Henrique Araújo é jornalista e doutorando em Sociologia pela Universidade Federal do Ceará (UFC), com mestrado em Sociologia (UFC) e em Literatura Comparada (UFC). Cronista do O POVO, escreve às quartas-feiras no jornal. Foi editor-chefe de Cultura, editor-adjunto de Cidades, editor-adjunto de Política e repórter especial. Mantém uma coluna sobre bastidores da política publicada às segundas, quintas e sextas-feiras.
Já não se fala na distopia como um porvir fabulado ao qual nos lançamos em imaginação, receosos de que um exterminador liquide o futuro e embaralhe de vez as linhas do tempo, eliminando as chances de subsistência dos humanos, obsoletos como tecnologia e inteligência.
A distopia e o real se equivalem agora, de modo que a crise da narrativa do fim do mundo se explica pela crise do fim do mundo da narrativa.
Não sei se mais confundo do que aclaro, mas talvez a virada climática e seus desdobramentos diluvianos em curso no Rio Grande do Sul ajudem a fazer entender o que o cinema de Hollywood capturou como ideia e manufaturou emergencialmente como produto: a distopia, entendida como esse horizonte em direção ao qual o planeta e seus habitantes se dirigem inexoravelmente, dessubstantivou-se como conceito, perdendo em vigor e lucratividade por sua incapacidade de oferecer uma deriva do real.
Dito de outra maneira: a distopia se esgotou como possibilidade tradutória do colapso, não porque o tenhamos adiado, mas porque tudo em redor começa a desmoronar de fato, e não como mera projeção ficcionalizada.
Por muito tempo, fez sentido que o tropo recorrente do desastre que se abate sobre o mundo - o tornado, o terremoto, o vulcão, a invasão alienígena, o vírus, o zumbi, etc. - operasse como síntese de uma noção de hecatombe, reduzida a um mínimo ato de extinção apocalíptica com ares bíblicos que adviria quando menos se esperasse, instaurando-se como golpe - um corte singular e imprevisto, descolado de qualquer continuidade histórica e sem vínculos com a economia, a política e por aí vai.
Basta correr os olhos pela tradição literária de ficção científica e toda sorte de obras cinematográficas nas quais é mais fácil imaginar o desfecho da espécie do que o fim do capitalismo como paisagem cultural de uma população global que julgou conseguir administrar a catástrofe, adiando esse acerto de contas enquanto os super-ricos constroem uma plataforma de fuga e encastelamento.
Ora, é esse gesto abrupto que precipita a vida no ralo que caducou como chave interpretativa de nossas múltiplas crises e cujo vórtice escapa ao gerenciamento empresarial.
Afinal, não se pode conter uma cheia do Guaíba com selos atestando responsabilidade ambiental, nesse bom-mocismo ecológico; tampouco se consegue explicá-la sem analisar a cadeia decisória (falha) que precedeu o desmonte de toda política governamental de prevenção.
O que se vê neste momento, em campo e ao vivo, na escalada de notícias pronunciadas na voz pastosa de repórteres entretidos com o abismo, é a distopia tornada cotidiano, procedural, fazendo submergir o futuro em um presentismo extremo, desenrolando-se como as etapas de um plano cuja concepção data de muitos séculos atrás.
E o que resta, então? Torcer para que nessa impossibilidade de conjugar o distópico se abra uma janela de oportunidades para inventar um novo utópico.
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