobre representatividade e democracia, também protagonizou embates políticos e críticas ao longo de sua gestão, assim como tensões internas no próprio Partido dos Trabalhadores.
A ex-prefeita e hoje deputada federal Luizianne Lins detalha os desafios sociais e urbanos encontrados ao assumir a Prefeitura. Segundo ela, ao chegar, encontrou “uma cidade que ainda tinha um sistema rudimentar e precário na execução de políticas públicas, já avançadas em muitas cidades brasileiras”.
“Não tenho a menor dúvida de afirmar que nossa gestão fez uma revolução em políticas públicas para cuidar mais da nossa gente”, diz Luizianne. Ela cita obras como os Centros Urbanos de Cultura, Arte, Ciência e Esporte (CUCAs), o Hospital da Mulher de Fortaleza, as Praças do Povo, as Praças da Juventude e a revitalização da Praia de Iracema. “Assinalo, em especial, o Vila do Mar, à época o maior projeto de urbanização da América Latina, com mais de cinco quilômetros”, destaca.
O atual governador do Ceará, Elmano de Freitas (PT), foi o candidato escolhido por ela como seu sucessor e disputou as eleições de 2012 contra Roberto Cláudio, então no PSB, que foi eleito com 650.607 votos, contra 581.131 de Elmano.
A vitória de RC representou uma ruptura com o ciclo de governos de esquerda em Fortaleza e marcou o rompimento definitivo entre Luizianne Lins e os irmãos Ferreira Gomes.
Ao assumir o cargo em janeiro de 2013, o novo prefeito herdou uma cidade sobrecarregada por desafios em mobilidade urbana e infraestrutura. Com um discurso voltado à eficiência e ao planejamento estratégico, prometia uma gestão técnica e moderna.
Segundo o cientista político Cleyton Monte, a administração de Roberto Cláudio figura entre as três mais transformadoras da história recente da Capital, ao lado de Juraci Magalhães e Luizianne Lins. “Juraci expandiu a cidade, deu outra geografia a Fortaleza; Luizianne, por sua atenção às demandas sociais da periferia; e Roberto Cláudio, por colocar a mobilidade urbana no centro do debate municipal”, resume.
Apesar dos avanços, sua gestão enfrentou controvérsias. Em 2013, a Prefeitura foi investigada pela Polícia Federal após o desmatamento de 79 árvores no Parque do Cocó, para construção de dois viadutos na área. A ação gerou forte reação da sociedade civil.
Outro episódio delicado ocorreu em 2020, com suspeitas de superfaturamento na compra de respiradores, o que poderia representar prejuízo de até R$ 25,4 milhões aos cofres públicos. Em agosto daquele ano, o Tribunal de Contas da União (TCU) arquivou o processo.
Ainda assim, Roberto Cláudio consolidou Fortaleza como referência em políticas de mobilidade urbana. Muitas das obras continuaram na gestão de seu sucessor e aliado político, José Sarto (PDT), eleito em 2020 com apoio do próprio ex-prefeito.
Em entrevista ao O POVO, Sarto destacou os desafios de sua gestão, especialmente no contexto da pandemia de Covid-19. Fortaleza tinha, no início de 2021, 85.380 pessoas com a doença e 4.204 óbitos. O ex-prefeito argumenta que a atuação da equipe de saúde no combate à pandemia teve uma ligação direta com a rápida recuperação econômica da cidade.
Segundo ele, a rápida vacinação “teve uma consequência de imediato que foi a gente poder flexibilizar um pouco mais as regras de convívio social e fez com que a economia retomasse o leito mais rapidamente, tornando Fortaleza a maior economia do Nordeste”.
Durante o mandato de Sarto, Cleyton Monte observa uma tentativa de criar a imagem de "prefeito da educação" que não foi possível ser consolidada. “Por uma série de fatores — comunicação, ação política, presença do prefeito. Porque a gente sabe que não basta o prefeito investir, tem que ter articulação política com os vereadores e presença nas diferentes partes do município”.
Ao falar sobre os desafios da gestão, Sarto explica que, apesar de ser um "imperativo nacional", houve uma "rejeição natural" da população frente à Taxa do Lixo imposta em seu mandato e reconhece que a gestão “poderia ter melhorado um pouquinho essa discussão”.
As disputas que marcaram a história
Em 1985, a cidade desafiou as expectativas ao eleger Maria Luiza Fontenele (então no PT) como a primeira mulher prefeita de uma capital brasileira. Era a primeira eleição direta pós-ditadura, e Fortaleza optava pelo inédito — uma socióloga feminista, nascida no Interior, em meio a uma disputa polarizada contra nomes tradicionais.
