“Se você me perguntar qual o seu sonho? O que você gostaria de ver no mundo da dança hoje em dia? Simples, eu quero que o mundo da dança reflita o mundo real, puro e cheio de diversidades, com pessoas especiais e únicas”, diz Ingrid Silva em um vídeo onde a bailarina está costurando as fitas e os elásticos em suas novas sapatilhas – que são no tom de sua pele.
No conteúdo publicado em dezembro de 2019, Ingrid celebra o fato de não precisar mais pintar as sapatilhas. A brasileira atua desde 2008 no Dance Theatre of Harlem, companhia fundada por Arthur Mitchell em homenagem a Martin Luther King Jr, em 2019. Desde a criação, o já falecido diretor prezava que os artistas usassem meias e sapatilhas que respeitassem os tons de suas peles.
Mitchell, que fora o primeiro bailarino negro do New York City Ballet, acreditava que usar sapatilha e meia calça rosa cortava a silhueta das bailarinas ao meio, por isso, incentivava que as artistas pintassem com base os seus equipamentos de trabalho. O pioneirismo da companhia foi seguido só recentemente por outras companhias dos Estados Unidos, como o Boston Ballet, da Inglaterra, como o English Ballet, e na África do Sul, com o Joburg Ballet.
“A primeira vez que pintei minhas sapatilhas de ponta na minha cor, totalmente encorajada por referências que já tinha, isso realmente me empoderou, senti como se a sapatilha fizesse parte do meu corpo, não um recorte rosa”, afirma Relvya Monteiro, que é técnica de dança pela Porto Iracema das Artes e compartilha desse sentimento. No entanto, são poucas as escolas de balé de Fortaleza que permitem e incentivam o uso de sapatilhas cor da pele.
As instituições ainda seguem a tradição do meião e da sapatilha rosa, herdada da Europa. “O balé foi criado na Europa, ele vem de um berço francês e italiano, já se vê aquela imagem de pessoas brancas e magras dançando”, explica a bailarina, que teve formação tanto na Edisca quanto em uma escola privada de Fortaleza, que ela preferiu não mencionar.
A artista fortalezense busca incentivar as alunas a usarem as sapatilhas da cor da pele, pintado-as, já que o acesso às fabricadas pelas lojas ainda é dificultado pelo preço. “Acaba que o tom da sapatilha rosa é mais procurado e mais fácil de encontrar nas lojas de artigos de dança”, conta a artista, que leciona em seu próprio estúdio, o Ballet Relvya Monteiro.
Para a também bailarina Débora Camargo, a resistência no uso de sapatilhas cor da pele na Capital se deve ao hábito e à não reflexão sobre a problemática de insistir no uso de equipamentos cor de rosa. “Acredito que por já estarmos tão acostumadas com esse ‘normal’, que não percebemos o quão problemático é essa questão. Nem nos atentamos que isso faz diferença, sim, em como nos enxergamos como bailarinas”, justifica. No entanto, no estúdio em que trabalha e faz aulas de dança clássica, só é permitido o uso de sapatilha e meia rosa. O uso para sapatilha cor da pele é reservado para coreografias de gêneros livres, como neoclássico.
“Uma experiência minha que percebi há pouco tempo é que quando precisamos pintar as sapatilhas de ponta para dançar sempre tenho que utilizar de 2 a 3 tons de base diferentes para encontrar a cor da minha pele mesmo e fique uma cor só sem destoar da tonalidade da minha perna”, explica Débora, que, assim como já fizeram Relvya e Ingrid Silva, tem a prática de pintar as sapatilhas para dançar.
“Enquanto para as minhas colegas, percebo que com uma ou 2 bases elas já conseguem pintar e igualar a tonalidade. E, as sapatilhas que estão sendo produzidas nos tons de pele, normalmente tem só 3 tons, salmão, rosa e marrom”, ilustra Débora, que também é professora do Studio de Balé Vitória Almeida.
