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10 anos de Spotify Brasil: transformações, revoluções e dilemas para debater
Vida & Arte

10 anos de Spotify Brasil: transformações, revoluções e dilemas para debater

Spotify completa dez anos no Brasil como principal streaming de áudio e responsável por alterações importantes no consumo e na produção de música no País
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FORTALEZA, CEARÁ, BRASIL,28.05.2024:  Ítalo Bruno,produtor e engenheiro de áudio 10 anos do Spotify no Brasil. (Foto: FÁBIO LIMA)
Foto: FÁBIO LIMA FORTALEZA, CEARÁ, BRASIL,28.05.2024: Ítalo Bruno,produtor e engenheiro de áudio 10 anos do Spotify no Brasil.

Quando o então jovem empresário sueco Daniel Ek lançou o Spotify em 2008, ouvir músicas tinha outros contextos. Ainda imperavam como principais formas de acesso a canções os CDs, MP3, pendrives e a pirataria digital.

A plataforma surgiu para oferecer um serviço mais prático que a pirataria e para minimizar os prejuízos da indústria musical, que na época estava sofrendo com os downloads ilegais. Apesar de não ser pioneiro no streaming de áudio, o Spotify se tornou o principal deles ao possibilitar acesso mais fácil e mais amplo à música.

Em maio de 2014, a plataforma chegou ao Brasil. De lá para cá, contabilizou no País mais de 770 bilhões de streams (reproduções) em um acervo de mais de 100 milhões de músicas e cinco milhões de podcasts. Gratuito ou com plano de assinatura, o Spotify se estabeleceu no País e em dez anos provocou alterações importantes no consumo e na produção musical.

"O Spotify trouxe mudanças significativas e variadas para o mercado musical no Brasil. Enquanto democratizou o acesso e abriu novas oportunidades para artistas independentes, também introduziu desafios, especialmente relacionados à remuneração, visibilidade e concorrência".

A avaliação é de Ítalo Bruno, cantor, produtor musical, engenheiro de áudio e fundador do Árvore Music Studio, em Fortaleza. O estúdio foi criado em 2017 para ajudar artistas a gravarem, produzirem e divulgarem suas músicas. Hoje, ele auxilia profissionais nas áreas de composição, produção musical, marketing e lançamentos digitais de músicas em plataformas como Deezer, YouTube Music, Apple Music e, claro, o Spotify.

Produtor musical desde 2015, mas com carreira desde 2010, Ítalo Bruno indica que a produção musical seguia "um modelo mais tradicional" antes da popularização do Spotify no Brasil. Os artistas precisavam geralmente de contratos com gravadoras para terem acesso a estúdios de gravação profissionais — e os custos eram altos.

Além disso, a distribuição da música ocorria por meio de CDs, vinis e, em menor escala, fitas cassete, com gastos com fabricação, armazenamento e logística. A promoção das músicas também era mais dependente de emissoras de rádio e televisão, assim como as vendas dependiam das lojas físicas.

As campanhas de marketing, por exemplo, eram mais tradicionais, com anúncios em revistas, jornais, outdoors e participações em programas de TV e rádio. Por fim, "o processo entre a gravação e o lançamento de uma música ou álbum podia levar meses, devido a todas as etapas de produção e distribuição física".

Hoje, algumas situações são diferentes. Os artistas independentes têm acesso às plataformas digitais sem intermediação de gravadoras e distribuidoras físicas, a música passou a ser distribuída digitalmente pela internet e a promoção das faixas se expandiu para as redes sociais (reduzindo a dependência das mídias tradicionais).

Além disso, os artistas passaram a ter acesso a dados detalhados sobre seus ouvintes, como "localização geográfica, idade e hábitos de consumo", o que permite uma "estratégia de marketing mais direcionada e eficaz", segundo o produtor. Ítalo também destaca como as playlists do Spotify "se tornaram ferramenta poderosa para a descoberta de música".

Outras alterações envolvem a relação mais direta entre fãs e artistas, a monetização (embora a divisão de receitas "ainda seja um tema de debate na indústria" pelo valor abaixo do que desejam os artistas) e a produção mais ágil, tanto com o incentivo à produção caseira quanto com a possibilidade lançar singles e EPs de forma rápida.

Nesse sentido, o profissional também percebe uma "mudança na estratégia de lançamento", com foco em singles. "Muitos artistas optam por lançar singles com mais frequência em vez de álbuns completos, para manter o engajamento constante dos ouvintes", declara.

