Junho, mês das festas da colheita. O mestre da xilogravura João Pedro do Juazeiro completa 60 anos. Passa as noites trabalhando. Nas madrugadas, diz, escuta melhor os sonhos do mundo. A exposição “Gravar os sonhos do mundo” entra em cartaz no Museu de Arte da UFC na manhã de sábado, 29, dia de São Pedro. Apresenta xilos avulsas, seriadas em álbuns, matrizes e xilotipias, dos acervos do artista e do museu do Benfica.
“Era manhã de sábado quando acordei com Zé Lourenço batendo na porta”, conta João Pedro no livro “O Gilmar que eu conheci”, de 2023. “‘Se avexa, homem, Gilmar tá te esperando na Gráfica.’ Corri [para a Lira Nordestina] e me deparei com a cena da Ceia Larga mais uma vez. O assunto da reunião, naquela manhã de junho de 1998, era: João Pedro de Carvalho Neto, o novo xilógrafo de Juazeiro. Minhas matrizes estavam espalhadas na mesa”. Gilmar de Carvalho (1949-2021) tinha nas mãos uma delas, um Frei Damião, adquirido na hora: “Esta vai para o acervo do Mauc”.
O episódio tem o tutano da trajetória do gravador. “Sou uma cria do Gilmar”. O episódio diz da aplicada obstinação com que se dedicou ao ofício, iniciado naquele mesmo ano de 1998. “Cansado das vezes que incomodava meus amigos gravadores da Lira para me cederem ilustração para meus cordéis, tomei a iniciativa de fazer minhas próprias capas”. Não parou mais. Catava taco, recolhia pedaços descartados, trabalhava obsessivamente. Ganhou o apelido de pinica-pau.
“Foi um ponto de partida para uma carreira fulgurante”, escreveu Gilmar de Carvalho, cujos anos de estudos e pesquisas em Juazeiro do Norte se desdobraram em fomento à produção, registro, documentação e difusão, impulsionando uma rede de circulação para novas gerações de xilogravuristas. João Pedro diz que, depois do encontro com Célia, com quem é casado (ela, os filhos Wallyson e Wanderson e a filha Willyane sabem fazer xilo), o encontro com o escritor é o mais importante da sua vida.
O episódio assinala o papel da transmissão, diz do lugar da Lira, nome dado pelo poeta Patativa do Assaré à antiga Tipografia São Francisco, que, sob o comando do romeiro alagoano José Bernardo da Silva (1901-1971), vai inscrever Juazeiro na história da editoração popular no país, na América Latina, no mundo. João Pedro imprimia lá seus folhetos. O poeta Expedito Sebastião da Silva (1928-1997), então gerente, “corrigia meus versos de pé quebrado”, diz João Pedro. Na Lira, o hoje mestre da xilo José Lourenço, o que lhe chamou à porta de casa naquela manhã, lhe ensinou as artes da impressão.
A Ceia Larga é como João Pedro se refere a cada uma das regulares visitas do professor à oficina gráfica. Sentava-se ao centro da mesa, ladeado por xilogravuristas, ouvindo, recebendo e fazendo novas encomendas, propondo atividades. “Gravar os sonhos do mundo” é dedicada ao pensador da cultura. Gilmar de Carvalho morre vítima da covid-19 quando já havia vacina para nos proteger do vírus.
A poesia das fibras da madeira
Xilogravura, escrito/gravado na madeira, é uma inscrição. O branco no papel é o espaço vazio, criado com cortes e ranhuras. O preto, ou outra cor, é a parte em relevo na matriz. A xilo é (es)cavada na madeira. Uma pessoa pode desenhar e outra cortar, fazendo surgir, invertido, o desenho na madeira, tornando-a uma matriz. Entintada, para imprimir o desenho, pressiona-se a matriz sobre o papel ou outra superfície, como tecido e louça.
Primeiro filho de Maria Estela da Conceição e José Pedro de Carvalho, de famílias romeiras do Padre Cícero, vindas de Pernambuco, João Pedro nasce dia 11 de junho de 1964 no sítio Bananeiras, em Ipaumirim, no cariri cearense. Em 1965, vão morar em Juazeiro. Ipaumirim já se chamou Unha de Gato, que arranha, risca, deixa marca, como a prática de xilogravar|grafar. Xilo vem de xylon, a palavra em grego para madeira.
Na xilotipia, saem de cena o uso de buril, bisturi, canivete, estilete, faca, formões e goivas, haste de sombrinha e guarda-chuva, lâmina de barbear, quicé, preguinho, serrinha de pão, a combinação de falta e invenção de instrumentos para fazer xilo.
No livro “Xilotipia – a poesia das fibras da madeira”, de 2022, João Pedro nos diz: “Muitos dos meus trabalhos foram confeccionados seguindo e utilizando as formas contidas no taco da madeira. A minha função era apenas a de complementar e fortalecer com a concepção técnica das escavações, dando mais expressividade e força às escavações e riscos entre o preto e o branco. O que me levou a esse observar costumeiro dos veios contidos na madeira. Com o tempo, descobri o inimaginável: (...) o surgimento de imagens naturais contidas no vegetal. Havia um universo naquele pequeno taco de madeira. Passei a utilizar a madeira sem lixamento, sem desenho e sem escavação, como vinha da serraria, ou mesmo estragada pelas intempéries do tempo. Apenas entintava e imprimia para obtenção das formas contidas nelas. A madeira é vida!”.
Gravar os sonhos do mundo