Um pôr do sol na Capital chamava a atenção de Descartes Gadelha, artista plástico cearense. No entanto, a paisagem do final da tarde prendeu seu olhar não pela beleza, mas pela fumaça que surgia em meio ao alaranjado solar. Curioso, o artista pediu a um menino da região que mostrasse de onde vinha aquele cenário.
O cenário do fim de tarde era o Aterro Sanitário de Fortaleza. Conhecido popularmente como "Rampa do Jangurussu" ou "Lixão do Jangurussu", o local recebia os resíduos e dejetos da Cidade de 1978 a 1998. A visita de Descartes ao lugar foi transformada na exposição "Catadores do Jangurussu", exibida no Museu de Arte da Universidade Federal do Ceará (Mauc) desde 1989.
Cerca de 15 anos depois, o escritor Rodrigo Marques encontraria a exposição no Mauc, durante o mestrado em Literatura pela Universidade Federal do Ceará. As obras do artista cearense impactaram tanto o também professor universitário que ele decidiu transformar a narrativa visual em um enredo escrito.
"Existem salas no Mauc dedicadas a diversos artistas cearenses como Aldemir Martins, Chico da Silva, Antônio Bandeira e o Descartes Gadelha. Eu aproveitava os intervalos entre as aulas do mestrado para ficar admirando os quadros", relembra o escritor. Na época, Rodrigo havia escrito e publicado um livro sobre Chico da Silva, intitulado "O Dragão e os pássaros enfurnados", uma ficção inspirada nas obras do autor.
A paixão pela arte o motivou a criar histórias a partir dos quadros que ele via. "Meu desejo sempre foi escrever literatura. E as artes plásticas, visuais foram uma espécie de abertura para uma escrita", revela Marques, que também é docente na Faculdade de Educação, Ciências e Letras do Sertão Central, da Universidade Estadual do Ceará, campus Quixadá.
"Então, como eu não sou crítico de arte, não domino bem as categorias que um crítico de arte utiliza e o conhecimento maior do que a arte, a pintura, escultura, em relação à técnica, uso as obras para contar histórias. Para mim as obras, pelo menos as do Chico e do Descartes, me abriram essa possibilidade", detalha Rodrigo, doutor em Literatura Comparada pela Universidade de São Paulo.
Em "Pôr do Sol", quem guia o artista pelo lixão é um menino surdo, que encontra seus modos de comunicar a gravidade da existência daquele local. "Quis trazer esse menino, porque o Descartes conta que foi uma criança que levou ele até o lixão. Mas, a criança vai meio que se decepcionando com esse pintor", conta o autor.
"Porque primeiro a criança não acha bonito o pôr do sol do Jangurussu, para ela, bonito é o pôr do sol da Barra do Ceará. E acaba que o Descartes desiste de pintar o pôr do sol e decide registrar aquela tragédia. Então, ele se transforma em um pintor repórter", descreve.
Para ele, os quadros de Descartes são muito realistas em denunciar a tragédia vivida pelas pessoas que trabalham no aterro recolhendo resíduos. "Aquelas pessoas foram esquecidas e apagadas, seu lugar de fala e memória se perderam", pontua o acadêmico.
"E com isso a gente pode repetir essas tragédias, aliás, essa tragédia se repete todo dia, invisibilizada no cotidiano da gente porque vai absorvendo aquilo como se fosse natural. Como pessoas que moram nas ruas, que passam fome, que sobrevivem no lixo. Pessoas que estão à margem em uma sociedade opressora", argumenta o docente.
"Então quis trazer esse narrador como um menino, porque para mim, ele representa essa surdez das pessoas que estão fora do lixão e não sabem da realidade vivida ali. Surdez dos leitores e leitoras, de quem passa pelo antigo aterro e não lembra, não sensibilizado, pelo que aconteceu ali", destaca.
Transformando pintura em prosa
Por se tratar de uma obra sobre um problema sanitário, o processo de escrita de Rodrigo Marquesfoi denso. “Na época, eu estava no meio de uma mudança para uma casa no Padre Andrade. Como ainda estava organizando tudo, usava uma escrivaninha improvisada com caixas, aquele ambiente confuso de alguma forma me fazia sentir que estava mais conectado com a situação de quem estava no lixão”, relembra.
“É um livro que eu chorava muito ao escrever, inclusive se eu ler eu choro e até mesmo falando sobre me sensibilizo. Porque é mesmo muito doida. Não uma narrativa agradável de ler, é algo que impacta”, salienta Marques, que estava iniciando o doutorado quando começou a escrever a obra.
Um dos artifícios usados para construir a história foi a consulta dos quadros, disponíveis no site do Museu de Arte da Universidade Federal do Ceará, onde Descartes Gadelha tem uma sala dedicada a suas obras, assim como outros pintores cearenses como Antônio Bandeira.
“Os quadros estavam em boa resolução com comentários do próprio Descartes para cada obra, então aquilo para mim foi fantástico, porque eu pude entrar em contato com os nomes dos personagens que usei no livro, como o Vigia, Menino do Buraco, Cachorro Delegado”, conta o autor, que aproveitou os nomes que Gadelha usou para intitular os quadros da exposição “Catadores do Jangurussu”.
Rodrigo Marques também aproveitou entrevistas de Descartes Gadelha sobre os quadros para compor o livro. “Eu tento também me aproximar de uma espécie de linguagem dos artistas, como a forma que eles falam de suas obras. Então, o Chico da Silva, por exemplo, falava completamente de uma forma poética e o Descartes também”, detalha.
“Ao comentar as obras dele mesmo e ao falar sobre arte, parece que estamos assim diante de uma entidade e esse tipo de de linguagem criativa dos pintores também me interessa. O olhar deles sobre o mundo que vou conhecendo através das obras”, descreve Rodrigo, que é professor da Faculdade de Educação, Ciências e Letras.
Conversas
Rodrigo Marques também aproveitou entrevistas de Descartes sobre os quadros para compor o livro. "Eu tento também me aproximar de uma espécie de linguagem dos artistas, como a forma que eles falam de suas obras", detalha.
Lançamento livro "Pôr do sol"