Desde 2022, 342 homicídios registrados em Fortaleza e Região Metropolitana (RMF) foram cometidos com armas já utilizadas anteriormente em outros crimes, conforme dados do Sistema Nacional de Análise Balística (Sinab). Durante o período, pelo menos 40 armas foram identificadas como reincidentes em toda a RMF, tendo como principais pontos de uso as cidades de Caucaia e Maracanaú.
Os dados foram coletados pela Perícia Forense do Estado do Ceará (Pefoce) a partir de cenas de assassinatos, onde foi possível encontrar projéteis, estojos ou outras evidências que possam informar com qual arma o crime foi cometido. Cada elemento encontrado na cena do crime e encaminhado para o Sinab leva o nome de “inserção”, ou seja, um homicídio pode ter várias inserções.
Identificado o armamento que foi usado, as informações que o especificam são cadastradas no Sinab, onde poderão ser confrontadas futuramente, para saber se o equipamento em questão possui o chamado “hit”, que é quando ele já esteve envolvido em outras mortes.
Segundo os dados do Sistema, 40 armas de fogo estiveram envolvidas nos 342 hits acima citados, o que indica que cada uma delas foi utilizada, em média, para a execução de oito assassinatos.
"Eu consigo determinar isso na hora em que a arma entrou na perícia, motivada por um inquérito. Primeiro eu consigo determinar se várias vítimas foram feitas de uma arma só. Consigo dizer que uma vítima de Maracanaú foi morta com a mesma arma de uma vítima de Pacatuba, com a mesma arma de uma vítima de Baturité", explica o supervisor do Núcleo de Balística Forense da Pefoce, Gervásio Fontenele.
As armas mais recorrentes entre os crimes analisados pela Pefoce são os revólveres, em especial os de calibre .38 Special, encontrados em mais de 2.080 evidências nos últimos três anos. As pistolas .40 aparecem logo atrás, em segundo lugar, com 1.016 inserções.
Se somados, os quatro calibres mais recorrentes (.38 Special, .40 S&W, 9 mm Luger e 380 Auto) são responsáveis por 94% das inserções nos últimos três anos.
Quando o hit de uma arma é identificado, a Pefoce consegue saber também onde cada uso da arma ocorreu. Desse modo, a análise se volta não só a saber quantas vezes ela foi utilizada, mas também as regiões por onde passou antes de ser apreendida.
Para o doutor em Sociologia e pesquisador em segurança pública, César Barreira, esse mapa traçado com os homicídios mostra onde as armas estão concentradas e pode ajudar a polícia a saber onde atuar com mais enfoque.
“Isso é um dado importante para cada vez mais a gente conhecer esse universo do crime. Quais são os locais que ocorrem, quais são as horas que ocorrem, quais são as áreas mais precisas em termos de ruas, becos, onde ocorrem esses homicídios. Só aí a gente pode de certa forma estabelecer uma política pública efetiva em termos de controle dos homicídios”, explica o sociólogo. (Com informações dos repórteres Jéssika Sisnando e Lucas Barbosa)
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Acesso facilitado a armas pode impulsionar casos de violência
Segundo dados do Anuário Brasileiro de Segurança Pública 2024, o Ceará teve uma média de 3.888 novas armas de fogo registradas por ano entre 2019 e 2023. Em quatro anos, o Estado saltou de 17.560 para mais de 33 mil equipamentos formalmente cadastrados junto à Polícia Federal (PF).
Esse aumento é resultado de uma série de mudanças realizadas pelo Governo Federal no Estatuto do Desarmamento durante o período, que buscaram a flexibilização das normas para o comércio de armas no País. As medidas resultaram no crescimento dos grupos favoráveis ao uso dos dispositivos por quem antes não os dispunha, como cidadãos comuns.
A pauta tem sido tema recorrente nas campanhas políticas dos últimos anos, como visto durante o último pleito para a Prefeitura de Fortaleza, no qual três dos quatro principais candidatos ao Paço apresentaram o reforço no armamento como proposta para a Guarda Municipal.
A medida mais recente a nível nacional foi tomada pela Câmara dos Deputados, em dezembro do ano passado, com a aprovação de mais uma alteração no Estatuto para permitir que investigados por crimes registrem armas, com exceção daqueles que respondem por ato doloso contra a vida.