Entre os principais desafios vividos por artistas independentes estão a "competição intensa" (com mais de 100 mil lançamentos por dia) e a baixa remuneração da plataforma, cuja receita ainda é dividida entre a plataforma, a distribuidora e o artista.

Mas, afinal, o que é necessário para receber remuneração do Spotify? Segundo Bruno, além do distribuidor digital a música precisa ser ouvida pelos usuários - e cada vez que uma faixa é reproduzida por pelo menos 30 segundos conta como um stream. Os distribuidores recebem os pagamentos e repassam para os artistas de acordo com os termos acordados.

O produtor afirma que a remuneração no Spotify é calculada com base em diversos fatores, incluindo receita gerada (receita total do serviço proveniente de assinaturas premium e anúncios), proporção de streams e taxas e divisões. "O valor pago por stream pode variar, mas geralmente fica em torno de $ 0,003 a $ 0,005 por stream", revela.

A remuneração é justa? "Para muitos artistas independentes, (o streaming) é uma fonte adicional de receita e visibilidade, mas não é suficiente como única fonte de renda. Para compensar, muitos diversificam suas fontes via shows ao vivo, vendas de merchandising, financiamento coletivo, e outros meios. Melhorias na remuneração e condições dos artistas no Spotify e outras plataformas de streaming continuam a ser um tema de debate e advocacia na indústria musical", pontua.

A competitividade do mercado de streaming é um ponto também ressaltado por Gabriel Thomaz, guitarrista, compositor e vocalista da banda de rock Autoramas, formada no Rio de Janeiro (RJ). O músico mantém desde 2021 o selo fonográfico Maxilar e com isso produz trabalhos de outros artistas, com mais de 40 em sua trajetória. Ele relata a necessidade de fazer os autores se destacarem na plataforma para serem ouvidos.

"Colocar músicas e álbuns nos streamings é fácil, só que existem tantas canções e tantos artistas que é difícil de se destacar nesse oceano de opções. Um dos trabalhos do meu selo é tentar fazer os artistas se destacarem, porque se você só por a música no streaming, de repente você entra no perfil do autor e pode ter só um ouvinte. Isso é muito ruim, triste, mas é comum. Tem muita coisa sendo lançada e sendo pouco ouvida. O trabalho do selo é tentar fazer os artistas ficarem conhecidos", pontua.

O produtor indica que para a audiência chegar a um artista independente são necessários outros caminhos.

"Para o público ir a um artista ele tem que conhecê-lo de outra forma, porque a ferramenta não oferece tantos meios. Acaba sendo algo previsível, destacando quem já é grande. Mas está igual ao que sempre foi. Na época que o rádio tinha maior força, por exemplo, também era assim", avalia.

Entra nesse leque, então, o desenvolvimento de estratégias de divulgação para alcançar maior público. A preocupação é percebida por Mona Gadelha, cantora, compositora, jornalista, produtora cearense. Para além da "remuneração injusta" das plataformas de streaming, é preciso lidar diariamente "com números de seguidores e plays".

"O que significa ser ouvido por 'X' pessoas? O que significam esses plays? Será que significa a possibilidade de fazer mais shows, de ampliar o seu trabalho para outra esfera que não seja só a plataforma digital? São perguntas interessantes para saber a necessidade de tentar fazer esses números chegarem a patamares tão altos", questiona.

Coordenadora do Laboratório de Música do Porto Iracema desde 2014, ela indica que os alunos que passam pelos sete meses de imersão trazem consigo um "mundo de influências, referências e, sobretudo, de sonhos".

Ela percebe que os participantes buscam mais oportunidades em um mercado que assume outras características a partir da tecnologia. Muitos dos artistas que passam pelo Laboratório se produzem e fazem o próprio gerenciamento de carreira. Assim, são necessárias habilidades e recursos financeiros para continuar a empreitada.

Na avaliação de Mona Gadelha, os principais desafios para artistas independentes que veem o Spotify como uma forma de divulgar seus trabalhos é "conseguir gerenciar a criação e ainda se dedicar às muitas possibilidades de divulgação que surgem com essas plataformas". Ela percebe proliferação de cursos que levam esses ensinamentos.

