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Especialistas e fãs refletem sobre impacto cultural de Madonna além da música
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Especialistas e fãs refletem sobre impacto cultural de Madonna além da música

Madonna vem para o Brasil com turnê em celebração aos 40 anos de carreira. Vida&Arte analisa os impactos da artista para além da música
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Madonna em show (Foto: Wikimedia Commons)
Foto: Wikimedia Commons Madonna em show

O título da reportagem é um termo criado por Horácio Brandão em um artigo para o jornal O Globo sobre o show da Madonna que acontece neste sábado, a partir das 21h45min . O conceito amálgama o nome da artista pop com Copacabana, local onde a apresentação acontece de forma gratuita. 

Desde o final de abril fãs da artista se deslocam para o Rio de Janeiro em um movimento similar ao êxodo hebraico, mostrando que a relevância da cantora permanece ainda aos 40 anos de carreira, celebrados na turnê que se encerra no Brasil. O cantor cearense Daniel Peixoto é um dos que se reúne a multidão de admiradores da Madonna na capital carioca. 

“São 40 anos escrevendo músicas e eu  vejo que existe uma identidade que ela é uma mulher extremamente inteligente que fala com propriedade usando a linguagem simples, o que é mais difícil”, reflete Daniel sobre Madonna conseguir permanecer relevante ao longo das 4 décadas. 

A inteligência a que o artista natural do Crato se refere é a capacidade de Madonna conseguir ser um produto da indústria cultural e ao mesmo tempo usar isso a seu favor para transpor as barreiras da música e conversar sobre pautas de populações marginalizadas, como na época em que lutou contra a epidemia de Aids nos anos 1980 e 1990. 

Segundo Pedro Curi, professor de Jornalismo e coordenador do curso de cinema e audiovisual da ESPM, a “Material Girl” sempre teve como principal característica a vontade de ir contra a ordem social.  “Mesmo sendo uma pessoa muito querida pela indústria, ela tratou de temas muito sensíveis à sociedade, ela vai contra a igreja ao fazer o clipe de ‘Like a Praye’ falando contra a instituição da igreja”, argumenta o também especialista em Cultura de Fãs. .

“Tem a clássica entrevista no David Letterman, ela fumando charuto falando palavrão dizendo que vai na boate gay para chocar mesmo. E não é para chocar no sentido de só parar o trânsito, mas para fazer as pessoas pensarem que essas pessoas existem”, destaca o comunicador Horácio Brandão. “Então, esse show também uma ode à diversidade a partir do momento que ela já começa com uma drag queen, o Bob The Drag Queen”, acrescenta. 

Curi reforça que o ativismo da “Rainha do Pop” é o que manteve a fã base tão fiel mesmo ao longo de 40 anos. “Porque a cultura de fã também é uma questão identitária muito forte. Pessoas que se juntam por gostar de algo, amar algo, e construir laços em torno de algum tipo de texto midiático”, ilustra o pesquisador.

“Então, esses grupos foram se formando em torno das causas que dizem respeito a Madonna ou se juntaram por alguma questão identitária e as coisas acabam se misturando e ela passa a ser a representante disso”, explica Pedro. A segunda temporada da série “Pose” (2018-2021) centrada no hit “Vogue” da “Little Nonni” (apelidado dado a Madonna por sua família) exemplifica isso. 

Em um determinado episódio da produção, Blanca Evangelista (MJ Rodriguez) celebra o lançamento da canção. Para a protagonista da série dirigida por Ryan Murphy e Steven Canals, aquilo significa a popularização da cultura Ballroom e de quem a produzia: a comunidade LGBTQIAP+. 

A animação da personagem tinha razão: as dores da sua comunidade seriam levadas a sério agora que uma artista pop com relevância estava sendo a porta voz de um grupo marginalizado. Afinal, ninguém menos do que Madonna estava advogando em favor da comunidade e entrando na luta contra a epidemia de AIDs durante os anos 1980 e 1990. 

