Ah, a minha paixão irrefreável pelos dicionários... É neles que encontramos a essência e o significado das palavras, bem como os sinônimos e os antônimos destas. Nos últimos dias tenho me ocupado com o vocábulo surto, o qual, parece, anda na moda, de tanto que dele se fala e se utiliza para justificar qualquer malfeito. O pai dos burros nos ensina que o termo, substantivo masculino, está sempre ligado à imprevisibilidade e à rapidez, expressando, entre outros fenômenos, aparição imprevista de coisas variadas, no geral doenças; momento repentino de arrebatamento; ataque inesperado, acesso e tendo, como sinônimos, arroubo, impulso, irrupção, crise. Epifania é também um deles, sugerindo tanto a revelação do que é divino quanto a centelha veloz.
Um dos sentidos do verbete tem a ver com questões psíquicas, a saber, crise psicótica que, dependendo do nível, pode causar um afastamento da realidade, incapacidade de julgar com bom-senso a realidade e alteração da personalidade. É precisamente esse ponto que gostaria de discutir. Escreveu certa vez Clarice Lispector que na vida somos artistas de uma peça de teatro absurdo escrita por um Deus absurdo. Nesta terra da dissimulação e da malandragem, transformar a existência numa obra teatral, para muita gente, é sobrevivência. Nessa manipulação, o surto tem sido frequentemente usado como desculpa para o cometimento de crimes os mais diversos, tal como o ator se mascara para interpretar um papel. E o pior é que a justiça engole direitinho.
No Rio de Janeiro, a sobrinha levando o tio morto à agência bancária para conseguir na marra um empréstimo de R$ 17 mil. Em São Paulo, o sujeito dono de um Porsche, alcoolizado, dirigindo em alta velocidade e abalroando o carro de um motorista de aplicativo, matando-o na hora. Em Camocim, um garçom vindo da cozinha de um restaurante para assassinar cruelmente a facadas um vereador que estava à mesa para almoçar. Todos os criminosos, alegando inocência, disseram ter surtado ou ingerido medicação tarja-preta. É muita desfaçatez, convenhamos. Tão logo se dá o infausto ocorrido, entra em cena um batalhão de operadores do Direito com as defesas mais estapafúrdias. E o legal é que não há registro dos alucinados distribuindo rosas e beijos ao povo...
Na verdade, vivemos esse cotidiano falsamente enlouquecido para além da crônica policial. O que é a trajetória de mentiras e violência daquele que é inominável, inelegível e impedido de viajar senão uma narrativa "surtada"? O que fazem os senhores das guerras que hoje amedrontam o mundo senão promover agressões "surtadas" para legitimar suas atrocidades? O que mesmo pretende o engomadinho que se acha o dono do mundo, com seus foguetes e carros elétricos, ao se autodenominar o paladino da livre expressão, senão a promoção "surtada" da extrema-direita em todo o mundo? O planeta está cheio de doidos fingidos que criam um inimigo imaginário para dar vazão ao seu ódio. Como dizia minha mãe, não comem cocô nem rasgam dinheiro. Pérfidos, só...