Enquanto cantora e compositora, recebe remuneração principalmente de direitos autorais de suas canções, sendo afiliada à União Brasileira de Compositores (UBC). Ela vê o Spotify como uma "facilidade para lançamento de trabalho" e a possibilidade de um canal mais direto com quem acompanha seu trabalho: "Vejo sempre com dois lados: o positivo é a facilidade de lançar imediatamente, no esquema 'faça você mesmo', mas, ao mesmo tempo, a comunicação e forma de alcançar um público maior não é tão simples".

 

Taylor Costa, artista cearense
Taylor Costa, artista cearense

"Arma poderosa"

Prestes a lançar novo trabalho, o cantor e compositor cearense Taylor Costa se divide entre shows, composição, produção e estudo de canto. Seu EP "Identidade", reúne cinco faixas. Duas estão nas plataformas digitais e as outras serão lançadas em junho. No leque de streamings que abrigam suas produções, o Spotify tem papel "inegável" na divulgação de seu trabalho: "Ele abre uma rede de novas pessoas que podem ouvir, interagir e indicar a nossa música. Com isso, o algoritmo da plataforma acaba montando um perfil de ouvinte", relata.

Em 2023, foram mais de 14 mil streamings em suas músicas no Spotify com origens de 62 países. Ainda assim, o cenário não permite viver apenas com a recompensa das reproduções: "É bem legal ver o trabalho rodando em lugares que a gente nem imaginou. Existe sim uma remuneração, mas ainda não dá para 'viver de play' - pelo menos não os artistas independentes".

Para Taylor, são "inúmeros" os lados positivos do Spotify para o mercado da música, da "democratização do acesso até a rede de novos ouvintes que estão por lá diariamente". "O Spotify é uma das armas poderosas que os músicos e artistas podem usar a seu favor. E não consigo pensar em um lado ruim que seja especificamente do Spotify, mas sim do mercado como um todo", esclarece.

Larga experiência

O problema da baixa remuneração também é ressaltado por Chuck Hipolitho, que trabalhou por oito anos na MTV Brasil, onde foi produtor, redator, editor e diretor e VJ de programas musicais. Ele também tem mais de 15 discos lançados, fundou e integrou a banda Vespas Mandarinas, se apresentou no Lollapalooza e faz parte da banda Forgotten Boys. Chuck também é engenheiro de som e produtor musical.

Para Chuck, o Spotify é somente uma das plataformas de streaming em que sua música vai parar. "Para o resto do mundo é o lugar onde mais tem ouvintes para lançamentos. Divulgar e promover é outra conversa ainda que depende de muito dinheiro e política", compreende.

Atualmente, ele afirma que seu alcance "é praticamente zero", é ouvido mais por quem já o acompanhava e o que mais tem tido evidência é o Zarolcomcê, um projeto instrumental. "Por alguma razão algorítmica ele chama a atenção das plataformas e conquista ouvintes pelo mundo sem que eu faça nada para promovê-la. O único jeito que consegui fazer para essas músicas darem algum dinheiro é deixá-las tocando em loop em outro computador, mas isso é trapaça e eu sei", escreve.

"Músicas viraram sonorização de ambiente"

"O streaming nos convenceu de que música boa é a que você ouve mais". A frase de Ricardo Alexandre, jornalista musical com mais de 25 anos de carreira, mostra o impacto de um movimento do qual o Spotify acaba fazendo parte - e do qual é a maior vitrine, por ser o streaming de música mais acessado do Brasil.

Ele é criador do podcast Discoteca Básica, que propõe um "mergulho profundo" em álbuns importantes da história. Como lembra Alexandre, as pessoas consumiam música antes de existirem suportes físicos e o "som gravado", quando compravam partituras para tocar em casa. Aí veio o "single" com uma música só, depois duas, até o "reinado dos álbuns". "Não tenho dúvidas de que um artista que se manifestava pelo 'disco cheio' propõe uma relação diferente com o ouvinte, especialmente em um período no qual a indústria estava coordenada para isso. É a época dos melhores encartes, das melhores capas, dos melhores discos", contextualiza.

Comparando com o mercado atual, ele cita a medição dos streams para remuneração dos profissionais como uma grande mudança de paradigmas. Na era dos álbuns, artistas eram remunerados pelos discos que vendiam mais. Ele aponta que o ouvinte "não necessariamente passava mais tempo da sua vida escutando esses discos", mas tinha uma consciência maior do trabalho como uma obra de arte.

