Depois de vários meses de reclusão do público devido à pandemia, o setor de eventos e de entretenimento teve 2022 como um oásis. Foi o ano da consolidação, afinal, da retomada e da criação de festivais de música Brasil afora em meio ao avanço da cobertura de vacinação contra a Covid-19.
De diferentes tamanhos e localidades, os festivais "abraçaram" multidões afoitas pela volta dos encontros e da música ao vivo, bem como abrigaram artistas de diversos gêneros musicais. Em 2024, porém, o entusiasmo parece não ser o mesmo do observado há dois anos. Alto custo de produção, dificuldades com vendas de ingressos e oferta abundante de eventos provocam a necessidade de reflexões sobre o funcionamento do mercado.
Segundo o Mapa dos Festivais, plataforma que reúne informações sobre festivais de música no Brasil, até a primeira quinzena de maio, 18 festivais alteraram a data de realização, sendo oito cancelados (como o Doce Maravilha Curitiba).
Há ainda aqueles que anunciaram pausa, como o MITA, que estreou em 2022 e no ano passado trouxe ao Brasil nomes como Lana Del Rey e Florence and The Machine. Outro detalhe é, claro, a alta incidência de eventos. A plataforma identificou pelo menos 201 festivais no Brasil em 2024, sendo 31 com a primeira edição neste ano.
Entre cancelamentos, adiamentos e pausas, o momento é de interrogação sobre os próximos passos. Atualmente, cachês de artistas e logística aérea representam "um custo fora do normal e do aceitável" para a realização de festivais no Brasil. A análise é de Jomardo Jomas, idealizador e diretor do Festival Música Alimento da Alma (Mada), em Natal (RN).
O evento ocorre na capital potiguar desde 1998 e reuniu 32 mil pessoas na última edição. Segundo Jomas, o valor necessário de investimento para realizar um festival depende do tamanho e do formato — mas inevitavelmente é alto. Além disso, se não existirem patrocínios suficientes e vendas significativas de ingressos, "a conta não fecha". Em 2023, a edição de 25 anos do Mada custou R$ 3,5 milhões.
Nesse montante, os principais custos foram com cachês e logística, e a cada ano os valores aumentam. Entretanto, de acordo com Jomardo, não dá para "aumentar o ticket médio" do ingresso do Mada devido ao poder de compra do público, que não acompanha esse crescimento. "Para compensar e entregar ao público uma programação relevante, temos que encontrar parceiros, e é aí onde entram as marcas, leis de incentivo e editais", compreende.
O empresário também indica que a tendência é o valor aumentar neste ano. Se os gastos já são elevados para festivais, quando são realizados no Nordeste a situação ganha ainda mais impacto. "Infelizmente muitas atrações ainda não entenderam que fazer festival no Nordeste exige muito esforço porque o Ticket médio é muito menor que em outras regiões e o poder aquisitivo idem, se não entenderem essa realidade cada dia ficará mais difícil conseguir entregar uma programação com grandes atrações.
A esses desafios se junta, no caso do Mada, "se fazer enxergar por marcas que muitas vezes preferem investir em eventos de menor público em outras regiões do que no Nordeste". Ele acrescenta ainda o perigo de marcas "investirem em eventos que não foram e não são do Nordeste e vêm para a região sem preocupação com a realidade dela".
Diferentemente do momento de reabertura de eventos pós-pandemia, quando houve adesão em massa do público a shows e festivais, Jomardo percebe que essa procura tem diminuído devido também à grande oferta de eventos. No caso, a criação de vários festivais - e alguns seriam "superficiais".
"Acredito muito que esses festivais criados sem história alguma por meio de agências tenham um tempo de vida curto, mas até essa onda passar estão conseguindo bagunçar bastante o mercado e não entregam nada sólido, além de inflacionarem os cachês", enfatiza.
Ele acrescenta: "Por não terem uma história por trás de esforço, estudo e tempo na cena musical, a tendência é que o público, mais adiante, saiba diferenciar o que realmente tem relevância do que é criado para atender a uma demanda momentânea, específica e sem a mínima preocupação com a cena musical".