A artista explica que tem que fazer isso pela mesma razão de Relvya: dificuldade em encontrar o tom da própria pele nas sapatilhas feitas para peles mais escuras e pelo alto preço das disponíveis no mercado. “É muito complicado porque normalmente a gente tem que ficar comprando de mês em mês. Quando a gente dá sorte é porque utilizamos pouco nesse mês, aí ela dura um mês e meio, dois, sabe?”, conta.
“A maioria das sapatilhas disponíveis nas lojas para pele negra é voltada para tons mais escuros. Certa vez vi uma tonalidade no site que queria comprar, que se aproximava mais negra escura, mas tinha que fazer encomenda para a própria fábrica para eles mandarem e aí é outro fator que já complica mais, porque é algo que precisamos no dia a dia”, explica Débora.
Assim como defendia Arthur Mitchell, fundador do Dance Theatre of Harlem, a bailarina cearense Gabriela Ferreira também entende que a sapatilha de pontas “atua como extensão da perna de uma bailarina”. “Agora imagine uma bailarina pretinha ou parda com uma sapatilha mega rosa, é óbvio que essa extensão é quebrada”, reflete.
“Por muito tempo, eu tive que dançar com essa sapatilha rosa que nada tinha a ver comigo, e além da sapatilha rosa, a meia também era (cor de rosa). Atualmente minha sapatilha de ponta é maquiada (um termo que usamos para a pintura que fazemos na sapatilha) para ficar o mais próximo possível do meu tom”, explica a artista.
“Além de ser bem melhor para a questão estética, faz tão bem pra autoestima. É a minha sapatilha, e tem a minha cor”, salienta Gabriela, que compreende também que a resistência em uma maior adoção do uso de acessório cor da pele por academias privadas é pelo tradicionalismo europeu do balé clássico.
“O balé é uma modalidade criada há séculos atrás, para a corte europeia, e é uma dança tão tradicional que muitas das primeiras regras permanecem até hoje. Mas hoje a realidade é outra, e é necessário se adequar a isso, principalmente no Brasil que há tanta diversidade”, destaca. “A cor da sapatilha parece um detalhe pra quem vê de fora, mas pra quem faz parte é uma forma de reafirmar tuas raízes e se sentir mais você”, finaliza Gabriela, que também é graduada em Jornalismo.
“Aqui no Peru, na Companhia Nacional, é permitido que bailarinas de pele escura possam dançar sem meias ou com meias e sapatilhas cor da pele”, conta Leo Germano, bailarino cearense que atuou na Companhia Nacional do Peru até 2013. “Eu já conversei com várias colegas e sempre que elas tocam nesse assunto o ponto mais forte é a autoestima”, salienta.
“O balé é sobre linhas, então, a partir do momento que você coloca uma meia calça e uma sapatilha rosa em uma pessoa de pele escura, que seja negra ou indígena, não dá o mesmo efeito que teria em uma pessoa de pele branca”, explica Leo, já que em Lima há presença tanto de pessoas de ascendência africana quanto indígena, de povos andinos ou da Floresta Amazônica.
O cearense também compartilha da crença de Arthur Mitchell. “Não tem como ficar unificado, parece que a pessoa é partida pelo meio. Minhas colegas se sentem incomodadas sempre que têm que usar meias e sapatilhas rosas, não sentem que as linhas de corpo são valorizadas. Influencia até na maneira em que elas dançam no palco”, ilustra o artista formado pela Escola do Teatro Bolshoi no Brasil.
O pioneirismo do Dance Theatre of Harlem
As sapatilhas de ponta foram introduzidas no balé em 1820 para trazer mais desafios a técnica das bailarinas, criando uma ilusão de leveza no palco, segundo aponta o artigo “Bailarinas negras: cores no balé e transformações no vestuário”, de autoria de Cheyenne Cordeiro Frajuca, mestre em Design pela Universidade Estadual Paulista (Unesp) e Marizilda dos Santos Menezes, docente de Design na Unesp.
