Logo O POVO+
A casa cansada
Vida & Arte

A casa cansada

.
Edição Impressa
Tipo Notícia Por

Mora com a família numa casa velha. Velha ou antiga? Antiga talvez seja um adjetivo mais adequado para aquelas vivendas do fim do século XIX ou do início do século XX ainda existentes no Jacarecanga ou no Benfica. Velha, no nosso peculiar jargão, usa-se como designação para as pessoas e coisas que não prestam. Quiçá cansada seja a melhor forma de caracterizar a sua moradia. Uma casa cansada, aí pelos seus mais de 60 anos de uso. Um lugar que serviu de morada para muitas famílias e que agora abriga a dele. Não tem muita graça, é apenas um singelo teto, repartido nas funções que o morar exige. Seu cansaço vem do muito desgaste de tanto se dar a quem a utilizou e utiliza. Rota, já assistiu a janeiros de felicidades e tristezas. Muda testemunha.

Rachaduras, fissuras, reboco cadente, infiltrações. Mofo, sujidades, a pátina do tempo por todo canto. Portas e janelas rangendo, grades enferrujadas, o portão emperrado. Paredes desbotadas, goteiras na área de serviço, chuveiro que é só um chuvisco. Instalações velhas, torneiras pingando, a lâmpada que acende e apaga a toda hora. A coberta de telha de barro e madeira que é uma espada de Dâmocles sobre as cabeças. O galpão sendo comido pelo impiedoso cupim, o antigo escritório abandonado, o humílimo quarto de empregada, o quintal que tinha uma parreira. As construções irregulares dos vizinhos que prejudicaram a ventilação e a iluminação naturais. A caixa d'água, que carece da mais que urgente lavagem. O muro da frente, pintado num cinza depressão. Extenuada.

Sem dinheiro para enfrentar tanta obra que a casa exausta reclamava, pensou se não seria melhor morar num hotel. Sairiam de manhã, os dormitórios quais circos de tão desarrumados, e voltariam à noite para encontrar os aposentos um brinco e cheirando a limpeza. Mas, acostumar-se-ia a se cobrir com lençóis que já protegeram o amor alheio? A manejar pratos, talheres e copos que já saciaram a fome e a sede de muitas bocas? A usar pias, vasos e banheiras que atenderam às necessidades de tantos? Decisão difícil. Seria melhor encarar o desafio dos reparos da residência, vez que o mapa de danos e as patologias construtivas já eram conhecidos. O problema, ou melhor, a solução, era a grana, que não tinha. Empréstimo no banco? Não, não gostava da idéia.

Súbito, o pensamento voou-lhe e ele imaginou que o sufoco da casa era igual ao da Mãe Terra. Com uma idade que se perde na noite dos tempos, nosso lar comum, principalmente depois da Revolução Industrial, viu-se refém de um consumo jamais visto e que o exaure a cada dia. Mesmo sabendo que o homem não vive sem a natureza, aquele não entende que esta pode perfeitamente seguir sem ele. E, talvez por vingança ou burrice, tome poluição, desmatamento, aquecimento global, o diabo. Só que o idiota não tem para onde ir. Viver em outro planeta? Qual o preço dessa aventura? Em que banco do espaço sideral conseguiria o recurso emprestado? Melhor será estabelecer um novo pacto com o nosso mundo. Respirou fundo e preparou-se para a luta.

O que você achou desse conteúdo?