A falta de dados atualizados sobre as condições da saúde ocular no Brasil pode ser um entrave para a formulação de políticas públicas voltadas à prevenção de doenças oculares. De acordo com o Censo Demográfico de 2010, realizado pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) e o mais recente sobre o tema, cerca de 35,7 milhões de brasileiros apresentavam algum grau de deficiência visual.
No Ceará, segundo o Instituto, o número na época chegava a aproximadamente 1,8 milhão de pessoas. Ao O POVO, tanto o Governo do Ceará quanto a Prefeitura de Fortaleza também informaram que não possuem dados regionais específicos sobre o número de pessoas com cegueira ou baixa visão.
A prevenção contra doenças oculares ganha destaque especial neste mês devido ao Abril Marrom, campanha nacional de conscientização sobre a importância do diagnóstico precoce e dos cuidados com a saúde dos olhos.
Para Jailton Vieira, doutor em Oftalmologia e professor da Faculdade de Medicina da Universidade Federal do Ceará (UFC), a falta de dados atualizados dificulta ações amplas de prevenção. “Esses estudos trazem dados relativos à população que seriam essenciais para o planejamento de ações mais eficientes para o combate da deficiência visual”, explica.
Ainda assim, o especialista destaca que é possível avançar com algumas medidas: “facilitar o acesso da população ao médico oftalmologista, estimular a fixação desse profissional além dos grandes centros urbanos e educar as pessoas sobre os cuidados com a saúde ocular são ações possíveis e importantes”.
Além da escassez de estudos sobre deficiência visual, o fundador da Associação de Cegos do Ceará (Acec), Francisco Ferreira, chama atenção para a forma como os dados são coletados no Brasil. Segundo ele, muitas pessoas com deficiência acabam ficando fora das estatísticas oficiais, o que gera um retrato defasado da realidade.
“Os dados sobre pessoas com deficiência são coletados por amostragem, e isso já compromete os resultados. Sem dados precisos, é muito mais difícil propor políticas públicas que realmente contemplem a realidade das pessoas com deficiência”, critica.
De acordo com o IBGE, durante o Censo Demográfico todos os domicílios respondem ao questionário básico, mas apenas uma parte (amostra) responde ao questionário completo. Esse percentual varia de 5% a 50% dos domicílios, dependendo do tamanho do município.
O IBGE ainda declarou que dados mais atualizados sobre deficiências no Brasil, referentes ao Censo 2022 tem previsão de serem divulgados em maio deste ano, 12 anos após a última coleta de dados.
Cego desde os dez anos devido a uma atrofia no nervo óptico, o ativista Francisco Ferreira também alerta para o apagamento das populações que vivem em áreas mais afastadas dos centros urbanos.
“Essas pessoas precisam ser vistas, precisam ser estudadas. Porque a problemática da pessoa com deficiência está muito presente nas regiões mais distantes. É lá que está o maior número de pessoas com deficiência sem qualquer tipo de apoio. Então é preciso que alguém se preocupe com isso.”
Ele destaca ainda que a situação é especialmente grave entre os idosos. “Muita gente adquire deficiência visual ao envelhecer, e para essas pessoas é ainda mais difícil acessar programas de inclusão ou reabilitação.”
Presidente da Sociedade de Oftalmologia do Ceará e especialista em oftalmopediatria, a Dr. Ana Valéria reforça que a prevenção deve começar ainda no berço.
“O teste do olhinho, obrigatório nas maternidades, pode detectar doenças graves nos primeiros dias de vida. Isso inclui casos ligados à prematuridade, como a retinopatia da prematuridade, e infecções congênitas como toxoplasmose e rubéola”, destaca.
Ao longo da infância, a falta de acompanhamento pode levar à ambliopia — quando um dos olhos não aprende a enxergar porque o problema visual não foi corrigido a tempo. “O desenvolvimento visual da criança muda muito até os quatro anos. É essencial manter uma rotina de consultas oftalmológicas”, reforça a médica.