Em 1969, Arthur Mitchell decide ir contra a estrutura, fundando uma companhia voltada somente para bailarinos negros, a Dance Theatre of Harlem. A ousadia de Mitchell foi inspirada pela morte de Martin Luther King Jr, figura emblemática na luta pelos Direitos Civis das pessoas negras nos Estados Unidos durante a década de 1960.
O foco de Arthur era valorizar os artistas negros, por isso, uma das exigências da companhia é ainda hoje o uso de sapatihas e meias cor da pele. Devido a falta dos produtos que se adequassem à pele negra no mercado, os bailarinos da companhia tinham que pintar seus equipamentos de trabalho.
A situação só veio mudar em 2019, após muita reclamação e protestos dos artistas, como Ingrid Silva. Quase 200 anos depois. Contudo, o acesso aos calçados e meias ainda é dificultado pelo próprio mercado, que ora oferece sapatilhas a preços exorbitantes, ora não tem diversidade nos tons.
Na loja Evidence por exemplo, um par de sapatilhas de ponta cor de rosa custa R$ 375, 93 enquanto a sapatilha cor da pele disponível nos tons “negro” e “nude” sai por R$ 425, 70. A diferença é de R$ 49, 77. Se ambas as sapatilhas são da mesma linha, a “Pirouette”, o que ocasiona a diferença na precificação?
Por sua vez, na loja Só Dança não há diferença no preço entre sapatilhas rosas e de tom escuro. No entanto, as sapatilhas para pessoas negras ficam numa categoria chamada “Cores Especiais”, como se fosse um tipo de fantasia.
Além de propor o uso de acessórios que respeitem o tom de pele dos artistas, o Dance Theatre of Harlem dava uma perspectiva afrocentrada a balés de repertório, como “Giselle” que virou “Creole Giselle”. A trama que originalmente é ambientada na Alemanha é transportada para Louisiana, em 1840, numa época em que o status social de uma pessoa negra era medida de acordo com a sua distância da escravização.
Além da dança
Os modos como as questões de gênero e raça atravessam abordagens mais eruditas das linguagens artísticas extrapolam o campo da dança. Uma série de entrevistas realizadas pela Ópera de Zurique, na Alemanha, publicadas no próprio site do teatro, dimensionam isso.
Trechos destacados em um artigo do site Concerto, especializado em música clássica, publicados em 2023, denunciam como obras clássicas eram não só racistas, como misóginas e se apropriaram das culturas de países da Ásia, como o caso de “Madamma Butterfly”, ópera de Giacomo Puccini.
Myriam Mazouzi, coordenadora de diversidade da Ópera de Paris, teatro francês de renome conhecido tanto por seus espetáculos de ópera quanto de dança, denuncia a dificuldade de cantores negros terem acessos a papéis de destaque.
Mesmo em produções as quais deveriam ser protagonizadas por pessoas negras, como “Aída”, de Giuseppe Verdi, que fora encomendada pelo governo egípicio em 1869 para celebrar a inauguração do canal de Suez, ainda se vê pessoas brancas ocupando os papéis principais.
Além disso, Mazouzi defende que o mercado da música erudita seja mais simplificado para pessoas não-brancas. “E, nesse caso, eu acho que seria correto se os negros cantassem também as partes dos brancos e vice-versa”, argumenta em entrevista à Ópera de Zurique.
A situação em relação ao enfrentamento do racismo como forma de violência só veio a ter guinadas após o assassinato de George Floyd, morto brutalmente por um policial estadunidense branco em 2020. De acordo com Katia Ledoux, mezzo soprano, a partir disso foi criada a Black Opera Alliance, nos Estados Unidos.
A organização tem como objetivo oferecer acolhimento, networking e a realização de ações para quebrar a estrutura que ainda favorece a branquitude na música erudita.
A invisibilização de personalidades negras da música erudita é outra questão que surge quando a raça é colocada em pauta. Em 2022, foi descoberta a existência de um compositor clássico negro do século 16, conforme relata a reportagem da BBC.
Nascido em Portugal por volta de 1520, Vicente Lusitano era descrito como pardo e os registros apontam que ele era filho de uma mulher negra africana com um português branco. Na época, o país já realizava o tráfico de pessoas escravizadas vindas da África.
