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Conheça o mercado da dublagem e seus dilemas com a chegada da IA
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Conheça o mercado da dublagem e seus dilemas com a chegada da IA

Da acessibilidade à defesa da língua, dublagem tem importância ressaltada por fãs e profissionais em meio a debates sobre IA
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Marcelino Câmara (acima) é responsável pelo curso de formação de dubladores 
da escola que 
leva seu nome e 
fica em Fortaleza (Foto: FCO FONTENELE)
Foto: FCO FONTENELE Marcelino Câmara (acima) é responsável pelo curso de formação de dubladores da escola que leva seu nome e fica em Fortaleza

O primeiro contato com uma produção audiovisual estrangeira foi, para muitos brasileiros, com a sua língua nativa em destaque. Em animações, desenhos infantis, filmes ou séries, os personagens "de fora" tinham suas vozes interpretadas em português e, com isso, as obras proporcionavam ao público — fossem crianças ou adultos — assimilação melhor dos trabalhos quando em comparação com aqueles legendados.

Quando a dublagem começou no Brasil, Getúlio Vargas era presidente. A versão brasileira de "Branca de Neve e os Sete Anões", em 1938, marcou o início de um tipo de trabalho dos atores que viria a se consolidar décadas depois. Hoje, o País é tido como uma das principais "casas" da dublagem no mundo.

Com a proximidade do Dia do Dublador, em 29 de junho, a atividade volta a ser refletida em suas peculiaridades. Cada vez mais popular a partir do avanço da internet, a dublagem tem sua importância reconhecida em diferentes planos, desde acessibilidade à democratização da cultura. Porém, a inteligência artificial no ramo também ocupa discussões entre profissionais, que veem interferências negativas caso não haja regulamentação.

Com 86 anos de história, a dublagem no Brasil passou evidentemente por transformações. Se no início dublava-se apenas para a televisão aberta, anos depois houve um "boom" com a TV a cabo (apesar de retração devido ao alto valor do formato). A popularização do VHS aumentou o número de trabalhos e pesquisas mostravam com programação dublada na TV a cabo tinha maior audiência, incentivando mais dublagens. Antes, apenas filmes infantis eram dublados para o cinema.

"A dublagem hoje é muito diferente de como era há 50, 60 ou 70 anos atrás em todos os aspectos, sejam volume de trabalho, estabilidade, rentabilidade e parte técnica", atesta o dublador Wendel Bezerra.

A atriz, dubladora e diretora de dublagem Luciana Baroli, 42, enfatiza que as condições de trabalho para os profissionais "melhoraram muito" a partir da tecnologia "usada a favor da classe". Antigamente, exemplifica, se houvesse erro em uma fala e fosse necessária uma pausa no meio dela, dificilmente conseguiria retomar a partir da pausa. Era preciso refazer.

Ela lembra também de quando os dubladores ficavam juntos na mesma sala de estúdio, o que motivava o aprendizado compartilhado e as interações. Hoje, porém, "cada um faz sua parte sozinho". A internet também auxiliou na visibilidade dos trabalhadores e a propagar o reconhecimento de sua importância.

Dubladora de Bella Swan em "Crepúsculo", Luciana Baroli está há 30 anos em atividade. Ela considera que o mercado dos dubladores é relativamente bem remunerado em comparação com outras profissões, mas atenta para a importância de um "cuidado maior" no tratamento da rotina.

"Acho que o que falta não é nem a questão financeira, é termos mais tempo para fazermos os trabalhos. Na maioria das vezes as coisas são meio que 'para ontem'. Pode ficar feito `às pressas', a tradução, a dublagem… Acho que daria para ter um cuidado maior com o trabalho. Chegamos no estúdio sem saber o que é, sem ter tempo de ensaiar, conhecer a personagem… É tudo muito rápido. Distribuidores poderiam ter esse cuidado", compreende.

Para Baroli, ainda há muitas pessoas que não reconhecem a importância da dublagem e são contra ela, como comentários na internet recriminando o formato ("filme dublado é um lixo"). É preciso ressaltar como a área é relevante para a acessibilidade: "As pessoas podem esquecer às vezes, mas tem muitos espectadores com deficiência visual, além das crianças quando precisam ver um desenho", aponta. Ela também afirma: "Uma pessoa com mais idade que quer ver um documentário, por exemplo. Não é só entretenimento. É ter informação".

