Adriana Calcanhotto estava de malas prontas para ir a Portugal, dar aulas sobre seu processo de composição no curso de Letras da Universidade de Coimbra, quando veio a pandemia de covid-19. Assim como milhares pelo mundo, ela se viu em casa cercada de incertezas, notícias tristes, problemas políticos e sem poder exercer seu ofício. "Foi uma situação muito tensa. O que fazer com aquelas malas, com os planos?", lembra anos depois. Dessa experiência e do remexer nos próprios arquivos, nasceram as canções de "Só", disco de 2020, em que faz um retrato expressivo e panorâmico do momento.
Três anos depois, a situação é outra. O mundo, o Brasil e o governo mudaram e os shows voltaram a reunir públicos presencialmente. A alegria de voltar a algo mais próximo do normal é expressa no raro sorriso que estampa seu novo disco - em 18 discos, esta é só a terceira vez em que ela, de fato, sorri na capa. "O estar em casa também teve o outro lado e eu fui constatando minha necessidade de estar no mundo, de ir pra estrada. E aí vieram mais canções", conta Adriana sobre como nasceram as 11 faixas inéditas de "Errante".
Produzido e composto por ela, o álbum começou a nascer quando ela foi para o estúdio, com cerca de 18 composições inéditas, ainda sem ter um recorte claro. Testando, conversando com a banda, vendo possibilidades, ela foi encontrando o conceito. "O disco reafirma algumas escolhas que eu fiz. Ideias modernistas, que vão ser revistas pelo tropicalismo, que depois foram revistas pelo Emicida e outros. Minha escolha é pela alegria", explica ela apontando a faixa de abertura, "Prova dos nove", como uma carta de intenções ("Vivo no mundo da lua, mas atravesso desertos. Sendo que prefiro os mares").
Nessa mesma faixa, ela se mostra uma mulher de muitas raízes ("Tenho o corpo italiano, o nascimento no Brasil, a alma lusitana, a mátria africana"), o que se reflete num disco de muitos ritmos. Tem o samba de roda "Larga tudo", com direito a percussão de prato e faca, e tem "Era isso o amor?", que também nasceu samba, mas que a banda recriou como um rock. "Eu gostei muito", comemora ela que ainda criou o xote "Pra lhe dizer". "Comecei em Nova York, com essa ideia de 'eu vou mudar de você'. Comecei a fazer numa batida violão que foi indo pro xote, por que foi a levada que melhor se encaixou". Sobre se seria a primeira experiência na música nordestina, Adriana lembra: "bom, 'Esquadros' é um baião".
Também foi na estrada que nasceu "Horário de Verão", que versa sobre a incapacidade de mandar no tempo. Adriana estava na cidade do Porto, assistindo a um show da banda Tono, quando uma música começou a surgir em sua cabeça. "Foi me chegando uma canção que eu não estava entendendo muito. Tem a ver com essa relação com o tempo, que a gente inventa que são tal horas, que isso dura tantos minutos. É tudo invenção e depois a gente se ilude com isso", reflete. Outra filha da estrada é "Nômade", que nasceu enquanto Calcanhotto dividiu com Gilberto Gil uma turnê pela Europa. No convívio, ela foi reunindo frases e histórias do baiano, e construiu uma música sobre o ritmo que ônibus fazia se locomovendo entre uma cidade e outra. "Mostrei pra ele (a ideia), gravei e ele nem ouviu ainda", ri a composiora.
"Errante" apresenta ainda a primeira composição em inglês de Adriana Calcanhotto ("Lovely") e reafirma sua paixão pelos mestres da música brasileira - como em "Levou pro samba a minha fantasia", com ares de Ataulfo Alves e Lupicínio Rodrigues ("Essa eu escrevi no Carnaval de 2020, pouco antes do fim do mundo. Ficou esse tempo guardadinha, esperando o momento de ir ao estúdio. É meio irresistível"). É um olhar para o futuro com a certeza e a segurança do passado. E muito desse trabalho se deve à troca de informações com a banda, cujo núcleo principal conta com Alberto Continentino (baixo, piano e lira), Davi Moraes (guitarra e violão) e Domenico Lancellotti (bateria e percussão).
Adriana, que canta e toca os violões (que pertenceram a Nara Leão e Orlando Silva), encontrou nesse núcleo criativo o modelo ideal de trabalho. Depois de ter explorado muitos ritmos e gravado com diferentes formações nos primeiros álbuns, ela reuniu esse trio - no "O micróbio do samba" - para criar junto no estúdio. "Depois que eu trabalhei com o 2 (projeto formado por Domenico, Moreno Veloso e Kassin), eu entrei num jeito diferente de estar com a banda. Eles são produtores, autores, num jeito muito parecido com o meu jeito de olhar para as canções", avalia ela que convida os músicos para pensarem junto arranjos, timbres e interpretações. "É um comportamento de banda, fui ficando amigos deles. Fui achando um jeito de não ficar intimidada, sem jeito, por não ser musicista. É um jeito desassombrado de trabalhar. Na minha geração, havia essa diferença entre ser um músico de rock, de eletrônico, de MPB, acústico. Pra eles isso não é mais uma questão".
Disco grafia comen tada
1990 - Enguiço (CBS/ Columbia Records)
O termo da época era o ecletismo e ela se coloca com releituras cheias de personalidade para sucessos de Roberto Carlos, Carmen Miranda e Gilson. Mas foi "Naquela estação" (Caetano Veloso/ João Donato/ Ronaldo Bastos) que marcou o disco.