Vicente iniciou os estudos de música em Portugal, mas foi à Roma acompanhado de um mecenas. Especialista em teoria musical, tornou-se padre e chegou a ter uma disputa com o italiano Nicola Vicentino acerca de regras da composição e o uso de justaposição.
A história de Lusitano veio a público por meio de Garrett Schumann, em um artigo sobre o músico publicado na revista Van. Rory McCleery, fundador do conjunto vocal britânico The Marian Consort, leu o texto e se apaixonou por Vicentino, incluindo-o no repertório de seu grupo, conforme contou à BBC.
Acompanhe o movimento
A fim de promover mais acesso e diversidade dentro do mundo da dança, a Cassa Pancho fundou a companhia Black Ballet em Londres, em 2001. Na época, a quantidade de bailarinos negros e de outros etnias ainda era ínfima.
Então, Pancho, apesar de branca, decidiu criar uma companhia que aceitasse principalmente os perfis de artistas que eram rejeitados pelo Royal Ballet. A instituição também conta com uma escola para jovens talentos.
Em um movimento mais recente para a valorização de bailarinos negros do Brasil e do Mundo, Ingrid Silva, do Dance Theatre of Harlem; Ruan Galdino, do Joburg Ballet; Fábio Mariano, do Collage Dance Collective e outros nomes criaram o Blacks In Ballet.
A iniciativa é uma plataforma on-line presente na redes sociais em que debate o espaço de bailarinos negros na dança e divulga os artistas, conferindo-os visibilidade que não é dada no mainstream. O projeto surgiu durante a pandemia, após o assassinato de George Floyd.
Estereótipos e imagens de controle
No solo “Mulata”, Wilemara Barros, uma das primeiras bailarinas negras do Ceará, ressignifica através de uma coreografia feita por Faüller, da Cia Dita, um termo racista e que fora usado no passado por um professor para se referir a ela.
A violência racial que Barros enfrentou desde o início dos estudos em balé clássico, na Escola de Ballet Clássico e Dança Moderna do SESI na Barra do Ceará, ainda é parte da rotina de outras artistas negras cearenses.
Gabriela Ferreira, bailarina e professora de dança, compartilha ter sofrido racismo ainda criança. Ela começou a ter aulas de balé aos 6 anos de idade, em escola no Meireles. “Sempre houve o preconceito por eu ser a menina mais ‘moreninha’ da sala, logo, em teoria, eu provavelmente deveria ser a mais pobre, mais mal educada, menos estudada, coisas do tipo”, relembra.
“Nunca senti isso vindo de nenhum professor, mas com algumas outras coleguinhas de sala e principalmente os pais dessas colegas, certas coisas não precisam ser verbalizadas e com o tempo você aprende (infelizmente) a perceber esse tipo de comportamento”, conta.
Leo Germano, bailarino cearense formado pela Escola do Teatro Bolshoi no Brasil, também compartilha ter vivido experiências de racismo velado nos dois anos em que estudou na instituição. “Eles vinham com essa história de que o que o príncipe do Lago dos Cisnes é exuberante, alto que vem da Alemanha”, explica Leonardo, que afirma que atualmente o cenário em relação a questões raciais mudou positivamente pelo que tem acompanhado por meio de amigos.
“Naquele tempo, não tinha tantas meninos negros fazendo papel de príncipe. Nós éramos escalados para o Gopak (“Taras Bulba”), algum plebeu como o Hilarion de Giselle”, rememora Germano. Os personagens a quem ele se refere são caracterizados por representarem subserviência dentro dos balés de repertório.
A problemática já fora apontada por Christopher McDaniel em entrevista ao The Guardian, 2012. Segundo ele, os papéis relegados a bailarinos negros foram por muito tempo personagens agressivos, como o Mercador de “O Corsário”. Para as bailarinas não-brancas também são reservados papéis estereotipados como dançarina indiana em “Esmeralda” ou o Café Arábe, de “Quebra Nozes”.
