Marcada para estrear na próxima sexta-feira, 5, "Pedaço de Mim" é a primeira novela brasileira da Netflix, ou seria se a plataforma não tivesse mudado a nomenclatura para "série melodramática". De todo modo, a produção segue a "receita" do sucesso das dramaturgias com roteiro de Ângela Chaves e direção artística de Maurício Farias.
A história acompanha Liana (Juliana Paes), que sonha em ter um filho com seu marido Tomás (Vladimir Brichta), mas passa por dificuldades para engravidar. Após o uso de estimulantes para fertilidade, sexo com o companheiro, descoberta de traição e abuso sexual, ela se depara um caso raríssimo de superfecundação heteroparental. Liana passa a ter que conviver com a angústia de estar esperando um filho tão desejado, de seu marido, e um que é fruto de um estupro.
A trama trata de assuntos muito sensíveis no núcleo de Liana, como o estupro de vulnerável e a dificuldade real de vítimas e da sociedade reconhecer o abuso. Em relação a isso, a atriz Juliana Paes explica, em entrevista ao Vida&Arte, como foi o processo de desenvolvimento da trama.
"Foi uma coisa que a gente discutiu muito enquanto estava fazendo. A gente tinha medo de não dar para o público a sensação de que ela sabia que tinha acontecido, mas estava reagindo de algum jeito. A gente tentou que isso ficasse muito claro, que a própria vítima leva um tempo para a ficha cair. Ela demora a perceber que passou pelo estupro. Primeiro passa pelo processo de culpa, de se responsabilizar, depois da vergonha de falar sobre aquilo, de levar aquilo para conhecimento de todo mundo", destaca.
A sensibilidade e a imersão da história de Liana foram uma experiência tão "poderosa" para Juliana Paes, que a atriz conta ter sofrido impactos na sua vida pessoal e sexual após os trabalhos com "Pedaço de Mim" se encerrarem.
"Pela primeira vez foi bem complicado para mim e deu para revelar que, com esse componente de abuso, foi muito difícil depois de voltar para o meu corpo sexual. Eu levei um tempo sem querer muito o toque. Não é que eu tenha vivido um trauma através da personagem, mas eu fiquei com um corpo sensibilizado durante um tempo depois das gravações, e isso foi a primeira vez que aconteceu", relata Juliana.
A atriz continua: "Mexeu muito comigo, de um jeito que não é consciente, sabe? Eu achei que eu estava só cansada. Depois que eu me afastei, que as filmagens acabaram e que, em retrospecto, eu pude pensar, falei 'Será que talvez eu não tenha ficado realmente mexida nesse lugar do sexual, nesse lugar do chakra base?' Talvez tenha sido isso".
Em relação à "Pedaço de Mim" ter sido diferenciada de novela para série melodramática, Juliana Paes explica que é pela produção ter tido um resultado diferente do que as dramaturgias de TV costumam entregar: "Tem um resultado muito diferente. É a parte de a gente gravar sempre em cenários, já que a gente não fez nada em estúdios, isso traz uma qualidade, uma realidade que é difícil de você mensurar, mas é visto, você consegue ver, só que foram todos os cenários. Depois, na parte estética, a gente tem uma linguagem mais cinematográfica, uma linguagem mais sutil".
Papel cultural
Para além do poder de reunir pessoas na sala em torno de uma narrativa comum, as novelas podem ter imenso impacto social e comportamental nos debates sociais enquanto são exibidas. Em alguns casos, foram capazes até de deixar legados para o País, como aconteceu com a regulamentação do Estatuto da Pessoa Idosa, de 2003, que foi criado após discussões geradas na novela "Mulheres Apaixonadas", em torno dos maus-tratos a idosos na trama de Manoel Carlos. Durante a novela, o número de denúncias cresceram e a lei foi instituída pelo então presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT).
Mas esse só foi um dos inúmeros casos em que as novelas mostram sua capacidade social. O pesquisador Mauro Alencar relembra também a Lei do Divórcio, que foi impulsionada pela personagem Cândida na novela "Escalada" (1975), interpretada por Susana Vieira.
Larissa Martins, do canal Coisas de TV, aponta ainda outros casos marcantes de "merchan social" em novelas da Globo, como "Explode Coração" (1995), de Glória Perez, que abordou o tema de crianças desaparecidas e procurou depoimentos reais para a trama. Além disso, "Laços de Família" (2000), de Manoel Carlos, que aumentou o número de doadores de medula óssea no Brasil ao retratar a personagem Camila, que sofria de leucemia. Mais recentemente ainda, foi ao ar a novela "A Força do Querer", que chamou atenção devido a um personagem transsexual pela primeira vez em horário nobre.
