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Dores da ditadura seguem mobilizando criações artísticas 60 anos após golpe
Vida & Arte

Dores da ditadura seguem mobilizando criações artísticas 60 anos após golpe

As marcas da ditadura militar brasileira são debatidas em obras artísticas contemporâneas como forma de não esquecer o período e evitar repetições e desinformações
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Foto: Nayra Maria/Divulgação Peça "Ato Confessional Nº 5", do grupo Valkirias, se inspira em obra de Ricardo Guilherme

Em 31 de março, a ditadura militar do Brasil completa 60 anos. A deposição do presidente João Goulart marca o início de um momento obscuro na história do País. Esse capítulo da história, porém, é marcado por uma dicotomia quando o assunto é a cultura nacional.

Apesar das censuras, das torturas, dos exílios e das dores, o ano de 1964 também marca o início de um período de grande efervescência artística. Seis décadas depois, a cultura segue olhando para a ditadura, numa busca permanente de não deixar o esquecimento se impor. Produções contemporâneas seguem trazendo à memória as dores vividas numa nação profundamente marcada.

“O passado é um território de conflito. Muitas das visões que temos sobre a História de um povo vem do ponto de vista dos que possuem as ferramentas materiais para impor sua versão do que aconteceu”, afirma Soares Júnior, historiador formado pela Universidade Federal do Ceará (UFC) e diretor de teatro formado pelo Curso de Artes Dramáticas da UFC (CAD).

O acadêmico dirigiu a peça “Ato Confessional Nº 5”, do Grupo de Teatro Valkírias. Baseada no texto “68.com.br”, do ator, dramaturgo e diretor cearense Ricardo Guilherme, a obra revisita o período da ditadura militar por meio de confissões. O espetáculo é feito com elenco composto somente por mulheres, que tocam nas feridas produzidas por esse tempo por textos confessionais, mesclando o Teatro Radical e Expressionismo.

A ideia de montar a peça “Ato Confessional Nº 5” partiu de Annalies Borges, atriz responsável pela adaptação do escrito de Ricardo Guilherme. "Eu havia lido alguns textos de Ricardo e ‘68.com.br’ foi o que mais me chamou a atenção, por trazer uma temática sensível e necessária com um olhar reflexivo e crítico sobre nossas memórias”, conta a artista.

“Então, em 2017, levei ao grupo a proposta de adaptarmos ‘68.com.br’. Falei da importância de levarmos a peça aos palcos de Fortaleza em 2018, ano de eleição, um período de pensamentos extremos e que completavam 50 anos do AI-5”, relembra Annalies. A peça estreou em 2018, ficando em cartaz em 2019 também. Voltou aos palcos após a pandemia, nos anos de 2022 e 2023.

Devido a essa pausa, por causa do período pandêmico, a apresentação teve dois elencos distintos. O primeiro formado por: Emaynária Martins, Mirlla Araújo, Emily Carvalho, Julianne Pinheiro e o segundo com: Kelva Cristina, Shirley Diógenes, Jéssica Alves. Annalies permaneceu como fator comum entre os dois grupos.

Como o texto original foi escrito em 1998, o grupo contou com o apoio de Ricardo para ajustar a temporalidade e usar outras referências do autor como complemento para estudos e experimentações. “Debates e leituras teóricas com o elenco, e com todos os envolvidos no processo, para que todos estivéssemos na mesma página de pensamento sobre o que estávamos abordando e da importância de dar voz aos perseguidos pela repressão militar”, compartilha Soares Júnior, o diretor da peça.

Annalies, que salienta que a construção do enredo foi um processo coletivo do Grupo de Teatro Valkírias, se interessa pelas problemáticas da ditadura militar desde o ensino médio. ”Tive um professor de física, que fez parte do movimento estudantil que se opunha à ditadura. E pude ouvir o outro lado da história, aquelas narrativas silenciadas, e fiquei muito impressionada como nem nos livros de história da época (década de 1990), havia esse outro olhar: o olhar dos que foram perseguidos, oprimidos, apagados da existência”, relembra a atriz.

Já a diretora, pesquisadora e professora de Teatro Herê Aquino montou um espetáculo que também abre as feridas ainda não cicatrizadas da ditadura inspirado em histórias de ativistas da época, que ela mesma conhecia. “Um pouco antes da pandemia, eu e mais algumas atrizes nos reunimos para montar uma companhia de teatro somente com mulheres e que trouxesse para a cena temas feministas e de empoderamento da mulher”, detalha Aquino.

“Quando estávamos pesquisando temas que poderíamos abordar na montagem, lancei a proposta de mergulharmos na história de mulheres que tinham lutado contra a ditadura. Eu conhecia a história de muitos militantes da época, mas nunca tinha ouvido falar das histórias das mulheres, então propus para o grupo e o tema foi aceito”, conta a diretora.