A característica da acessibilidade é apontada por Marisa Leal, 65, voz de personagens como Baby, da série de TV "Família Dinossauros". Ela, porém, destaca: "Não é só importante na questão da inclusão de quem não enxerga, não consegue acompanhar por problemas de alfabetização ou por outros tipos de deficiência. A dublagem é importante também como questão cultural, até mesmo da soberania da língua pátria".

A artista acrescenta: "Se você não protege seu idioma, não protege seus costumes, como se defenderá da influência externa que vem como uma máquina que te destruirá? A dublagem está incluída na parte artística e de patrimônio cultural".

O argumento é de uma profissional com longa trajetória no campo. Dubladora desde 1980, Marisa Leal acompanhou "evoluções tecnológicas" até a chegada do Pro Tools, software "que facilita a gravação e auxilia com o sincronismo". Houve também "evoluções artísticas", como aprimoramento da interpretação dos atores.

Ela, porém, chama a atenção para uma "perda de qualidade no meio": "Não sei se é atribuído ao fato de a dublagem hoje ter mais divulgação, então muitas pessoas e muitos fãs querem dublar. Isso não é ruim, mas é preciso que não se perca a qualidade em prol do deslumbramento, porque antes a dublagem era uma profissão praticamente anônima, o dublador vivia no anonimato. Eram conhecidas as vozes que foram se destacando com o tempo e com os personagens que foram se afirmando".

Nesse sentido, Marisa aponta outra mudança. Anteriormente, era mais fácil para iniciantes entrarem em estúdios de dublagem para assistirem aos trabalhos e assim ganharem aprendizado. Mas, com a cláusula de confidencialidade dos trabalhos, hoje, "só se desenvolve por meio de um curso", mas precisa "ser de qualidade", pois há projetos ministrados por pessoas "que não têm capacidade de dar aula" e formam profissionais "tão deficitários quanto elas".

"Hoje também existe um imediatismo. Então, você quer fazer um curso de três meses ou até de um ano e quer se considerar um dublador de ponta, quando na realidade você só é um bom dublador com cinco anos de profissão. Antes disso, não há um bom dublador com experiência e habilidade para se sair bem em um estúdio, seja para qual personagem for", avalia.

Quem tem preocupação semelhante quanto ao "deslumbramento" citado por Marisa Leal de pessoas que estão entrando no mercado é o ator, dublador e diretor de dublagem Wendel Bezerra, 50, voz de Goku ("Dragon Ball") e tantos outros personagens em mais de 45 anos de carreira.

"Há muita gente entrando no mercado. Só temo pelas pessoas que entram querendo única e exclusivamente 'status', para simplesmente postar que fez 'tal trabalho', e não pela paixão e pelo prazer, e ter esse reconhecimento como consequência. Essa é minha única preocupação, mas eu, como diretor, quando percebo que o interesse não é genuíno, não trabalho mais diretamente com a pessoa", afirma.

Também fundador e CEO do estúdio de dublagem UniDub, em São Paulo (SP), Wendel Bezerra acredita haver também "muita gente disposta a acrescentar" em uma carreira cada vez mais visualizada devido às redes sociais, podcasts e eventos. "Acho que a procura aumentou por ser uma profissão que traz uma magia diferente na área artística e porque dá uma estabilidade financeira, uma vez que você consiga, de fato, ser um profissional inserido no mercado", identifica.

Ele explica as diferenças entre "apenas" dublar e dirigir uma dublagem. O dublador foca exclusivamente no seu personagem, não assiste aos projetos antes e seu trabalho acaba na hora que sai do estúdio. O diretor recebe a produção antes, assiste à ela, ajuda na adaptação do texto, escolhe os atores que interpretarão cada personagem e dirige individualmente os profissionais quanto a sincronismo labial, inflexão, interpretação e tom. O diretor também age como intermediador entre a parte artística e a administrativa, em contato com técnicos de som, por exemplo, e com atenção a prazos e orçamentos.

Para Wendel Bezerra, a dublagem é importante em vários aspectos, como acessibilidade. Especialmente, porém, se destacam a "cultura" levada a partir da arte e sua democratização. "Além de tudo, ela é extremamente democrática e facilita o acesso à cultura. É uma forma também de você manter a língua viva e gerar vocabulário para crianças, adolescentes e idosos.