A bailarina Relvya Monteiro relata ter visto um docente dizer que o aluno negro não poderia interpretar um princípe em um espetáculo de repertório. “Nunca sofri violência racial dentro de sala de aula, mas já presenciei falas preconceituosas com colegas, por exemplo ‘um príncipe preto não pode, teria que primeiro tomar banho de Cal’”, relembra.
Ela detalha: “Já ouvi também recomendações para os bailarinos como, bailarina não pode ter a coxa grossa, quadril largo, entre outros. Nós que somos da dança sabemos que existem profissionais da área que insistem em ter esse posicionamento de corpo “certo” para dançar e vários esteriótipos”.
A artista se refere a características encontradas nos corpos que não são bem vistas no mundo do balé por não se adequarem ao padrão “branco e magro”. “E até hoje tem pessoas que não apreciam e não acham que o corpo negro é capaz de ser clássico, pelo formato do corpo e linhas que temos”, acrescente Relvya.
Os traumas de ser jovem, negra e talentosa
O ano era 2014 quando a bailarina Precious Adams ousou dançar a variação da princesa Aurora, originária do balé “A Bela Adormecida”, sem meia calça rosa e usando sapatilhas de ponta no tom de sua própria pele, no Prix de Lausanne, na Suíça. Na época, ela venceu o segundo lugar da competição.
O gesto da estadunidense mudou minha vida e de alguns colegas que estudavam balé clássico comigo numa escola de dança privada, localizada na Parquelândia, mas cujo nome prefiro não citar por questões pessoais. Até então era raro ver uma bailarina negra, ainda mais de pele escura como a de Precious, em competições internacionais.
Na verdade, até mesmo nos festivais locais de dança éramos minoria. Perdi as contas de quantas vezes fui a única negra competindo em categorias de clássico, como variação e pas de deux. Vez ou outra havia mais uma competidora negra.
Também era raro que fossemos premiadas nessas competições. Era preciso apresentar um nível quase russo para se conseguir uma nota 8 ou ainda ganhar alguma bolsa. Era preciso ser mais do que as outras meninas brancas que “naturalmente” tinham mais técnica.
Naquele ano, Adams me mostrou que tínhamos lugar no balé clássico, que eu poderia ser uma princesa em um tutu cor de rosa flutuando no palco. Era algo difícil de acreditar.
O ano em que Precious mostrava ao mundo que bailarinas negras existem, sendo ela a primeira afro-estadunidense a conquistar uma vaga na escola do Teatro Bolshoi na Rússia, foi o mesmo ano que ganhei meu papel de solista em um repertório.
Havia sido escalada para interpretar o Cupido em “Dom Quixote” e eu me considerava incapaz de executar os passos da coreografia. Porque além de complicados para o meu nível à época, só via bailarinas brancas dançando aquele personagem. E eu jamais seria tão delicada quanto elas.
A princípio eu dividia o papel com outra colega, uma aluna pagante e branca. Às vésperas do espetáculo, ela desistiu de dançar o Cupido. Depois descobri que ela me difamava pelas costas, dizendo que eu era uma pessoa desagradável e arrogante.
Além disso, eu e outras colegas negras com tom mais escuro que o meu, fomos embranquecidas pela maquiagem do espetáculo. Percebemos no camarim que nossos rostos estavam cinzas e não havia muito a ser feito. No ano anterior fizeram o mesmo comigo em outro espetáculo.
Embora, em quase todos os anos, a diretora da escola tenha me escalado para papéis delicados, o discurso dela e de alguns colegas era de que eu era “muito masculina” em certos momentos.
E foi assim que me senti, acreditando que fazia sentido interpretar uma personagem sem nome em “Chamas de Paris”, mas que era responsável por ser forte e pelos momentos cômicos da história. Foi assim também que achei que o papel de uma personagem étnica me coube bem em “O Corsário”.