“Madonna é uma figura que que sempre usou esse lugar que ela tem no mundo do showbusiness para falar coisas importantes para se posicionar de uma de uma forma muito firme em relação a alguns pontos específicos”, destaca Thiago Guimarães, especialista em Cultura Pop. 

Daniel Peixoto, cantor cearense, salienta que o ativismo da “Material Girl” não era algo apenas feito para conquistar a audiência. Mas porque as pautas diziam a respeito sobre momentos vividos pela própria artista. “Ela está falando sobre si, sobre algo que pertence a vida dela, Tem um discurso que ela para a Billboard onde ela fala que perdeu os amigos para o HIV, drogas e violência”, relembra o artista natural do Crato. 

Além de lutar pelas causas da comunidade LGBTQIAP+, a artista advogou contra as invasões terroristas realizadas pelos Estados Unidos no Iraque durante os anos 2000 por meio da música. O clipe “American Life” onde ela questiona o “Sonho Americano” chegou a ser censurado na época. 

Esse posicionamento político da “Little Nonni” também foi o que fez Thiago Guimarães se conectar com ela. “Ela era uma figura que já chega na minha memória, no meu imaginário como alguém polêmica, subversiva, que desbrava e que fala e que se posiciona”, enfatiza. “Então ela tem um lugar muito especial, porque ela já começa na minha vida com lugar muito especial por causa disso, porque é quando tá se formando esses meus primeiros entendimentos sobre política”, destaca o também graduado em Rádio e TV pela Universidade Federal de Pernambuco.

 

Ato de permanecer

“A Madonna teve a audácia de envelhecer perante as câmeras”, diz Daniel Peixoto, cantor cearense. “Ela acha que a coisa mais polêmica que ela fez foi permanecer”, diz o artista nascido em Fortaleza e crescido no Crato. O cantor lembra que já aos 35 anos a “Material Girl” era considerada velha demais para estar na indústria.

“Os estereótipos é que são limitantes, então a gente ter uma celebridade do porte de Madonna que propõe uma outra visão”, salienta Gisela Castro, professora da Pós-Graduação em Comunicação e Práticas de Consumo da ESPM.

“A perspectiva de uma mulher de 65 anos abertamente desejante, plena e com a libido em dia, é muito importante como alternativa mesmo para a gente aprender a relativizar esses estereótipos que só fazem mal e só limitam as possibilidades de vida”, acrescenta a pesquisadora. Para ela, oferecer modelos que mostram formas distintas de envelhecimento é um dos modos de lutar contra o etarismo. E “Little Nonni” (apelido de Madonna dado por sua família) também entra nessa causa.

“E isso é muito importante, ela se mostrar ativa, disposta a continuar trabalhando, botando um show enorme como esse que ela está fazendo agora, um show retrospectivo, comemorar os 40 anos de carreira, com um contingente enorme de dançarinos e pessoas em cena, inclusive os filhos da Madonna. É muito bonito isso”, defende Gisela.

“É uma das coisas que Madonna percebeu, tem um discurso dela muito famoso, ao receber um prêmio importante da indústria da música em que ela denuncia falta de espaço para mulheres mais velhas na indústria do entretenimento, mais especificamente na indústria da música. E denuncia o etarismo e diz que, olha, vocês vão ter que me aturar porque eu não pretendo parar tão cedo”, Castro se refere a fala feita pela “Material Girl” no Grammy de 2023.

Na ocasião, a artista havia recebido críticas por estar usando procedimentos demais para se manter jovem. Gisela aponta que esse movimento acontece por causa do “modelo paradoxal de envelhecimento” proposto pela indústria anti idade. “As pessoas são elogiadas, principalmente as mulheres são elogiadas. Nossa, você tem essa idade? Não parece. Como se não parecer a idade que tem fosse alguma coisa boa, alguma coisa digna de se celebrar. Qual é o problema de parecer a idade que se tem?”, reflete.