Para as demais faixas etárias, a recomendação é realizar pelo menos uma consulta oftalmológica completa por ano. Contudo, especialistas alertam que a atenção deve ser ainda maior a partir dos 40 anos.
Maior parte das doenças nos olhos pode ser curável
De forma geral, pacientes que desejam atendimento oftalmológico devem procurar primeiro um posto de saúde. Lá, eles passam por uma avaliação inicial. Se houver necessidade, são encaminhados para a Rede Especializada, onde poderão realizar exames e procedimentos complementares.
Somente em Fortaleza, de janeiro a março de 2025, foram realizadas 11.721 consultas oftalmológicas. No mesmo período, 10.498 cirurgias e procedimentos de alta complexidade foram feitos.
De acordo com a Organização Mundial da Saúde, cerca de 80% de todas as causas de deficiência visual seriam preveníveis ou curáveis. Contudo, conforme explica Breno Holanda, médico oftalmologista e coordenador do serviço de Glaucoma do Hospital Geral de Fortaleza (HGF), o diagnóstico precoce ainda é um desafio.
"Na oftalmologia, prevenir é diagnosticar cedo", explica. "Não existe prevenção como em outras áreas, como se alimentar bem e fazer atividade física. Prevenção aqui é descobrir cedo. E isso só acontece se houver acesso facilitado ao sistema de saúde".
Na rede estadual, o HGF é considerado uma das principais unidades para atender casos mais complexos. Conforme o Hospital, em 2024 foram realizados 96.429 procedimentos oftalmológicos, além de 31.716 consultas.
Uma das pacientes da Unidade é Raimunda Maria Silva, 71, diagnosticada com catarata e glaucoma. Moradora do município de Cedro, a 426 km de Fortaleza, ela relata as dificuldades de acesso a procedimentos oftalmológicos de alta complexidade no Interior.
"Na minha família, dos cinco filhos, três têm a mesma doença, além da minha mãe", conta. Por conta disso, Raimunda sempre teve o hábito de ir ao oftalmologista. Foi em uma dessas consultas de rotina que recebeu o diagnóstico e iniciou, pela rede particular, o tratamento com medicações.
No entanto, não apresentou os resultados esperados. Em 2009, Raimunda enfrentou sua primeira grande crise. "Senti uma dor muito forte nesse olho aqui (esquerdo). Ele ficou bem vermelho, não conseguia nem abrir. Então perdi a visão."
Ela conta que passou por um tratamento a laser em uma unidade de saúde particular em Iguatu, a 55 km de Cedro, que reverteu a situação. Contudo, em 2019 uma nova crise exigiu urgência.
"Dessa vez foi pior. Então tive que fazer uma nova consulta particular. Se fosse esperar pela assistência, não dava tempo. Tinha que correr", relata Raimunda. Na unidade, contudo, foi informada de que precisaria ir à Capital para realizar uma cirurgia de maior complexidade.
Foi quando chegou ao HGF. Raimunda passou por cirurgia, mas, mesmo assim, não foi possível recuperar a visão do olho direito.
Desde então, ela viaja a Fortaleza a cada três meses, enfrentando cerca de cinco horas de estrada para acompanhamento dos olhos.
Conforme explica o oftalmologista Breno Holanda, o glaucoma é a maior causa de cegueira irreversível no mundo. "Mais da metade dos pacientes com glaucoma nem sabe que tem a doença", diz. Só em Fortaleza, segundo ele, estima-se que 18 mil pessoas tenham glaucoma, e metade desconhece o diagnóstico. A única forma de detectar o glaucoma a tempo é o exame oftalmológico.
Já a catarata é a principal causa de cegueira, porém pode ser reversível. "Todo mundo vai ter catarata a partir dos 55 anos. Em muitos casos, ela nem chega a comprometer a visão. Mas, quando atrapalha, precisa ser operada. E a cirurgia devolve a visão", explica.