1992 - Senhas (CBS/ Columbia Records)
Depois de uma estreia mais de intérprete, ela mostra as próprias canções e emplaca "Esquadros" e "Mentiras". "Tons" e "Segundos" também merecem atenção. Da porção intérprete, "Mulato calado", de Benjamin e Marília Batista, ganha bela versão.
1994 - A Fábrica do Poema (Sony Music/Epic)
Consolidada como compositora, ela se mostra madura e certeira num disco marcado pelos sucessos de "Metade", "Cariocas" e "Inverno". Menos populares, "Minha música" e "Bagatelas" (do repertório do Barão Vermelho) merecem atenção.
1998 - Maritmo (Sony BMG)
Com forte inclinação pop,
o disco usa muitos samplers, guitarras e programações. Na contramão, Dorival Caymmi divide uma versão acústica de "Quem vem pra beira do mar". "Vambora" e "Mais feliz" (Dé/ Cazuza/ Bebel Gilberto) foram os hits.
2000 - Público (Sony BMG)
Depois de um disco eletrônico, ela se volta para o violão num disco ao vivo quase totalmente acústico. O quase fica pelo sampler inserido em "Vamos comer Caetano". Na parte gravada em estúdio, uma linda versão de "Maresia", de Marina e Cícero.
2002 - Cantada (BMG)
Entre o acústico e o elétrico, Adriana faz um disco mais intimista e de repertório irretocável. Los Hermanos participam em "A Mulher Barbada" e Daniel Jobim toca piano na curiosa versão de "Music", de Madonna. Curiosidade: a faixa "Cantada" foi lançada um ano antes por Maria Bethânia, com o nome "Depois de ter você".
2004 - Adriana
Partimpim (BMG)
Batizado com seu apelido de infância, ela faz um disco de intérprete em que explora timbres e palavras do universo infantil. Além do megassucesso "Sou eu assim sem você", de Claudinho e Buchecha, tem canções de Paula Toller e Arnaldo Antunes.
2005 - Adriana Partimpim, O Show (BMG)
Com um projeto voltado para o universo infantil ela abriu um nicho de mercado ainda pouco explorado por estrelas da MPB. O resultado é um disco/DVD ao vivo em que expande a brincadeira usando sons e figurinos divertidos.
2008 - Maré (Sony/ BMG)
De volta aos adultos, ela dá sequencia a uma trilogia "marinha" iniciada em "Maritmo". "Porto Alegre", de Péricles Cavalcanti com vocais de Marisa Monte é o destaque de um disco que puxado pelo sucesso de "Mulher sem Razão" (Dé/ Cazuza/ Bebel Gilberto).
2009 - Partimpim Dois (Sony Music)
Com o sucesso do primeiro volume (e agora com muita gente grande fazendo discos infantis), Adriana traz João Gilberto, Caetano Veloso e Bob Dylan pro parquinho.
2011 - O Micróbio do Samba (Sony Music)
Com o samba em alta, Adriana lança um disco todo dedicado ao ritmo mais brasileiro. Todo autoral e inédito, ela explora timbres pouco convencionais ao samba, como guitarra e baixo elétrico.
2012 - Multishow ao Vivo: Micróbio Vivo (Sony Music)
Inspirada nos transsambas de Caetano Veloso, Adriana registra ao vivo seus sambas feitos em baixo, bateria e guitarra. Celebrando a tradição, ela inclui "Argumento" (Paulinho da Viola) no repertório.
2012 - Partimpim Tlês (Sony Music)
Terceiro volume do projeto infantil tem boas versões para "Taj Mahal" (Jorge Benjor) e "Lindo lago do amor" (Gonzaguinha", entre outras. Agrada não só aos pequenos.
2014 - Olhos de Onda
(Sony Music)
De volta ao formato que tanto fez fama em "Público", Adriana reúne canções em novo show de voz e violão. A inédita "Maldito rádio" é destaque num repertório que reúne releituras de Amy Winehouse ("Back to black"), Marina ("Três" e "Maresia") e Sullivan & Massadas ("Me dê motivo", sucesso na vos de Tim Maia).
2015 - Loucura (Sony Music)
Convidada pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul para homenagear o centenário de Lupicínio Rodrigues, o registro vai de clássicos ("Nunca", "Ela disse-me assim", "Nervos de aço") até o "Hino do Grêmio Foot-Ball Portoalegrense".
2019 - Margem
(Sony Music)
Encerrando a trilogia "Maritmo" e "Maré", ela volta a abordar as águas num disco que veio da sequencia do show "A mulher do pau-brasil". A faixa "Tua" deu nome ao disco lançado por Maria Bethânia em 2009.
2020 - Margem ao Vivo (Biscoito Fino)
Este sexto disco ao vivo é o que mais se aproxima de uma reunião de sucessos, com destaque para a trilogia marinha. Tem versão quente de "Maresia" e participação de Rubel nas faixas "Você me pergunta" e "Mentiras".
2020 - Só (Minha Música)
Lançado durante a pandemia de covid-19, o disco fala de isolamento, tensão política e incertezas. São sambas, funks e baladas que tencionam e aliviam a situação. "O que temos são janelas, o que temos são panelas", diz ela em "O que temos", faixa que remete ao modelo de protesto possível na época.
Errante
Produção Adriana Calcanhotto
11 faixas
Disponível nas plataformas digitais