Na primeira cena em que vemos a personagem que dá nome ao filme, ela mergulha num mar de azul paradisíaco e se depara com uma arraia gigante, encarando-a como se houvesse uma admiração mútua nestes dois lados da natureza, entre caça e caçador. No peito, a garota tem a cicatriz de uma fenda que dizem ter sido aberta quando nasceu para arrancar seu coração. É verdade ou um delírio? Cenas assim se repetem ao longo de "Sem Coração", expandindo a delicadeza de seu mergulho num grupo de jovens que dividem suas vidas nos anos 1990 numa praia de Maceió.
O filme chegou aos cinemas 10 anos depois da estreia do curta homônimo, famoso inclusive pelo circuito de exibições em grandes festivais, incluindo Brasília, Cannes e Havana. Com estreia mundial no 80º Festival de Veneza, o longa vem repetindo parte dessa atenção, dedicando-se à reinvenção de sua origem, mas mantendo intacta sua relação com o personagem coletivo formado entre a beleza da praia e sua contraditória sensação de sufoco. "Será que um dia eu vou sair daqui?", pergunta um deles, triste.
Se no curta alguém chegava na vila, no longa é alguém que está prestes a partir. Interpretada com uma constante melancolia por Maya de Vicq, Tamara está vivendo seus últimos dias ali antes de viajar para uma cidade sem praia, promessa de um futuro com "mais estudo" e oportunidade. Então, ela olha as árvores, o mar, as pessoas, sem pertencimento, com saudade de algo que ainda nem perdeu. Quando canta sentada no quarto com a mãe (Maeve Jinkings), quando se aventura no meio das ruínas ou quando caminha pelo mar à noite - essas cenas já são, de certa forma, despedidas.
Para enquadrar as distâncias desse sentimento, Nara Normande e Tião são criativos ao mapear esse terreno afetivo com muitas arestas, aproveitando seu elenco para dualizar a partida com uma teia de descobertas da juventude, também com suas frustrações e violências, numa colmeia onde abelhas se atraem e se repelem. Impregnado nesse vendaval, o filme alterna entre o susto e o carinho como uma onda que bate na praia e volta para o mar, às vezes feroz, às vezes calmo demais, sem destino. A câmera que está quase sempre flutuando como se estivesse sobre uma jangada, as cores quentes que esfriam de repente, tudo na mesma sintonia.
Embora Tamara esteja no centro dessa ebulição, com "medo das coisas que quer", o filme não a pertence. Sem Coração e Galego, vividos por Eduarda Samara e Alaylson Emanuel, representam forças opostas naquele círculo de amigos, mas muito próximos da mesma margem, confrontados com o limite de fuga que a escassez os impõe. Há uma delicadeza incomum na forma como Nara e Tião encaixam isso também nos sonhos, na superstição de uma contemplação imóvel - a cena da baleia morta sobre a areia da praia, depois invadida e incendiada por dentro, é um motor sutil e inesquecível para os significados dessa história.
"Sem Coração", portanto, não esconde sua afinidade com as características que tornaram esse dito "cinema brasileiro contemporâneo" tão emblemático, que é a fantasia atrelada aos abismos de seu contexto social, de classe, raça e gênero, olhando para seu leque de personagens como espelhos sutis da realidade. A diferença aqui é que o mundo ainda não está feito para essas crianças e adolescentes, experimentando aos poucos a ideia de que a beleza um dia simplesmente desaparece.
Sem coração