Para Barreira, essa flexibilização do acesso às armas tem ligação direta com os acréscimos nos casos de violência. Conforme o pesquisador, as medidas adotadas pelos representantes públicos deveriam ser de supervisão rígida dos armamentos, e não para facilitar o acesos a eles
"Quanto mais gente anda armada, nós temos tranquilamente a ligação direta com o aumento de violência. Nós temos que ter é um controle cada vez maior da arma. Cada vez um número menor de pessoas deveriam andar armadas. Eu defendo muito que quem deveria andar armado é o policial em serviço. Se a gente tivesse claramente isso, teríamos a possibilidade de separar o joio do trigo", defende o sociólogo.
À medida que o acesso é simplificado, as armas chegam com mais frequência à mão da população no País. Conforme estimativa realizada pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública por meio do Anuário, a PF deverá fiscalizar, a partir deste ano, pelo menos 4,8 milhões de armas, entre registradas oficialmente, irregulares e outras categorias.
Esses armamentos incluem os que estão em posse de caçadores, atiradores e colecionadores, grupo conhecido como CACs. Apesar de registradas para atividades recreativas, parte dessas armas pode trilhar um caminho diferente até a posse de grupos criminosos.
Exemplo disso foi a operação Desarme, promovida em novembro do ano passado pelo Ministério Público do Ceará (MPCE), quando um CAC foi preso suspeito de fornecer armas para o crime organizado em Caucaia. O POVO apurou que o homem registrava Boletins de Ocorrência (B.Os) para apontar um suposto roubo das armas e depois as comercializava com integrantes de facções da região.
Sobre o suspeito ainda pesam indícios de compra de munições para os grupos criminosos. Em 2024, ele teria adquirido 35 mil cápsulas, quantia muito acima das 4 mil permitidas para atiradores de nível I, conforme a legislação federal. As balas foram compradas por R$ 422 mil, valor que ultrapassa a realidade financeira do investigado.
Meses antes, em agosto, outros quatro CACs foram presos em Fortaleza suspeitos de repassar armas para facções. Os alvos foram capturados pela Polícia Civil do Estado do Ceará (PC-CE) após identificação de irregularidades nos registros das armas e poder bélico incompatível com os equipamentos que possuíam.
Entre 18 armas de fogo apreendidas na ocasião, cinco não possuíam registro no Sistema Nacional de Armas (Sinarm). Também foram encontradas centenas de munições e insumos para carregadores de arma de fogo, prática não autorizada.
Histórico pode ajudar a rastrear e interceptar armamentos
Outro ponto defendido pelo professor de Sociologia e pesquisador em segurança pública, César Barreira, é de que os dados do Sistema Nacional de Armas (Sinarm) possam ser acrescidos do histórico das armas. Saber como ela foi adquirida, de onde veio e pelas mãos de quem passou seria uma forma de combater a circulação e evitar que elas ceifem vidas.
"Nós deveríamos ter esse controle da história dessa arma. Saber quem é o dono, quanto tempo está no mercado, qual é o mercado que circula, qual é a possibilidade de as pessoas terem acesso a armas ilegais, quais são os lugares que vendem essas armas. Esse universo é muito interessante para a área de segurança pública ter um controle efetivo da circulação da arma", afirma o também fundador do Laboratório de Estudos da Violência da Universidade Federal do Ceará (LEV-UFC).
De acordo com a Pefoce, todos os dados obtidos a partir da análise das armas são enviados para a PC-CE. O POVO solicitou entrevista ao órgão para saber como esses dados são aproveitados nas investigações, mas não obteve retorno até a publicação deste conteúdo.
Exemplo de arma utilizada em múltiplos homicídios é a pistola .40, segunda entre as mais recorrentes no Estado, com a qual o advogado Francisco Di Angellis Duarte de Morais foi assassinado em 6 de maio de 2023, no bairro Parquelândia, em Fortaleza. O laudo pericial apontou o uso daquele mesmo armamento em pelo menos outras cinco mortes.
Exame pericial constatou que, dessa arma, partiram os tiros que mataram Wlendermille de Lima Serafim e João Pedro Fernandes da Silva (duplo homicídio registrado em 2 de setembro de 2022 no Parque Santa Maria), Wenes Rodrigues de Souza (em 6 de dezembro de 2022 na Lagoa Redonda), Rubio Silva de Almeida (em 28 de dezembro de 2022 na Messejana) e Maycon Mendes de Oliveira (em 2 de março de 2023 na Messejana). Di Angellis foi a sexta vítima.