A essa altura, é difícil imaginar que alguém não esteja sabendo que amanhã estreia ‘Barbie’. Ainda nesse contexto de retomada da expansão do cinema norte-americano após as paralisações da pandemia, mesmo em meio às tensões de uma crítica greve conjunta de roteiristas e atores de Hollywood, o estúdio Warner Bros investiu em uma de suas maiores campanhas de marketing para construir a sensação de um acontecimento, de um evento imperdível. Desde o ano passado, quando começaram a surgir na internet as primeiras imagens dos bastidores, o assunto foi se tornando onipresente, atraindo atenção de pessoas de todas as idades. Quando o trailer foi lançado, com referências a “2001: Uma Odisseia no Espaço” e “Matrix”, então, a explosão foi imediata.
Importante lembrar desse processo porque o impacto que a personagem causa em nós é o centro gravitacional do grande conflito: Barbie, afinal, descobre que sua existência não transformou o mundo num lugar perfeito. Nesses tempos, em que conversamos com temor sobre a invasão da inteligência artificial, é fascinante que essa história seja um caminho contrário, de uma fantasia que se assusta com o mundo real.
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Quando mergulhamos na ‘Barbielândia’, o filme ostenta todo seu potencial imagético ao cruzar as duas realidades – as cores, os brinquedos, os cenários, a alegria e a eterna repetição de uma vida polida, límpida, sem erros. As infinitas Barbies acordam, conversam com os infinitos Kens, e, à noite, curtem a mesma festa de sempre. Mas, de repente, quando algumas peças saem do lugar, Barbie precisa visitar o mundo real para encontrar suas respostas. Ken, seu eterno coadjuvante, vai junto. Descobre que, na realidade, o mundo é “dele”.
A contraposição de patriarcado e matriarcado, entre um mundo e uma ideia, é envolvente, mesmo sem correr riscos ou se aventurar por grandes surpresas e reviravoltas. “Barbie” é esperto por reconhecer isso e assumir seu limite, refletindo de forma sistemática a crise de um mundo dominado pelos homens. Funciona muito bem, mesmo assim, porque o filme nunca faz isso sem uma boa dose de comédia. Margot Robbie (Barbie) se encaixa tanto na evolução dessa personagem, na epifania e na frustração, que até o próprio filme tira onda com isso. Do outro lado, Ryan Gosling (Ken) é uma surpresa deliciosa porque seu humor chama muita atenção e se sustenta até mesmo nos momentos mais cafonas – na pele de quem está, diante do espaço que o roteiro lhe confia para a condução da própria história, é um dos maiores triunfos do filme.
É curioso tentar entender o tom em que “realidade” e ilusão conversam aqui, porque é perceptível que qualquer passo fora do lugar faria tudo desmoronar, tornando o filme insuportavelmente bobo na sua plastificação do gestos e dos acontecimentos que não possuem qualquer gravidade porque, bem, eles são bonecos. Não é o que acontece na maior parte, felizmente, porque na condução dessa odisseia temos Greta Gerwig, cineasta californiana que traz na bagagem uma carreira de filmes consonantes na brincadeira. Como atriz ou diretora, seu cinema sempre gostou de ser leve, divertido, de construir um lugar onde dores e crises são passageiras. Gerwig, portanto, encontra em “Barbie” a equação perfeita para sua tradução do “mundo real”, como se tudo o que ela tivesse feito fosse apenas para trazê-la até aqui. Bingo.
Do lado de cá, o filme engata numa controversa metalinguagem quando encaixa a própria Mattel no jogo de poder. Se Greta prefere não causar qualquer interferência estética na nossa realidade, parecendo por isso ainda mais superficial do que o lugar de onde Barbie veio, a clássica empresa de brinquedos é apresentada como uma extensão desse pavor - um prédio escuro, claustrofóbico e entupido de homens em todos os poderes. A Mattel, liderada por um homem, é produtora do filme, e usa isso como estratégia inofensiva de revisão - a fuga frenética da Barbie pelos corredores, perseguida por um clã de empresários bobões, joga a discussão no ar.
Nesse sentido, também surpreende que a maior parte do filme seja fora da “realidade”, deixando que seus momentos-chaves sejam construídos na fantasia de um mundo sem perigos materiais. A luta entre bonecos e o esperado confronto entre Barbie e Ken acontecem na ironia de que o egocentrismo masculino é violento mesmo sem consequência física, sobrevivendo principalmente das ideias. Quando Barbie encara a diferença entre ser uma ideia e criá-la, então, a mensagem se revigora.
Como não podia ser diferente, já que esbanja um leque de cantoras na trilha sonora original, há grandes momentos reservados para isso. O destaque fica com as canções de Dua Lipa e Billie Eilish que abordam a mesma inquietude da protagonista, mas em sentimentos opostos de excitação e melancolia. O número musical dos Kens em meio a uma revolta, obviamente, é um momento tão surpreendente em questão de roteiro, composição e cenografia, que já nasce inesquecível.
Com muita música, cenas de ação e recheado de piadas sobre como a “cultura masculina” se infiltra na compreensão até da cinefilia, “Barbie” foi feito para ser um sucesso absoluto: sem assustar ninguém e atendendo a esperança de que os filmes simplesmente divertidos voltem a ser o centro das atenções. Ao olhar para o impacto que a boneca tem feito na indústria ao longo de todos esses anos, inclusive complexificando a forma como a sociedade agora interpreta a perpetuação e quebra dos padrões, este filme é como uma revitalização de seu poder, dando a Barbie a inesperada consciência de sua própria eternidade.
Barbie
Estreia nos cinemas na quinta-feira, 20. Salas e sessões em ingresso.com
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