Não se fala sobre racismo no balé clássico nas academias de Fortaleza. É assunto proibido. Mas as alunas negras são preteridas, tratadas como inferiores. Eu sentia que precisava atingir um nível inalcançável para ser vista e mesmo assim, ainda era motivo de surpresa quando apresentava boa técnica.
Lembro como se fosse ontem. Decidi dançar o pas de deux do terceiro ato do balé “Coppélia” em 2017, meses após torcer o pé no ano anterior. Então, enquanto tentava me recuperar como podia sem grana para a fisioterapia, me esforçava em aulas e ensaios extras para entregar um bom resultado.
Eu e meu partner mostramos o pas de deux para a diretora ver se podia ir competir. Após terminarmos ela disse: “Estou surpresa em como você melhorou, Eduarda”. O comentário me incomodou, por que a surpresa se a minha principal função como aluna bolsista era dar o meu máximo?
No mesmo ano, eu, já solista da escola há 3 anos, não fui escalada para um papel de solista em “O Corsário”. Todas as minhas colegas da turma avançada tinham seus respectivos solos. Fiquei sem entender e me perguntava o que havia feito de errado.
Ser uma bailarina negra era algo solitário nessa época. Não sabia dar nomes a esses incômodos, só sabia que existiam. E eu tinha que criar minhas próprias oportunidades para ascender dentro da cena, o que se torna complicado quando se é de periferia e não se tem recursos financeiros.
Anos antes, eu havia sido a única bolsista a não ser contemplada com uma vaga em um curso de verão realizado na escola. Na época pensei que era por não ser boa o suficiente. Depois descobri que não era a única razão.
Infelizmente, os olhares me tornaram insegura. Por mais que alguns professores tentassem explorar meu potencial, como quando um deles me pediu para aprender a variação da Aurora do segundo ato de “A Bela Adormecida”, eu fingia que não era comigo, que minha técnica era limitada demais para isso.
Em 2018, criei coragem para dançar com sapatilha cor da pele. Até hoje lembro da sensação. Me sentia livre, bonita, delicada e eu mesma. Parecia que eu tinha um lugar no balé. Foi quando competi com o pas de deux de “Diana e Acteon”. Apesar das fotos terem ficado lindas, não ganhamos colocação.
Depois, usei novamente para dançar o pas de deux de “Harlequinade”. Era uma coreografia que sempre quis dançar por considerá-la fofa. E fui feliz quando pude realizar. Senti que flutuava no palco. Também não ganhamos a competição naquele ano.
Foi a partir desse movimento que senti as possibilidades do balé como reais para mim. A dança deixou de ser um fardo e passou a ser prazerosa. Cada dia parecia que seria o último dançando, por isso deveria ser aproveitado. Minha técnica foi melhorando também, era algo apontado por colegas e pela professora da época.
No entanto, ainda era algo que surpreendia a diretora da escola de dança. Por isso, ela ficou chocada quando um colega sugeriu que interpretasse Clara no “Quebra Nozes” de 2019. Eu havia sido escalada para um solo com a Dança do Chá, uma variação que estereotipa pessoas chinesas.
O pior, de fato, foi ter que dançar com meia e calça rosa. Ainda houve comentários sobre eu ter que me embranquecer a face porque se tratava de uma personagem chinesa. Não o fiz, tudo tem limite.
Mudei de escola depois desse episódio, indo para o Ballet Hugo Bianchi. Lá, fui tratada com o básico que jamais haviam me oferecido, me sentia vista e bem vinda. Tive que abdicar da bolsa no ano seguinte por causa de um estágio.
Só voltei a sofrer racismo em uma sala de balé dois anos depois, em 2023. Apliquei bolsa para outra escola privada da Capital, sendo contemplada com 100% em duas modalidades.
Porém, no primeiro dia de aula de balé, a professora branca fez com que eu me sentisse tão não pertencente ali com comentários e olhares, que entrei em pânico. Tive uma crise de ansiedade e decidi não voltar mais. São 2 anos sem dançar, já que antes eu tinha feito uma pausa de seis meses para terminar meu trabalho de conclusão de curso da faculdade.