O Polo de Lazer, na praça central do Conjunto Ceará, mesmo distante de pontos econômicos de Fortaleza, como Aldeota (20 km) e Centro (12 km) tem um movimento constante. Há perfis de vendedores para cada gosto: sejam sorvetes, hambúrgueres, acarajés, farmácias e muito mais.
Assim como em outros bairros distantes do centro urbano, esses comércios periféricos ajustam a oferta de serviços com a demanda.
Historicamente, a periferia desempenha um papel social e econômico fundamental. Segundo o censo de 2022 do IBGE, Fortaleza abriga cerca de 2,5 milhões de habitantes – a maioria originária das regiões periféricas – como o Jangurussu, por exemplo, reunindo aproximadamente 70 mil moradores, seguido pela Barra do Ceará (63,4 mil).
O Conjunto Ceará (I e II) soma 22.854 habitantes e o espírito empreendedor se destaca ao longo dos anos. Os moradores têm optado cada vez mais por gerenciar seus próprios negócios.
Em fevereiro de 2025, a cidade contava com 306.525 CNPJs ativos, enquanto os bairros periféricos reuniam cerca de 200 mil registros (incluindo as regionais 1, 3, 5, 6, 7, 8, 9, 10 e 11).
Somente no Conjunto Ceará, os números saltaram de 281 CNPJs em 2004 para 4.087 em 2024 – um aumento de 1.354%, conforme dados da Receita Federal tratados pela Secretaria do Desenvolvimento Econômico (SDE).
Apesar desse crescimento, os empreendedores ainda enfrentam desafios significativos. A distância do Centro, as condições precárias das ruas e outros entraves logísticos dificultam a plena prosperidade dos negócios, conforme os relatos de quem lá convive.
Essa realidade torna ainda mais intrigante o legado do Conjunto Ceará, planejado nos anos 1970, durante a política de habitação da ditadura militar para atender famílias de baixa renda e classe média. Mesmo com um projeto para iniciar, os problemas estruturais persistem.
O cenário é vivido de forma única pelos moradores, como conta Edna Oliveira, uma comerciante que chegou ao conjunto em 1979. Ela relembra o início, que “ainda era a piçarra na Avenida Central e na Avenida I só tinha mato.”
Edna, que vive na região desde então e já trabalhou no Centro da cidade – seu pai, inclusive, foi motorista da rota Conjunto Ceará/Centro –, ressalta tanto as dificuldades iniciais quanto as conquistas que o bairro alcançou ao longo dos anos.
Após a aposentadoria, a comerciante decidiu se reinventar e começou a empreender. Há cerca de dois anos, ao notar a oportunidade de um ponto comercial vago próximo à sua casa, ela investiu em um pequeno mercadinho. “Os benefícios estão no fato de poder ter para almoçar, jantar e merendar. Mas a falta de tempo é um desafio; se a gente parar, perde clientes”, afirma.
Como resposta aos desafios decorrentes da distância do Centro e da precariedade dos serviços públicos, surgiram os chamados “mini-centros”.
Conforme salientou a doutora em História, Angerlânia Barros, esses espaços foram criados para que os moradores não precisassem percorrer grandes distâncias para acessar comércios e serviços essenciais – uma estratégia que ilustra os dribles e adaptações típicos das periferias.
O perfil do empreendedorismo periférico
Tudo o que circula nesses polos e praças das regionais 10 e 11, incluindo o Conjunto Ceará, gera uma arrecadação de Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Prestação de Serviços (ICMS) de aproximadamente R$ 200 milhões.
Os dados de 2024 no Ceará chegam a R$ 20 bilhões do tributo, enquanto em Fortaleza ficou em torno de R$ 9 bilhões, conforme a Secretaria da Fazenda do Estado (Sefaz).