 

IA em foco

Com o avanço da IA, foi criado o movimento Dublagem Viva, que reúne "artistas unidos por uma regulamentação do uso da IA que garanta direitos, segurança e ética humana". Eles defendem que a IA não deve "reproduzir vozes de atores em outros idiomas para língua portuguesa para substituir os dubladores" e pedem uma regulamentação criada com todos os setores envolvidos.

Mais de 300 pessoas, entre profissionais da dublagem e fãs, compareceram a uma audiência pública na Assembleia Legislativa de São Paulo (Alesp) na segunda-feira, 17, em defesa dos "direitos e da dignidade" desses trabalhadores. Pautas como o papel da dublagem na economia do País e também na acessibilidade foram levantadas.

O aspecto é ressaltado por Wendel Bezerra, dublador de personagens como Bob Esponja. Ele defende a regulamentação sobre o uso da inteligência artificial em "qualquer setor", para as pessoas terem segurança jurídica e profissional de realizar seus trabalhos.

"Acredito que a IA é algo que vai fazer parte efetivamente do mercado de dublagem, mas é preciso ter limites para a utilização disso para a proteção de quem trabalha nesse mercado. Eu me refiro não apenas aos atores, mas a toda a cadeia da dublagem, como tradutores, legendadores, produtores, pessoal de manutenção, técnico-administrativo… É uma cadeia muito grande", pontua.

 

Close up shot of professional condenser microphone and headphones hanging on flexible mic stand in studio
Close up shot of professional condenser microphone and headphones hanging on flexible mic stand in studio

Dublagem em Fortaleza

Em Fortaleza, a Escola de Atores Marcelino Câmara, no bairro Joaquim Távora, oferece curso de dublagem. A instituição é mantida pelo diretor cearense, produtor cultural, ator e professor de dublagem Marcelino Câmara, cuja trajetória artística tem mais de 35 anos. Criador do Grupo Catavento de Teatro Infantil, seu gosto pela dublagem já vem de "muito tempo". Com a pandemia, percebeu que seria preciso se capacitar para oferecer um curso de dublagem em meio à necessidade de disponibilizar cursos on-line para manter as turmas e os alunos.

Um dos cursos feitos por Câmara foi o disponibilizado pela Casa das Artes de Laranjeiras (CAL), do Rio de Janeiro. "O teatro é a base para essa 'especialização', porque um bom dublador precisa ser um bom ator. Sempre falo para os meus alunos. A diferença é que na frente do ator (de palco) há a plateia e o que o dublador vê na sua frente é a tela com seus personagens. Você entra na alma desse personagem", caracteriza.

O curso de dublagem é um dos mais procurados na Escola de Atores. "Tenho alunos tanto com sete anos de idade como com mais de 40 anos. Eles sempre vêm pelo gosto e pela admiração por esse ramo. Vejo muitos adolescentes e jovens com o sonho de se tornarem dubladores", pontua.

Diante disso, promoveu de 13 a 15 de junho um workshop de dublagem. A oficina ensinou técnicas de impostação vocal, respiração, dicção e outras. Ao analisar o cenário da dublagem no Estado, o ator considera como "mínimo", pois os principais estúdios estão no eixo Rio-São Paulo. Entretanto, as possibilidades têm aumentado.

"Hoje, eles conseguem fazer trabalhos de casa por conta do desenvolvimento da tecnologia. Há muitos profissionais que têm contratos com estúdios em outros estados, mas trabalham em seus lares", indica.

Uma dessas profissionais é a atriz paulista Nina Carvalho, 30, que atua no mercado de dublagem desde 2019 e mora em Fortaleza. Hoje, "trabalha com alguns personagens fixos que a permitem trabalhar de casa", mas, dependendo do papel, precisa ir a São Paulo.

Ela dá voz a personagens como Anya Forger no anime "Spy X Family" e Hello Kitty. Foram dois cursos de dublagem (um deles profissionalizante) e ministrou com Marcelino Câmara a oficina sobre a realidade de mercado, exercícios práticos e a importância do teatro para ser dublador.

"Não existe dublagem sem Teatro. Então, o primeiro passo é fazer/vivenciar o teatro. O segundo passo é buscar e ter o 'DRT', ou seja, o Registro Profissional de Ator pelo Sindicato dos Artistas e Técnicos em Espetáculos de Diversões (Sated)", aconselha.

Quem sabe bem disso é o jornalista, professor e ator cearense Alison Marques, 35, que recentemente tirou seu DRT. Ele sempre teve interesse em trabalhos com a voz e só encontrava cursos em São Paulo ou no Rio de Janeiro. Quando descobriu o projeto da Escola de Atores, decidiu ingressá-lo.

