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O olhar de Abdiel: Estação da Parangaba (Foto: ABDIEL ANSELMO)
Foto: ABDIEL ANSELMO O olhar de Abdiel: Estação da Parangaba

Em 1936, nos trilhos da Estação da Parangaba, correu o trem em que minha mãe, então com quatro anos, realizou um sonho. A viagem da menina, acompanhada de um responsável, era a concretização do desejo infantil de ser parte da estrutura de ferro para de dentro apreciar a paisagem retrocedendo à janela.

"A invenção dos trilhos reconfigurou a história do mundo. Desde o início do século XIX, locomotivas e trens possibilitaram que pessoas, objetos e ideias se tocassem, se chocassem e se (des)encontrassem em tempos cada vez mais acelerados.", escreveu Kênia Sousa Rios na apresentação do livro "O Espaço a Serviço do Tempo", de Ana Isabel Ribeiro Parente Cortez Reis, publicado pela Editora Imprensa Universitária da UFC, em 2023.

A história de minha mãe no trem é a do espaço a serviço do tempo. Um lugar, um ambiente que é uma época, um momento, promovendo a união da infância aos seus 91 atuais, quando conversamos sobre uma fotografia intitulada "Estação da Parangaba".

A essa altura da vida, não posso exigir da sua memória os detalhes do que ela viu, se na paisagem brotavam garças brancas, se na distância as aves eram flores no balanço do vento ou se as flores
eram, na verdade, aves em leve agitação nas copas
das árvores.

O que importa é que, na vertigem de uma velocidade inaugural aos olhos, a mão pequena soltou a mão protetora - ela me conta enquanto olha a imagem. E após segundos de contemplação no silêncio em que se perde, retoma o raciocínio, diz que a segurança da palma adulta logo foi buscada, mas os dedos rejeitaram o contato.

Ela, em novas tentativas, sentiu o escorregadio gesto de desvencilhar que a fez erguer a cabeça para descobrir a razão da reiterada escusa. Do alto olhava para baixo
o rosto constrangido
de um estranho. Um instante de distração e
ela estava sozinha.

Solidão breve, nunca esquecida, embora o desfecho do episódio seja um mistério. Permanece imerso na bruma que afoga as lembranças mais longínquas. Talvez, naquele dia, além dos trilhos, das árvores e das flores esgarçadas que ela pode ter visto do trem, houvesse uma proteção divina, a presença do Espírito Santo. Talvez para salvá-la uma pomba celestial tenha entrado em cena - como na foto - com esvoaçantes asas luminosas.

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