Mais de 30 anos de memórias preenchem o imaginário coletivo de quem já se deparou com "La Femme Bateau", uma das principais obras do multiartista Sérvulo Esmeraldo. Criada em 1994, a estrutura de cerca de 400 kg é um dos trabalhos deixados pelo cearense para preencher a paisagem de Fortaleza.
Ao longo de três décadas, as lembranças sobre a escultura também são atravessadas pelo recorte de 2018, quando sofreu danos e caiu no mar da Praia de Iracema após ressaca marítima. Para recuperá-la, foi necessária uma operação de busca. Resgatada, passou seis anos longe de seu ponto de origem: a Ponte dos Ingleses.
De certa forma, todas essas memórias se aglutinaram na tarde da última segunda-feira, 24, quando "La Femme Bateau" retornou, enfim, à Ponte dos Ingleses. O serviço de restauro foi orientado pela Secretaria da Cultura de Fortaleza (Secultfor) e realizado pelo Instituto Sérvulo Esmeraldo. A benfeitoria custou R$ 90 mil.
O evento de reinstalação contou com a presença do prefeito de Fortaleza, José Sarto (PDT), profissionais da imprensa, fotógrafos e outras personalidades. A alegria era indisfarçável para Dodora Guimarães, pesquisadora, presidente do Instituto Sérvulo Esmeraldo e viúva do multiartista cearense. Sorrindo de orelha a orelha, ela não escondia a satisfação - e o alívio - por observar, enfim, o retorno de "La Femme Bateau" ao seu local de origem.
"Para mim, é uma alegria e é muito emocionante, porque lutamos, trabalhamos e investimos tanto para que isso pudesse acontecer… Vê-la chegando e sendo içada, retornando ao local para onde Sérvulo a projetou, é uma satisfação imensa. Finalmente a escultura vai cumprir sua missão de nos conduzir com 'segurança e fantasia, coragem e esperança', como dizia Sérvulo. Então, que ela traga tudo isso", destaca Dodora Guimarães.
O evento especial foi acompanhado de formas particulares por outros profissionais e admiradores. Do fotógrafo que subiu em uma jangada para registrar de perto o içamento ao professor que saiu do Crato apenas para ver de perto o retorno da escultura, as histórias relacionadas a "La Femme Bateau" demonstram a relevância da obra e de sua restituição.
De volta ao "aconchego"
O ângulo de visão do fotógrafo e arquiteto Marcos Pardana foi diferente dos demais. Os registros históricos de sua câmera foram feitos a bordo de uma jangada. Com o sol se pondo, ele conseguiu acompanhar ainda mais de perto o içamento e fazer fotos do evento - que, para ele, teve significado ainda mais especial.
Soube da data da reinstalação a partir do cineasta Tibico Brasil e da pesquisadora Dodora Guimarães. No dia do retorno do monumento, começou a acompanhar sua chegada à Praia do Mucuripe pela manhã, com o descarregamento do caminhão e posteriormente a transferência para a jangada que a levaria à Ponte dos Ingleses.
"Já na Ponte dos Ingleses, foi possível ver, ao longe no mar, a Femme Bateau se aproximando devagar. Parecia que era ela mesmo navegando, solitária, em direção ao seu lugar de aconchego", relata.
Antes, um contexto. Natural de Lisboa, em Portugal, Marcos Pardana logo se encantou com a "beleza daquele catavento inusitado" que encontrou quando chegou em Fortaleza há 22 anos. Para ele, era "uma peça carregada de magia que parecia ter surgido de um conto fantástico", mas só depois soube que se tratava de uma obra de Sérvulo Esmeraldo.
Com o passar dos anos, criou vínculo com "La Femme Bateau" e chegava perto da obra para tirar fotos. Assim, é de se imaginar como ficou triste quando a estrutura foi levada pelo mar: "Sempre que descia à Praia de Iracema após esse evento parecia que estava faltando algo, e estava mesmo! Foi nesse período que tatuei a 'Femme Bateau' em meu braço esquerdo. Ela não estava em seu lugar de aconchego, mas estava aqui, me acompanhando e protegendo minha jornada".
Assim, é possível compreender seu desejo de acompanhar a reinstalação. Tanto que quis "ir pelo mar" após ajuda de jangadeiros do Mucuripe.
"Foi um momento bonito e emocionante, o céu com aquele laranja escuro ou dourado do final do dia e a 'Femme Bateau', no fim, em casa e em todo o seu esplendor. A sensação foi de alegria, de alívio e de realização por ter podido acompanhar e registrar esse momento histórico", define.
Do Crato para Fortaleza
A volta de "La Femme Bateau" teve atenção especial de Fred Sidou, professor da área de Tridimensionalidade do Curso de Licenciatura em Artes Visuais da Universidade Regional do Cariri (Urca). O profissional saiu da cidade do Crato (a 538,53 km de distância de Fortaleza) para a Capital apenas para acompanhar o processo de reinstalação.
Por afinidade com o trabalho de escultura de Sérvulo Esmeraldo, se aproximou, nos últimos anos, do Instituto Sérvulo Esmeraldo, com interesse também no estudo de joias - "uma parcela da produção do conjunto da obra de Esmeraldo". Assim, era importante o acompanhamento por ser também estudioso de "La Femme Bateau".
Líder do grupo de pesquisa Jogo Invenção Arte (Joia), ele atua na produção tridimensional em arte, produzindo objetos de ourivesaria e sua inscrição na arte contemporânea. Além disso, é coordenador do projeto de extensão Artejoalheria Comunidade. Uma das versões de "La Femme Bateau" é em formato de joias.
"Como no caso dessa categoria de joias existe a importância de uma narrativa que acompanha o processo da obra, essa sequência de acontecimentos (o retorno da escultura) faz parte de uma grande narrativa que conta a história dessa 'La Famme Bateau', que pode ser uma gravura ou uma joia", explica.
"Além de ter uma permanência, a obra tem movimentos, é tudo muito harmônico, então é uma conjugação muito bem feita entre paisagem e objeto artístico", reflete.
O artista acrescenta: "A obra também está situada em um ponto de grande importância turística na cidade que está sendo reabilitado. Então, vem em boa hora essa recuperação tanto para continuar a valorizar o trabalho do Sérvulo como também para melhorar e valorizar o ambiente público".
A escultura e um documentário
A admiração por "La Femme Bateau" proporciona outros olhares para além da contemplação. O cineasta e fotógrafo Tibico Brasil fez questão de participar do momento para também registrar imagens históricas a serem utilizadas no documentário em produção sobre a escultura.
Tudo começou em 2018, quando a obra inicialmente se perdeu no mar: "Eu vim acompanhar as buscas. Passamos três ou quatro dias junto com o Corpo de Bombeiros tentando fazer o resgate. Nesse dia surgiu a vontade de fazer um documentário sobre 'La Femme Bateau' que a relacionasse com a Cidade e a referência que as pessoas têm de afeto com a obra".
"Tem muita gente com a imagem dela tatuada na pele. É uma obra que tem ligação muito interessante com a Cidade, que está se movendo e se transformando. Penso muito nessa visão que 'La Famme Bateau' tem na Cidade", complementa.
O documentário, então, entra em processo de finalização a partir de agora. Não há prazo definido para o lançamento da produção, mas Tibico Brasil espera que a obra audiovisual seja publicada até o final do ano.