À altura da página oitenta de seu novo romance, a construtora de imagens Tércia Montenegro provoca seu habitual espanto a suas leitoras e leitores quando conhecemos o hobby maravilhoso (em termos que exalam notas de Gabriel Garcia Marquez no realismo contemporâneo) de sua Tia Jacinta: a artesania de travesseiros feitos com cabelos. Eis uma síntese expansionista do livro, incluindo o emaranhado de fios da capa da publicação. Atadas, Thalia e Tércia, personagem e autora, conectam-se às veias abertas da ancestralidade e reprises cênicas da vida.
O estofamemto capilar une corporeidades em torno de entes familiares, seja de natureza sanguínea ou afetiva, e, como o componente genético, ultrapassa a vida (da pessoa-livro e da pessoa-pessoa). O colchão de corpos, desejo também fúnebre de Jacinta, unifica tempos da produção da autora, transgredindo crenças interioranas (personificada, durante a sequência, na figura do padre) e suscitando a busca por espaços e deslocamentos mundivagantes na pessoa liberta (graças sobremaneira ao machismo) do pai Iago.
Se a queratina faz os cabelos resistirem ao fim do corpo, a memória enrijece comportamentos como o das mães controladoras na obra da cearense. O feminino, porém, retoma seu papel de destaque contínuo em seus contos e narrativas longas e, claro, não perde sua existência transgressora. Igualmente rebelde, a palavra aqui atua e vira cena, abrindo coxias e expondo rubricas do fazer artístico e humano. Sobretudo, questionam cotidianas e geracionais reiterações, prismando nossos cacos de família.
"Um prego no espelho", o lindamente intitulado novo romance de Tércia Montenegro, terceiro publicado pela Companhia das Letras, chega a Fortaleza no próximo dia 15, após lançamento nos estados do Rio de Janeiro e de São Paulo. Na miniturnê, a fictícia Companhia Palavra Cênica do romance, cuja trama abraça os anos 80 e 90, parece materializar-se em 2024 por meio de um lançamento também performático. Sobre esse e outros reflexos, as várias Tércias conversam com o Vida & Arte a partir de seu mais recente jogo espelhar:
O POVO - Nossas múltiplas repetições e possíveis variações comportamentais estão no cerne do novo livro. Considerada uma prática do gesto e do próprio fazer teatrais, quem veio primeiro: o enredo ou a teatralidade prismática da protagonista?
Tércia Montenegro - Acho que o que veio primeiro foi a composição da protagonista. O meu interesse por multiplicidades - tanto no jogo das aparências quanto no das personalidades - está em outros livros também. De certa maneira, sempre persegui a questão da própria identidade, do autorreconhecimento e do lugar de si diante do outro. Numa narrativa familiar, então, isso ganhou ênfase: porque (para pensar no título) há o espelho, algo que nos mostra a similitude com parentes e ancestrais, mas há também o elemento que rompe isso, fragmenta e estilhaça uma imagem estável. A opção pelo teatro ressaltou a capacidade de deriva; Thalia vive muitas vidas sendo atriz, ela extravasa, sai de uma única experiência biográfica.
OP - Crescentemente, os véus, os fantasmas e os traumas da sua história pessoal (como era de se esperar pela sua crescente ousadia enquanto escritora e artista) vêm sendo expostos e retrabalhados. De que modo "Um prego no espelho" e a Thalia/Tércia conversam com esse procedimento subjetivo?
Tércia - "Um Prego no Espelho", apesar de ficção, parte de um argumento pessoal. O meu nome é Tércia em homenagem a um segundo irmão, morto antes que eu nascesse; ser então essa terceira, com um segundo irmão fantasma, sempre me fez pensar sobre o acaso e as circunstâncias que definem um destino. Desde criança, eu tinha o sentimento de que precisava viver várias vidas, para "compensar" esse irmão que não teve a oportunidade; uma vida só não era suficiente. A literatura me forneceu esse caminho para construir inúmeras histórias para além da minha - e assim acontece com o teatro, para Thalia.
OP - O número de personagens das suas histórias vêm aumentando. Nesta, as tramas têm variações de fios diversas, fruto aqui, é claro, da busca pela natureza familiar. No entanto, para além do aspecto temático, a que você também atribui essa pluralidade narrativa?
Tércia - Este é um livro que realmente se emaranha em muitas personagens. Acho que, apesar de haver uma protagonista, Thalia, eu não quis que ela fosse muito mais importante que os outros - porque a verdade é que numa família não há personagens secundários. Assim, há capítulos em que a ação com Thalia é suspensa, para que o(a) leitor(a) acompanhe os mistérios e comportamentos em torno de outras figuras, através de flashbacks, por exemplo. Ao longo da criação de "Um Prego no Espelho", eu fui me surpreendendo com a estrutura crescente, que de fato pedia para se ramificar, e personagens que antes eram absolutamente periféricas, como as tias de Thalia, de repente exigiam um momento próprio…
OP - Em outro campo de expansão, sua carreira vem dialogando com inúmeras linguagens a julgar pelo lançamento cênico do romance em Fortaleza. Podemos esperar mais aventuras artísticas em breve? Em que linguagens?
Tércia - Sim, eu sempre me considerei multiartista, embora dê mais atenção à literatura. Não estou interessada em me classificar, essa é a verdade. O que quero é experimentar - com fotografia, performance, desenho, o que mais eu tiver vontade. "Um Prego no Espelho" terá em Fortaleza um lançamento-cênico, em que divido palco com dois amigos que são artistas talentosíssimos: Loreta Dialla e Ayrton Bob Pessoa - e tudo vai acontecer num espaço teatral, a Casa Absurda. Adoro essa ideia de dizer: "Um Prego no Espelho" lançado na Casa Absurda. Os lançamentos convencionais, com palestras ou bate-papos, perdem o sentido para mim, sabe? O livro já é feito de palavras; então, para que eu vou adicionar mais palavras, faladas, sobre ele? Quero adicionar cenas, gestos, presenças de outra natureza, arte com outra linguagem. A literatura merece ser expandida.
Um Prego no Espelho
de Tércia Montenegro
Companhia das Letras
152 páginas
Quanto: R$ 89,90 (livro físico à venda no site da editora)
Lançamento-cênico
Quando: quarta-feira, 15, às 19h30min
Onde: Casa Absurda (rua Isac Meyer, 108 - Aldeota)
Após a apresentação haverá autógrafos com a autora; noite com Tércia Montenegro, Loreta Dialla e Ayrton Bob Pessoa