Além de se manter ativa, Madonna é celebrada por conseguir dialogar com as novas gerações. Daniel atribui isso ao fato da artista ter uma paixão pelo o que faz. “Ela nunca quis parar e sempre teve isso de renovar os públicos. Lembro que no começo dos anos 2000 ela escreveu uma série de livros infantis que fez muito sucesso. Então, ela já estava plantando uma semente para a geração que viria”, conta o cearense.

“Quando ela beija a Christina Aguilera e a Britney Spears, estava mandando uma mensagem para as pessoas mais novas da comunidade LGBTQIAP+ que estavam no armário ainda”, diz Horácio Brandão, comunicador mineiro nascido na Bahia. “Hoje ela fala mais com o público da Geração Z do que com a galera da minha era, porque ela está presente nos ambientes das novas gerações, como o Tik Tok”, explica.

Leia no O POVO + | Confira mais histórias e opiniões sobre música na coluna Discografia, com Marcos Sampaio

Ícone da Moda

Madonna também usa a moda como veículo de seu posicionamento político.”Ela desafia normas estabelecidas e utiliza suas roupas como forma de expressão, muitas vezes transmitindo mais do que informação de moda, mas posicionamento político e social”, afirma Antônio Rabadan, professor do curso de Design em Fashion Business da ESPM.

“Penso que Madonna chegou em um estágio de sua carreira onde consegue desempenhar seu papel de artista em essência, absorvendo as mudanças do mundo e traduzindo-as em performances, antecipando tendências comportamentais como uma verdadeira cool hunter (profissional de marketing que antecipa tendências)”, explica Rabadan.

“Ela se posiciona muito bem com as características e os elementos da moda, desde o icônico corset com seios pontiagudos até as transparências, as sobreposições de roupas e várias outras caracterizações”, exemplifica o acadêmico. “Não é à toa que ela está a frente de uma das maiores campanhas de branding já veiculadas no Brasil reforçando exatamente isso: que ela é feita de futuro”, destaca o pesquisador.

Para Gilson Martins, usar a moda como meio e mensagem é o que torna um artista, quem quer que seja, completo. “O artista completo consegue entender em 360 graus o que esse trabalho dele, da música, vai trazer de comunicação além, principalmente nesse figurino que pode se transformar em Moda”, defende. O designer de moda ganhou notoriedade por ser o responsável por desenvolver a bolsa que foi dada de presente a Madonna durante a passagem dela pelo Rio de Janeiro, em 2009.

“Artistas como Madonna reconhecem a moda enquanto meio de expressão, comunicação e manifestação cultural. Ao brincar com a moda dentro e fora dos palcos, eles provocam reflexões sobre questões maiores em nossa sociedade, desafiando padrões estabelecidos e inspirando novas formas de pensar e vestir”, salienta Antônio Rabadan.

O pesquisador afirma que Madonna é considerada por muitos uma das figuras centrais na mudança de paradigma entre Moda e Cultura. Gilson observa que a “Material Girl” põe a Moda que tange outras áreas além da estética, como a já citada política e a comportamental.

“É uma moda de comportamento estético, social, visual, de seu comportamento como personalidade é muito mais que um tripé, é um polvo, é um polvo social, a Madonna, porque ela fala de muitas maneiras”, ilustra o designer. Para Martins, tudo o que a artista veste diz não só sobre o posicionamento político dela, mas também sobre o “personagem Madonna”.

“Então a forma que ela lida no palco, que ela xinga os fãs, ou seja, é tudo uma forma ali de transgressão de verdade, ela não é ali naquele momento a mãe de seis filhos, fofa, querida. Ela é ali aquela personagem que quer transgredir, que quer falar realidades e que fala da vida dela junto com tudo aquilo que ela tá passando ali dentro daquele momento, que também é um momento de total entretenimento, de questionamento, de prazer e milhões de coisas”, completa o estilista.