A artista é filha de ex-preso político, então, se relaciona com a pauta desde criança. “Meu pai, José Valdir de Aquino, foi preso e torturado durante a ditadura cívico-militar. Ele era bancário e participava do sindicato e de movimentos sociais que lutavam por democracia e por justiça social”, diz a pesquisadora de teatro.

“Na época eu era criança, mas vivi a violência da ditadura todas as vezes que a polícia invadia minha casa para queimar livros e prender meu pai, que sumia por meses. Cresci construindo minha consciência política com experiências vividas e, também, participando do movimento estudantil e de movimentos sociais que lutavam por melhorias sociais”, rememora Herê.O processo de produção iniciou com a visita a casa de Mário Albuquerque e Neidja Albuquerque, filhos de Dona Lourdes, mãe de 4 filhos que foram presos na ditadura e que era conhecida no Ceará como "mãe da anistia" e "mãe coragem".

Após esse encontro, o grupo foi à Comissão de Anistia Wanda Sidou , onde tiveram acesso a vários depoimentos de ex-presas políticas e de familiares dessas mulheres. “Esse material foi muito importante para iniciarmos as pesquisas e nos motivar a criar o espetáculo. Mas nós não queríamos ficar somente nas pesquisas teóricas, queríamos conversar com elas, abraçá-las, saber de suas lutas, de suas dores, suas motivações, sentir como tudo aquilo tinha atravessado cada uma delas e saber como elas estavam vendo a atual situação do País”, destaca Herê.

No campo da literatura, o historiador estadunidense James N. Green revisita a relação entre Brasil e Estados Unidos durante a ditadura na obra “Escritos de um viado vermelho”, lançada em março de 2024, pela editora Unesp. “Eu conheci um exilado brasileiro em 1973, que foi preso político, torturado e exilado. Ele me chamou para colaborar com ele em uma campanha para denunciar o que estava acontecendo no País”, relata James.

Por meio de textos sobre personalidades esquecidas ou não mencionadas com frequência na historiografia brasileira, James, que é também professor de História Moderna da América Latina na cátedra Carlos Manuel de Céspedes, toca nas feridas do período ditatorial mesclando relatos autobiográficos com pesquisa acadêmica.

“Trago um debate com a esquerda sobre uma homofobia latente nos movimentos que refletia um preconceito da sociedade contra as pessoas da comunidade LGBTQIAP+”, afirma Green, que também leciona História e Cultura do Brasil na Universidade Brown, nos EUA.

“Tem um artigo sobre Herbert Daniel, que queria entrar numa organização contra a ditadura, mas, ao mesmo tempo, sentia esses desejos sexuais e percebia que não havia um clima dentro da organização para ele se assumir. Então, ele ficou escondendo a sua sexualidade por 5 anos para poder permanecer nesse movimento”, conta James, sobre o fundador do Partido Verde, que atuou com Dilma Rousseff e outros militantes mineiros contra o regime ditatorial.

“Também há um outro texto sobre um casal que estava preso e resolveram assumir a sua relação (homoafetiva) dentro da prisão e causou um certo tumulto entre os outros presos políticos que estavam no presídio Tiradentes, em São Paulo”, destaca o professor Green.

O acadêmico enfatiza que os ensaios são um modo de mostrar aos grupos de esquerda que as demandas da população LGBTQIAP+, que ainda não são prioridade para esses movimentos, segundo James.

Madame Satã é outra figura que aparece entre as páginas do livro. Um homem negro, homossexual e malandro que ficou conhecido como um símbolo da boêmia. “A sua imagem foi reapropriada durante a década de 1960 por setores da boêmia do Rio de Janeiro, como uma figura exótica. Então, analiso porque o jornal Pasquim, que costumava ser homofóbico e machista, resolveu abraçar e promover esse personagem”, diz o professor.

“É um trabalho que olha para trás, para refletir sobre as origens do autoritarismo e militarismo no País, um insight sobre repensar e recontar a história do Brasil”, salienta James.

Como uma forma de também refletir sobre esse passado e desfazer uma imagem de “ditador moderado” em torno de Castello Branco, nasce o filme “Castello, o ditador”. Disponível na plataforma O POVO Mais, o documentário é dirigido pelo jornalista Demitri Túlio e pela realizadora audiovisual Luana Sampaio, que também assina o roteiro do longa-metragem.

Jana Moroni Barroso, Teodoro de Castro e Custódio Saraiva Neto são alguns dos nomes de desaparecidos políticos no Estado, que são citados no documentário, além de Frei Tito de Alencar.

“Para que não se esqueça e para que nunca mais aconteça. Um país tem que ter sua memória preservada. Não se constrói o presente e o futuro sem olhar para trás e aprender com o que vivemos”, completa Herê Aquino.

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