Algumas doenças raras também podem comprometer a saúde ocular. Nádia Mesquita, 19, é diagnosticada com a Síndrome de Vogt-Koyanagi-Harada (VKH), condição inflamatória autoimune que afeta principalmente mulheres e pode causar diferentes sintomas. A doença causou na jovem um impacto drástico na visão.
"Eu era saudável até os 15 anos. De um dia para o outro, apareceu uma vermelhidão nos meus olhos", relembra. Moradora de Umirim, a 96 km de Fortaleza, Nádia enfrentou dificuldades para obter um diagnóstico. "Fui em vários municípios, até conseguir me consultar com um especialista em doenças raras em Horizonte e descobri que era essa síndrome."
A jovem foi encaminhada para Fortaleza, onde iniciou o tratamento contra a síndrome no Hospital das Clínicas. Embora a doença tenha se manifestado apenas nos olhos, o impacto foi severo: Nádia passou dois anos completamente sem enxergar.
Desenvolvendo catarata e glaucoma, ela foi encaminhada ao HGF, onde realizou o procedimento que precisava. "Consegui fazer a cirurgia. Ainda não está 100%, mas já consigo enxergar com um dos olhos."
Ela conta que precisou interromper os estudos por falta de acesso à educação especializada para pessoas com deficiência visual em seu município.
As mais frequentes doenças oculares
Pré-natal e Infância
Toxoplasmose ocular e congênita
É causada por uma infecção pelo parasita Toxoplasma gondii. Quando afeta os olhos, pode causar inflamação da retina e da coróide (coriorretinite), levando a lesões cicatriciais que afetam a visão. A infecção pode ser adquirida durante a gestação (forma congênita) ou após o nascimento.
Citomegalovírus (CMV)
O CMV congênito pode provocar retinite (inflamação da retina), microftalmia (olho pequeno) e outras anomalias visuais no recém-nascido.
Rubéola congênita
Quando a infecção ocorre no primeiro trimestre da gestação, pode causar catarata congênita, glaucoma e retinopatia pigmentária no bebê.
Retinopatia da prematuridade (ROP)
Acomete bebês prematuros com menos de 32 semanas ou peso muito baixo. O uso de oxigênio suplementar pode estimular o crescimento anormal dos vasos da retina, causando descolamento e cegueira.
Vida adulta
Retinopatia diabética
Decorre da lesão dos vasos sanguíneos da retina causada por níveis elevados de glicose no sangue. É uma das principais causas de cegueira em adultos jovens.
Glaucoma
Caracteriza-se pelo aumento da pressão intraocular que danifica o nervo óptico. É progressivo, assintomático no início, e pode levar à cegueira irreversível se não tratado.
Retinopatia hipertensiva
Decorre da hipertensão arterial prolongada, afetando os vasos da retina e podendo levar à perda gradual da visão.
Degeneração Macular Relacionada à Idade (DMRI)
Embora associada ao envelhecimento, pode começar a se manifestar no fim da vida adulta, afetando a região central da retina (mácula), responsável pela visão de detalhes.
Catarata
É a opacificação do cristalino, prejudicando a passagem da luz. Apesar de comum em idosos, pode surgir precocemente por trauma, diabetes ou uso de corticoides.
Fonte: Oftalmologistas Breno Holanda e Ana Valéria, do Hospital Geral de Fortaleza (HGF).
Curiosidade
Abril foi escolhido para a conscientização das doenças oculares devido ao nascimento de José Álvares de Azevedo, introdutor do sistema de leitura e escrita Braille no Brasil. A cor marrom simboliza a íris mais comum entre os brasileiros.
Você sabe o que significam as cores das bengalas?
A bengala é um instrumento de orientação e mobilidade para pessoas com deficiência visual. Conhecer as variações ajuda a oferecer apoio de forma respeitosa e adequada
Bengala branca:
cegueira total
Bengala verde:
baixa visão
Bengala branca e vermelha:
pessoa surdocega