Eleita em 17 de novembro, virou manchete nacional. Poucos dias depois, a revista Veja descreveu sua vitória como uma “bizarrice”. A professora e socióloga Rebeca do Nascimento Coelho destaca a significância da campanha de Maria Luíza, que soube capitalizar sua imagem de mãe e mulher em um cenário político ainda conservador.
“A campanha da Maria Luíza soube aproveitar algumas questões. O fato da Maria Luíza ser mãe, ser mulher, e aspectos ligados à questão feminista não eram tão reforçados para colocar essa coisa mais da mãe, da mulher guerreira, até mesmo essa questão do cuidado. A campanha foi muito bem trabalhada para apresentar esses aspectos positivos”, afirma Rebeca.
"Essa cidade sou eu. É Fortaleza, o nome dessa cidade é esperança e, principalmente, a certeza de que a humanidade não vai ser tragada pelo sistema", declara Maria Luiza.
Outro pleito que virou página foi o de 2004. Luizianne Lins (PT), quando deputada estadual, derrotou adversários experientes como Moroni Torgan (então no PFL), Antônio Cambraia (PSDB) e Inácio Arruda (PCdoB), tornando-se a segunda mulher a governar Fortaleza.
Segundo a socióloga, o contexto político é completamente diferente do de 1985, mas semelhante em termos de repressão política. “O que vai ser mais peculiar na campanha da Luizianne é a trajetória que ela teve que fazer para ser candidata em 2004. Ela não era vista pelo próprio partido, mas se coloca como pré-candidata, vence e sai como candidata. Esse panorama é muito específico dessa candidatura”, explica Rebeca.
“Eu, mulher, de esquerda, nascida e criada na periferia de Fortaleza, chegando, pela vontade do nosso povo, ao maior cargo público da Capital. Foi, realmente, um feito histórico. Foi o início de uma revolução política, social, econômica e cultural que nossa gestão fez na cidade, ainda hoje lembrada e reconhecida pela maioria do povo de Fortaleza”, relembra a ex-prefeita e atual deputada federal Luizianne Lins. A vitória abriu espaço para duas gestões consecutivas.
Em 2012, o cenário mudou mais uma vez. O embate entre Elmano de Freitas (PT), aliado de Luizianne, e Roberto Cláudio, filiado ao PSB na época e apadrinhado pelos irmãos Ferreira Gomes, selou o rompimento entre Luizianne e o grupo político que ajudou a eleger.
Apesar de pressionada por aliados, Luizianne insistiu na candidatura de seu aliado, atual governador do Estado, como seu sucessor. O nome do candidato era pouco conhecido fora dos círculos partidários e enfrentou resistência popular.
Do outro lado, Roberto Cláudio, com apoio do governador Cid Gomes e de uma ampla coligação, construiu uma candidatura com discurso de renovação e foco na gestão técnica.
A disputa se intensificou no segundo turno. Enquanto Elmano defendia a continuidade do projeto petista iniciado em 2004, RC atacava a desorganização urbana e as falhas nos serviços públicos como transporte e saúde. Por fim, Roberto venceu com mais de 650 mil votos.
O pleito eleitoral de 2020 também se inscreve entre os momentos históricos, principalmente pela necessidade de desenvolver uma campanha eleitoral em meio à pandemia da Covid-19. O médico José Sarto (PDT) derrotou Capitão Wagner, que na época estava no partido Pros, após uma campanha marcada por disputas ideológicas acirradas e pelo desafio de manter a Capital sob liderança aliada aos Ferreira Gomes.
"Tudo que eu puder fazer por Fortaleza ainda é pouco pelo que eu dela recebi", afirmou o ex-prefeito José Sarto.
A eleição mais recente, em 2024, teve o segundo turno mais disputado do Brasil. Evandro Leitão (PT) obteve 50,38% dos votos válidos, enquanto o deputado federal André Fernandes (PL) alcançou 49,62%. A diferença foi de apenas 10.838 votos.
A gestão do prefeito Evandro Leitão chegou aos 100 dias e, segundo ele, o maior desafio foi conseguir levantar todas as informações sobre a Prefeitura. O prefeito afirmou ao O POVO que, mesmo com sua gestão ainda estando no começo, aponta que sua marca deve ser a descentralização das ações.
"Eu posso dizer que nós temos ações descentralizadas em toda a cidade. Essa é a nossa grande marca. A gente tá olhando para todos, todas as pessoas e não apenas para uma parte da cidade", destacou o prefeito em entrevista no dia 10 de abril.
Cada uma dessas eleições revelou não apenas preferências eleitorais, mas estados de espírito. Fortaleza, sempre entre o barro e o asfalto, entre o mar e o miolo, é também feita de seus momentos de escolha — e das encruzilhadas em que decidiu por onde seguir.