O ator Mateus Honori destaca as telenovelas como uma importante fomentadora de diálogos e temáticas em sociedades e dentro dos lares: "De repente você está assistindo a uma novela e ela levanta uma questão importante que vai ser um debate, que vai acontecer na sua mesa de jantar".
"Basicamente a telenovela formou a identidade nacional catalisando as diversas manifestações artísticas. Impulsionou a literatura brasileira; a música popular; abriu caminhos para a compreensão da amplitude do relacionamento humano; lutou contra a Censura Federal; contribuiu de maneira decisiva para a profissionalização da carreira de ator; contou a nossa História e projetou o melhor do Brasil para o mundo. Não é pouca coisa!", declara Mauro.
Fim das tele nove las?
A todos os entrevistados para esta reportagem, foi feita a mesma pergunta: "Você acredita que as telenovelas podem chegar ao fim no futuro?". Acompanhe os diferentes pontos
de vista de cada um a seguir.
"Eu não creio que os streamings levará ao fim das telenovelas, mas creio que esse modelo atual precisa se reinventar e talvez buscar nas suas décadas de ouro uma nova fórmula de sucesso"
Manuela Bandeira
"Não creio nisso, mas, sim, numa adequação da telenovela com o mercado atual. Ou seja, estamos deixando de ser uma telenovela de tese, formadora base da identidade nacional, e passamos a ser uma telenovela com temas mais pontuais. Isso certamente diminuirá o número de tramas e capítulos e caminhará em consonância com a narrativa da teledramaturgia mundial. Aparentemente, isso parece simples, mas é uma mudança no eixo central da produção de telenovela. Do mesmo modo que o melodrama permanece, a telenovela também deverá permanecer no quadro de consumo de bens culturais".
Mauro Alencar
"Acho que a gente sempre está procurando coisas para substituir coisas. Será que o digital vai engolir o nível físico? Será que o jornal vai desaparecer? Será que... Acho que não. Acho que existe demanda para tudo"
Mateus Honori
"Pode ser que um dia isso aconteça, eu a gente tem jovens aí que talvez não tenham crescido igual a gente cresceu com a TV ligada, embora tenha muita gente que não tenha nem acesso a streaming ainda. Mas eu acho que o ao vivo para o brasileiro ainda é uma coisa muito importante, da gente estar sintonizado ao mesmo tempo"
Larissa Martins
Produções estrangeiras
Para além das produções nacionais e hollywoodianas, os brasileiros passaram a consumir em peso produtos audiovisuais da Coreia do Sul e da Turquia nos streamings. Os doramas e as novelas turcas ganharam tanto espaço, que ultrapassaram em audiência muitos filmes e novelas disponíveis nas mesmas plataformas, como foi o caso recente de "Hercai: Amor e Vingança" e "Renascer".
Na Netflix, diversos doramas (dramas asiáticos) ficaram entre as produções mais assistidas da plataforma do Brasil durante semanas desde a estreia, como "Uma Esposa Para Meu Marido", "Round 6", "A Lição" e "Uma Advogada Extraordinária".
Manuela Bandeira, pesquisadora, aponta que um dos fatores do crescimento de consumo para a produção desses conteúdos estrangeiros em streaming é a facilidade de acessá-los em qualquer momento e lugar: "Não é mais preciso estar naquele horário na frente da TV, conseguimos assistir do ônibus, metrô, na academia, enfim em qualquer local e horário".
"Além disso, acho que nós também temos curiosidades para assistir a tramas ambientadas em outros países. No caso dos doramas, por exemplo, são histórias mais leves em que os personagens passam diversos episódios para trocarem o tão esperado 'primeiro beijo'", completa.
A criadora de conteúdo Larissa Martins também concorda que os doramas possuem vantagem em relação às tramas brasileiras por serem histórias mais simples. Ela discorre: "Eu acho que talvez seja o caso de olhar para nossas produções nacionais e não tirar a estética da novela brasileira, mas criar algo que não precise de muita coisa, sabe? Uma boa história de romance, um bom casal, sem muito invencionismo. Eu acho que tem um público para isso, os mesmos que buscam por doramas".
Mas não foram os doramas e as novelas turcas dos streamings as primeiras produções estrangeiras a se popularizarem entre os brasileiros. O especialista Mauro Alencar destaca as clássicas novelas mexicanas importadas pelo SBT para a TV aberta nos anos 1980.
"Em 1982, Silvio Santos também causou um furor ao abrir as portas do SBT para as novelas mexicanas com a clássica "Os Ricos Também Choram". Guardadas as enormes diferenças de produção e consumo, de certo modo há uma equivalência no que está ocorrendo hoje. Certamente é impossível comparar a reverberação atual com as importações do SBT, que sofriam até grande preconceito por parte de profissionais da área. Mas fato é que Silvio Santos se impôs na mídia, como de costume, com mais um 'golpe de mestre'", ressalta Mauro.