Agora está mais difícil ver obras que exijam mais esforço de contemplação. "O artista precisa lançar exclusivamente músicas de fácil assimilação e de stream garantido, senão o pouco que ele recebe vira nada", compreende. E destaca: "A partir do momento que a unidade de comunicação do artista com o público é a música individual e você recebe pela execução daquela faixa, você amaldiçoa o artista a ser um profissional pop, de necessidade de muitos streams. Você está fadando a humanidade a não ter o próximo Bob Dylan, Frank Zappa ou Velvet Underground".

Esse comportamento desemboca na desvalorização da obra e em um processo de desapego da audiência sobre o produto. Se décadas atrás jovens juntavam economias para escolher e comprar um álbum, agora, com a "disponibilidade de todos os discos no seu celular", o "engajamento" é menor nas decisões pessoais.

Alexandre também chama a atenção para como na era dos streamings as músicas assumiram um papel de "sonorização do ambiente". Quantas playlists não existem - oferecidas pelos próprios serviços - com canções "para dormir", "para meditar" ou "para uma festa"?

"Há um desestímulo muito grande para que o público preste atenção no que está acontecendo. É uma outra mudança de paradigma: o jeito como ouvimos música hoje. Ela passou a ser algo individual, você escuta no fone de ouvido, não chama mais um amigo para ouvir um álbum novo na sua casa. A forma como ouvimos música inviabiliza praticamente o surgimento de novos clássicos. Se o 'Sgt. Pepper's Lonely Hearts Club Band', dos Beatles, fosse lançado hoje, ouviríamos com o mesmo nível de displicência e desvalorização que ouvimos qualquer outra coisa", define.

De forma geral, ele reconhece como lado positivo do Spotify o fato de ser mais uma ferramenta para divulgação de música, dando mais acessibilidade ao artista independente. "Por outro lado, há a desvalorização da música, porque quanto maior a quantidade menor é o valor cobrado, é o princípio elementar da economia. Hoje você tem acesso a toda a música do mundo e o valor dela é proporcionalmente inverso", considera.

Etapas para lançamentos no Spotify

1. Produção Musical: Gravação e mixagem

2. Arte e Capa: Metadados (compilar informações como título e nome do artista) e arte da capa (3000x3000 pixels é a resolução recomendada)

3. Distribuição Digital:
escolher uma distribuidora digital que tenha parceria com o Spotify (DistroKid, TuneCore, CD Baby, ONErpm e Tratore). Fazer o upload e pagar taxas ou assinatura anual para algumas distribuidoras que cobram esse serviço.

4. prepraração para o lançamento:
Definir a data de lançamento. Fazer uma campanha de pré-salvamento no Spotify para permitir que os fãs salvem a música antes do lançamento, aumentando o engajamento inicial.

5. Publicação e Divulgação: a distribuidora cuidará da publicação nas plataformas selecionadas, incluindo o Spotify. Utilizar o Spotify for Artists para submeter a música a curadores de playlists do Spotify, aumentando as chances de ser incluída em playlists populares.

6. Promoção: utilizar redes sociais, e-mail marketing, blogs e outros canais para promover o lançamento (considerar a criação de campanhas pagas em plataformas digitais para alcançar público maior). Interagir com os fãs nas redes sociais e criar conteúdos relacionados ao lançamento

7. Monitoramento e Análise: acessar o Spotify for Artists para acompanhar as estatísticas de desempenho da música, como número de streams, playlists em que foi incluída, dados demográficos dos ouvintes, entre outros. Analisar o feedback dos fãs e ajustar as estratégias de marketing para maximizar alcance e engajamento.

Números

Em 2023, artistas brasileiros foram escutados pela primeira vez por usuários no Spotify quase 10 bilhões de vezes.
Desde a sua fundação, o Spotify pagou mais de US$ 48 bilhões à indústria da música
As receitas geradas por artistas brasileiros no Spotify cresceram 27% em comparação com 2022; elas mais que quadruplicaram desde 2018
Mais de 70% de todas as receitas geradas por artistas brasileiros no Spotify em 2023 foram de artistas ou gravadoras independentes

Em 10 anos…

Usuários criaram mais de 89 milhões de playlists
São mais de 770 bilhões de streams no Spotify no Brasil
Marília Mendonça foi a artista mais escutada na década no Brasil
Em 10 anos, o número de streams em músicas de artistas brasileiros cresceu mais de 240 vezes no Spotify Brasil

 

Contato

O POVO entrou em contato com o Spotify Brasil para participação na reportagem, mas não recebeu respostas às perguntas enviadas até o fechamento do material

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