"Salguei a Santa Ceia", "Oxente, my God", "A culpa é da Rita", "Sou uma mulher de catiguria": esses e outros tantos bordões invadiram as casas dos brasileiros a partir da televisão. Respectivamente, eles pertencem às novelas "Amor à Vida" (2013), "A Indomada" (1997), "Avenida Brasil" (2012) e "Paraíso Tropical" (2007).
O sucesso dessas frases para além das telas está diretamente relacionado à cultura de consumo audiovisual do Brasil. Conforme lembra Manuela Bandeira de Melo, mestre em Comunicação e autora do livro "Telenovela, O Amor em Doses Diárias", essas produções foram responsáveis por parar os brasileiros em torno das TVs nas décadas passadas.
"Nos anos 1980, 1990 e início dos anos 2000, a sociedade brasileira parava para acompanhar o desenrolar da novela das oito. Os temas desenvolvidos nas tramas eram discutidos com paixão pelos brasileiros. Todos tinham os seus personagens favoritos, o seu casal favorito. As revistas, programas das tardes, tudo girava ao redor das histórias das telenovelas", aponta a pesquisadora.
Mauro Alencar, doutor em Teledramaturgia pela Universidade de São Paulo (USP) e autor de "A Hollywood Brasileira - Panorama da Telenovela no Brasil", também salienta a força da teledramaturgia no País como identidade cultural: "A telenovela atuava como uma tribuna social. Funcionava como ponto central de todos os acontecimentos sociais. Para além da trama ficcional, era como um verdadeiro agente socioeducador".
O cenário, porém, mudou de vez com a popularização e o aumento das plataformas de streamings, que oferecem produções audiovisuais para o assinante assistir conforme a sua disponibilidade e preferência por gênero temático. Além de filmes, eles dispõem de séries e, mais recentemente, novelas em seu catálogo. São destaques, neste segmento, a Netflix, Globoplay, Max, Prime Video, Disney e Apple TV.
"Com a chegada dos streamings, o público das telenovelas ficou mais separado por temas, faixas etárias e gostos. Diferente do que ocorria anteriormente, quando as opções eram apenas na TV aberta e toda a família via a mesma novela", pontua Manuela.
Larissa Martins, uma das criadoras do canal no YouTube "Coisas de TV", que faz críticas e análises sobre novelas desde 2018, avalia que os streamings não são os únicos culpados pelo esvaziamento da audiência das telenovelas. Ela afirma que a perda de interesse do público é também consequência de um problema de qualidade das produções que estão atualmente disponíveis.
A produtora de conteúdo relembra o caso de "Pantanal" (2022) e "Vai na Fé" (2023), duas novelas recentes que foram grandes sucessos de audiência e trouxeram grandes públicos para o "ao vivo". "Uma boa produção consegue trazer o público de volta para TV ou streaming, se for o caso", argumenta Larissa.
Fato a ser considerado é que um sucesso de audiência em 2024 na TV é quantitativamente bem menor que no início da década de 2010. Examinando os pontos de audiência de São Paulo na TV Globo, os maiores números neste ano ficam na margem de 30 pontos em grandes produções.
A atual novela das nove, "Renascer" tem média de 26 pontos em audiência. Num comparativo com outras produções, há o sucesso "Avenida Brasil" (2012), que alcançava a média de 50 pontos e, no episódio final, a trama de João Emanuel Carneiro, se encerrou com 55 pontos. Outro exemplo é "Fina Estampa", produção de Aguinaldo Silva de 2011, que estreou em 41 pontos e teve picos de 44 ao longo da trama.
O caso de "Renascer", principal trama em exibição na Globo, é curioso porque a produção foi anunciada logo após o sucesso do remake de "Pantanal". Diferentemente da história de Juma, a atual trama não pegou o público da mesma maneira. Mesmo com impulsionamento da Globoplay, streaming da Globo, "Renascer" teve menos acessos que novelas turcas. Em abril deste ano, a produção "Hercai: Amor e Vingança" superou as visualizações da obra de Benedito Ruy Barbosa e se tornou um dos conteúdos mais assistidos da plataforma.
O debate se estende para as plataformas também quando produções brasileiras feitas para esses streamings precisam passar por "modelagens" para se encaixar e agradar novos públicos. Como exemplo prático, o próximo lançamento "Pedaço de Mim", que foi anunciado como a primeira novela brasileira da Netflix, mas logo o produto foi alterado para "série melodramática". Além disso, "Guerreiros do Sol", prevista para estrear em 2025 na Globoplay, também foi primeiramente anunciada como novela e, na divulgação do primeiro teaser, tornou-se série.
Para o ator Mateus Honori, que faz parte do elenco de "Guerreiros do Sol", a nomenclatura faz parte de uma estratégia de mercado: "Historicamente a novela tem um lugar já muito estabelecido no imaginário coletivo brasileiro. São aquelas histórias de outras pessoas, aquelas histórias alheias, aquelas histórias que querendo ou não aconteciam com a gente. Então eu acho que, na tentativa de fugir um pouco dessa estigmatização do termo 'novela', as produções estão se vendendo de uma forma diferente".
"Existe um preconceito com novelas, principalmente do público que consome muito streaming", completa Larissa Martins.
"A gente que gosta de novela sabe que é uma produção brasileira com muita qualidade, muito exportada lá fora, mas quem consome muita série tende a achar que novela é uma produção menor, que a novela não tem tanta qualidade", afirma a criadora de conteúdo.