Quem apresenta visão semelhante à de Jomardo é André Costa Nero, produtor cultural e idealizador do Arvo Festival. O festival é realizado em Florianópolis (SC) e em 2023 chegou à oitava edição. Para André, no "pós-pandemia" surgiram muitos eventos "sem personalidade nenhuma", com os "mesmos line-ups", o que levou à diminuição do ritmo de compra de ingressos pelo desinteresse do público - que ainda precisa lidar com um poder de compra insuficiente.
No caso dos festivais, esses precisam lidar com o aumento dos custos. Gastos com estrutura são importantes, "ainda mais quando se trata de eventos que precisam construir do zero" em vez de "adaptar estruturas". Ele compreende que o fato de muitos trabalhadores que montavam estruturas terem saído do setor durante a pandemia fez os remanescentes cobrarem mais.
Em 2019, promover o Arvo para três mil pessoas equivalia a R$ 300 mil, incluindo todas as despesas possíveis. Atualmente, entregar o festival para dez mil pessoas chega a R$ 2,4 milhões — evidentemente com mais atrações, mas a diferença demonstra o peso dos acréscimos de orçamento.
É possível destacar como a parte artística pesa nessa balança. Há também os gastos com passagens, alimentação, hospedagem, que também subiram. O produtor afirma que as equipes aumentaram, bem como os cachês — se em 2019 eram pagos R$ 50 mil, hoje o mesmo artista chega a cobrar até duas vezes e meia mais, conforme Nero.
"Tem artista que você não tem nem vontade de negociar, porque sabe que é justo pelo que o mercado está cobrando, mas tem outros que você fala: 'Não é possível que essa pessoa está cobrando isso'. É muito complicado. Os custos aumentaram para todo o mundo, mas tem uma hora que você precisa abrir a planilha, porque a conta não fecha. Não adianta a conta fechar somente para as atrações e não fechar também para os produtores, porque é isso que está acontecendo. Turnês foram canceladas e até shows de artistas lotando a casa em todas as apresentações dando prejuízo", indica.
Nesse sentido, aponta como as "grandes turnês" recentes também estão prejudicando o funcionamento de festivais independentes, que não conseguem contratar artistas incluídos nesse processo devido à agenda "bloqueada" pelas turnês.
Com o mercado inflado pelos altos valores e pelo volume de festivais, André analisa que o setor "deu uma saturada". Assim, quem "vai manter a cena acesa" é quem já existia e já "fazia o movimento acontecer".
Além disso, aponta outra possibilidade de movimento do mercado: "Acho que a tendência é cada vez mais os festivais recorrerem a leis de incentivo, sendo possível levar preços populares aos ingressos ou até mesmo fazerem eventos gratuitos".
Ana Garcia, CEO do No Ar Coquetel Molotov, também percebeu o crescimento de festivais pós-pandemia. "Tem muita oferta e o público tem que escolher. Recife é a capital dos festivais, temos diversos, e pós-pandemia isso triplicou! Decidimos, inclusive, sair do nosso mês entre outubro e novembro para deixar o público respirar e entender o caminho que iremos tomar. A nossa vontade é tornar o Coquetel mais acessível e sustentável e estamos estudando isso", indica.
Um dos principais festivais independentes do Brasil, o Coquetel Molotov tem foco nos artistas novos e de médio porte e chega à 21ª edição em Recife (PE). Para "levantá-lo", é necessário investir cerca de R$ 2 milhões. Os desafios continuam sendo financeiros: "Está um sentimento muito doido entre a felicidade de termos novamente o Ministério da Cultura, a Lei Rouanet funcionando a todo vapor, diversos editais rolando, mas mercado saturado e tudo muito caro".
Se os "blind tickets" (ingressos de pré-venda sem o anúncio dos artistas) se esgotavam em menos de uma hora entre 2021 e 2022, em 2023 levou mais tempo, assim como em 2024.
Isso demonstraria, então, o cuidado maior do público na escolha dos eventos com os quais gastará. Apesar de não achar que o mercado de festivais "saturou", compreende que irão se destacar aqueles que focam no fomento da cena.
"Não acho que saturou. O Coquetel Molotov e tantos outros como o Mada, DoSol (RN) e Se Rasgum (PA) têm mais de 20 anos de vida! Vivemos essa montanha-russa, assistimos de perto às ondas irem e virem, já vivenciamos tantas crises… Vamos passar por mais essa. Ficam, no fim, os que conseguirem sobreviver e que têm foco mínimo no fomento de uma cena e não depende apenas do entretenimento", declara.