De acordo com o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE -2017), o PIB da capital cearense no setor de comércios e serviços era de cerca de R$ 37 bilhões, e a participação dos pequenos negócios correspondia a 32,7%, segundo dados do Serviço Brasileiro de Apoio às Micro e Pequenas Empresas. Em outra pesquisa realizada pelo Sebrae-CE, em abril de 2024, revelou que há cerca de 1,2 milhão de empreendedores no Estado, dos quais 91,07% são autônomos e apenas 8,93% são empregadores.
A demografia desses comerciantes mostra um perfil predominantemente masculino (63,8% homens contra 36,16% mulheres), em sua maioria chefes de família, com 37% com ensino médio completo e 11,18% com nível superior.
Adicionalmente, esses CNPJs se concentram principalmente nos setores de serviços e comércio, operando em média entre 40 a 44 horas semanais. Segundo Gerd Muller, gestor de Projetos de Desenvolvimento Territorial e analista de Negócios do Sebrae Ceará, os negócios abertos nestas regiões suprem geralmente a demanda local e podem variar. Mas frisa que formatar um negócio que atenda às necessidades do público local, promovendo o desenvolvimento sustentável da comunidade, pode ser uma ótima oportunidade.
As dificuldades de empreender longe do Centro
Transporte e distribuição de produtos devido à infraestrutura limitada, menor disponibilidade de financiamento e de linhas de crédito com condições favoráveis, escassez de mão de obra qualificada e dificuldades na retenção de talentos, são alguns dos entraves de se empreender longe dos centros comerciais.
Gerd Muller, analista do Sebrae, aponta que para superar esses desafios logísticos é necessário "repensar o plano de negócio da empresa, fazer pesquisas de mercado, participar de comunidades de empreendedores e de mentorias, buscar parcerias, criar canais de feedback com o seu cliente e manter o foco ficando de olho nas tendências."
Pelo Sebrae, são desenvolvidas políticas públicas de desenvolvimento territorial para regiões periféricas, envolvendo orientações, capacitações, acesso a crédito e inovação, bem como parcerias com os setores público e privado. A atuação se dá também por meio de agentes que oferecem central de relacionamento, conteúdos, cursos on-line e outros serviços digitais, além de iniciativas específicas para fortalecer o empreendedorismo feminino.
A internet é outro fator que desempenha um papel fundamental, quebrando os limites territoriais ao atrair públicos diversos e facilitar as vendas por meio de aplicativos de mensagem e entrega - um diferencial decisivo na escolha do local de consumo e na viralização dos negócios.
Foi justamente a web que ampliou os horizontes do batateiro Flávio Santos, 43. Morador da Granja Lisboa, ele empreende no polo do Conjunto Ceará há cerca de 10 anos, mas foi nos últimos dois, ao apostar nas batatas fritas e nas redes sociais, que seu negócio ganhou força. No TikTok e no Instagram, "o Primo" já soma cerca de 12 mil seguidores — e um vídeo viral recente atraiu clientes de bairros vizinhos e até de outras cidades da Região Metropolitana.
Antes, trabalhava como técnico de celulares, e o ponto onde hoje vende suas porções já foi conhecido como "Primo do Celular". Com nova fachada e pintura, o negócio ganhou novo nome: "Primo da Batata". Ele não sabe ao certo qual é seu lucro mensal, mas afirma: "No fim do mês consigo pagar as contas."
Seu diferencial, segundo ele, está no óleo de algodão, que deixa as batatas mais crocantes. Além disso, conhece instintivamente a quantidade ideal para cada porção. Escolhe as batatas a dedo, e sua rotina semanal inclui madrugar na Ceasa para garantir os melhores tubérculos.
Em média, compra dez sacas de 25 kg cada. O movimento é mais intenso nos fins de semana, quando pode chegar a gastar 100 kg de batata, formando grandes filas. Antes de empreender com batatas, Flávio viveu um período de estresse atuando na área de manutenção de celulares. Ao observar a demanda pelo produto na praça, decidiu mudar de rumo.