Hoje aluno de Marcelino Câmara, aprende sincronia labial e aponta como características do curso a melhoria da dicção e pronúncia, além da interpretação. Ele chegou a fazer locução de comerciais e narração de vídeos institucionais, mas seu desejo é dublar filmes. Percebe, porém, a necessidade de investir em portfólio para alcançar empresas do Rio e de São Paulo.

"Para mim, a dublagem é a habilidade de interpretar e transmitir sentimentos de forma tão autêntica que o público se conecta com o personagem. Isso é mágico. A dublagem também ajuda aqueles com deficiências visuais a entenderem e se emocionarem com as histórias, pois uma interpretação vocal rica pode transmitir muito mais do que apenas palavras", considera.

Marcelino Câmara destaca a importância de outros profissionais envolvidos, como o diretor, editor e técnicos que "precisam ser tratados com respeito", pois a dublagem "não é brincadeira". "Temos que valorizar e reconhecer o trabalho desses profissionais", afirma.

 

Ygor Guidoux criou o canal Versão Dublada para homenagear a dublagem brasileira
Ygor Guidoux criou o canal Versão Dublada para homenagear a dublagem brasileira

Homenagem de fã

Ao longo das últimas duas décadas, perfis e canais se dedicaram a falar sobre esses trabalhadores, fosse pela nostalgia ou pela admiração de ouvir aquela voz que "marcou a infância".

Um dos projetos de maior destaque é o canal do YouTube Versão Dublada, criado em 2015 com o propósito de "homenagear a dublagem" e "dar o devido valor àqueles que sempre entregaram ao máximo um conteúdo de qualidade, mesmo que o anonimato fosse inevitável". Seu idealizador, o cineasta, ator e produtor de conteúdo Ygor Guidoux, 34, é fã do ramo desde os cinco anos.

"A dublagem é uma arte. Além de ser uma forma de acessibilidade e inclusão, ela consegue levar a arte e a cultura para todo o mundo. Às vezes, você só quer chegar em casa e consumir o material, mas para isso tem que prestar atenção e pode estar em um idioma que você não domina. Gosto de falar isso: a dublagem é acessibilidade em arte", aponta.

A dublagem o acompanha há tanto tempo que, em um trabalho de primeiro semestre na faculdade de Cinema, fez redublagem de um episódio da série "Um Maluco no Pedaço" para explicar a matéria "de uma maneira visual". Após experiências de trabalho com a internet em outras empresas, decidiu criar seu próprio projeto.

"Com o 'Versão Dublada', eu não queria apenas um canal para fazer entrevistas com dubladores. Queria fazer uma homenagem à dublagem. Uma vez chamei o Zé da Viola, cantor oficial das músicas de 'Toy Story'. Ele tem deficiência visual. Li para ele comentários de fãs e ele se emocionou muito. Pensei: Versão Dublada é isso. Não é simplesmente 'como você se tornou um dublador', é um olhar mais humano daquele profissional que até então é anônimo", descreve.

Hoje, o canal conta com mais de 330 mil inscritos e mais de 31 milhões de visualizações, mas não se restringe ao YouTube. O Versão Dublada também permitiu a criação da DublaCon, convenção que reúne dubladores e outros profissionais da dublagem em painéis e exposições.

"O que é feito com coração ganha outro valor. O Versão Dublada é a extensão do meu coração. Para mim, tanto faz se cresceu, está pequeno ou médio, porque o importante é continuar com o mesmo combustível: continuar com as homenagens feitas com o coração. Se toca outras pessoas, é missão cumprida", declara.

 

em memória

José Santa Cruz (1929 - 2024): Megatron, Hagrid e Danny DeVito

Carmen Sheila (1944 - 2024): Dee Dee, Felícia, Sra. Cabeça de Batata

Roberto Macedo (1949 - 2023): Doutor Octopus e Severo Snape

Gileno Santoro (1948 - 2023): Mestre Kame, Tio Chan e Pat Morita

Lauro Fabiano (1937 - 2023): Dumbledore, Tio Phil, Sr. Burns

Isaac Bardavid (1931 - 2022): Wolverine, Tigrão, Esqueleto

Orlando Drummond (1919 - 2021): Scooby-Doo, Popeye e Puro Osso

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