Figura materna

O mineiro-baiano Horário Brandão e o cantor cearense Daniel Peixoto compartilham além da admiração por Madonna, o olhar sobre ela como uma figura materna. Para ambos, a “Material Girl” mostrou como ter orgulho de quem se é, com “Express Yourself” e outras produções musicais, mas também foi o primeiro contato deles com a educação sexual.

O especialista em Cultura de Fãs Pedro Curi, explica que esse movimento acontece com divas pop, mas no caso da Madonna, isso acontece principalmente pela forma como ela se coloca na indústria. Esse fenômeno fica claro a partir inclusive do nome artístico dela que tem uma conexão direta com Nossa Senhora, que é uma figura materna dentro da Bíblia”, explica o também professor de Jornalismo e coordenador do curso de cinema e audiovisual da ESPM.

Essa perspectiva é ainda anterior a Madonna e ocorreu com figuras do audiovisual como Bette Davis, Barbra Streisand, segundo Thiago Guimarães, especialista em Cultura Pop. Para ele, isso acontece porque você precisava de alguém num contextode alguém que tem uma grande voz e pode falar”, defende o também graduado em Rádio e Tv pela Universidade Federal de Pernambuco.

“E aí você ter a Madonna lá como a mulher que tem um espaço em certa medida por ser branca e por ser Cis para usar a sua voz para defender uma população que não era ouvida, então eu acho que isso é muito forte para muita gente”, destaca Guimarães.

“Uma mulher que se assume e assume sua sexualidade tem muito a ver com o universo LGBTQIAP+. Em “Na Cama com Madonna” lembro de ter visto dois homens se beijando e aqui me deixar boquiaberto pensando ‘Nossa, isso existe’. É como se, ao testemunhar isso, eu me desse conta na época, de que não estava sozinho”, relembra o comunicador.

“Entendi que tenho a liberdade de escolher com quem me relacionar e que minha sexualidade não é uma doença. É algo que aprendi ao longo do tempo com ela”, destaca Brandão. O mineiro-baiano teve seu primeiro contato com a artista aos 12 anos quando escutou a música “Everybody” na trilha sonora da novela “Final Feliz”, em 1982.

“Meu primo trouxe do Rio de Janeiro o primeiro álbum dela, o “Madonna” e eu escutei as férias inteiras e ficava olhando para a cara daquela mulher”, rememora Horácio, que na época morava no interior de Minas Gerais, apesar de ter nascido na Bahia. Movimento similar ocorreu com o cearense Daniel Peixoto, que nasceu e cresceu no Crato.

“Durante a minha infância não tinha internet, a gente consumia mídia o que saía na TV e o que tocava na rádio. E a Madonna era uma das poucas artistas internacionais que tocava na rádio AM”, conta o artista. “Eu sempre gostei das músicas e uma identificação natural foi acontecendo”, detalha.

“Quando fui ficando um pouco maior já lá nos anos 1990 aquela vez que ela que ela veio ao Brasil pela primeira vez, percebi que as pessoas a massacravam muito. E ela sempre teve uma ar de maldita e eu sempre discordava de todos os argumentos e as questões que as pessoas falavam para criticar ela, porque era o que me aproximava dela. A coisa da liberdade”, salienta Peixoto.

O documentário “Na Cama com Madonna” (1991) também foi fundamental para o cratense entender a sexualidade e quem ele era. “Você não se torna gay. Algumas pessoas já tem consciência que elas são gays na infância e outras não. Eu já tinha só me entendido como gay, só que assim por conta da religiosidade da criação do machismo lá do sertão do Ceará, eu sempre achava que eu era errado, que eu era uma aberração, que a Bíblia me condenava”, lembra Daniel.

“Quando eu assisti esse filme, tinha 9, 10 anos, e vi a Madonna com outras mulheres, outros homens, mostrando a comunidade LGBTQIAP+ como forma positiva, como algo normal, isso me deu uma identificação com ela”, elucida o cearense.

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