Hoje, como Microempreendedor Individual (MEI), sua rotina é intensa: chega ao polo por volta das 16h e só encerra o expediente após deixar tudo limpo, geralmente por volta da 1h da manhã — nos fins de semana, somente às 2h. Apesar do sucesso, ainda não conta com uma máquina para descascar batatas. Por isso, já leva tudo pronto para fritar no ponto de venda. Ele mesmo cuida do preparo, pois ainda não encontrou alguém que faça "do jeitinho" que gosta.
O surgimento do Conjunto Ceará
A política de habitação promovida no bairro durante a ditadura militar esteve presente em diversos estados. Em Fortaleza, existia apenas o conjunto habitacional José Walter. No entanto, em meados de 1977 começaram a ser entregues casas no espaço que outrora era chamado de Estiva, e hoje se chama Conjunto Ceará.
Foram cedidas 996 unidades padronizadas pelo Banco Nacional de Habitação (BNH), um marco que impulsionou o crescimento da região. A doutora em História, Angerlânia Barros, enfatiza que, diferentemente de outras políticas, como a de José Walter, essa iniciativa exigia comprovação de renda entre 1 e 3 salários mínimos da época, direcionando as habitações para famílias pobres da classe trabalhadora e da classe média.
"Eles iriam promover conjuntos habitacionais grandes, para poder ter o máximo de pessoas possíveis nesse conjunto. Eram tão grandes que eles se tornaram bairros posteriormente" ressalta.
Com o passar dos anos, o conjunto passou por uma expansão desordenada. O bairro foi planejado com cinco tipos de imóveis (A, B, C, D e E), organizados em 12 Unidades de Vizinhança (UVs) - cada uma com 100 residências e uma escola pública como ponto de referência.
Inicialmente, os primeiros moradores foram sorteados pela Companhia de Habitação do Ceará (Cohab). Durante muitos anos, o Conjunto fazia parte do bairro Granja Portugal; porém, graças à luta popular na administração do prefeito Ciro Gomes em 1989, a região passou a ser considerada autônoma.
Embora o planejamento inicial buscasse organizar o espaço, o aumento constante do número de moradores aliado à diminuição das políticas públicas fez com que problemas estruturais se instalassem.
Angerlânia destaca que, desde a formação do conjunto, a falta de policiamento, iluminação pública adequada, praças bem cuidadas e de serviços essenciais, como saúde e educação, sempre foram desafios a serem superados.
Por exemplo, o terminal inaugurado em setembro de 1993 - 15 anos após o início da ocupação - ainda hoje é um ponto vital para o bairro.
"Posteriormente, vai ter uma nova política, que é o plano urbanístico, que ele vai desenvolver essas áreas periféricas, para que não precise tanto a periferia invadir as áreas centrais, que eles vão chamar de mini-centros", afirma.
Periferias recebem apoio social
Ainda ontem, as periferias do Brasil foram centro de anúncio do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES). A instituição divulgou R$ 135 milhões para apoio social e ambiental a essas regiões.
Uma das constituições desse montante advém do chamado BNDES Periferias Verdes, com orçamento de R$ 50 milhões. Este é voltado para projetos ambientais com foco na inclusão produtiva por meio de ações de economia circular, agricultura urbana e resiliência climática
Outros R$ 50 milhões serão destinados ao Polos BNDES Periferias e BNDES Periferias Empreendedoras. O percentual de contrapartida para entidades nas chamadas agora é de 10%
Com dois editais de R$ 17,5 milhões cada, a frente BNDES Periferias Fortes abriu seleção, até 30 de maio, de parceiros executores para fortalecer organizações sociais que atuam em periferias do Norte e Nordeste.
“Combater a pobreza e a desigualdade é uma das principais metas do governo do presidente Lula e o BNDES, como banco de desenvolvimento, desempenha importante papel na criação de oportunidades de capacitação, fomento ao empreendedorismo e geração de emprego e renda para as populações das favelas e comunidades periféricas do Brasil”, afirmou o presidente do BNDES, Aloizio Mercadante.