Se encerrou neste domingo, 14, a 24ª Feira Nacional de Negócios do Artesanato (Fenearte), em Olinda, Pernambuco, considerada a maior feira de artesanato da América Latina. O evento, que dura 12 dias, é apenas um demonstrativo da potência cultural pernambucana em suas diversas linguagens artísticas. Tanto na arte manual, quanto na arquitetura, música e outros, o estado se mostra como um pilar cultural na região Nordeste do Brasil. E, para que essa força se perpetue por diversas gerações, são escolhidos os mestres da cultura, que têm como missão repassar seus conhecimentos e a arte para a posteridade.
O que os mais de 60 mestres do artesanato de Pernambuco têm em comum, além da paixão pelo artesanato, é o impacto que sua sobrevivência na arte teve desde a primeira experiência como artista na Fenearte. A feira, responsável por dar visibilidade popular aos seus trabalhos em números extraordinários, fortalece a cena desses artesãos no estado e a perpetuação de suas obras em diversos lares pelo Brasil.
Mestre Ivo Diodato
Ivo Diodato da Silva, nascido em 1964, no município de Tracunhaém, Zona da Mata Norte pernambucana, é mestre do artesanato de Pernambuco há 11 anos e já tem 50 anos de trajetória na arte, pois, desde os 10, trabalhava como ajudante no ateliê do falecido mestre Zezinho.
Sua produção é com barro e ele possui uma inspiração, uma característica singular entre os demais artesãos da região: suas obras são desproporcionais, com pés enormes e cabeças pequenas, semelhantes ao que Tarsila do Amaral quis transmitir com a antropofagia de "Abaporu".
"A arte em si é um processo terapêutico. Ela nos proporciona momentos que fazem a gente tornar visível aquilo que, muitas vezes, é seu. Você começa a trabalhar em uma forma e o público fica encantado com resultado de algo que estava na cabeça da gente, no que a gente pensa para executar tal peça. Porque cada peça tem uma história, cada peça tem a ver com o momento que a gente está vivendo ou já viveu. A arte nos proporciona viajar nesse tempo", explica o Mestre Ivo.
Em relação ao início de seu aprendizado na arte até sua participação pela 8ª vez na Fenearte, onde a entrevista aconteceu, o mestre examina: "A oportunidade não nasce de forma discriminatória, ela nasce para todo mundo. O diferencial é você enxergar o momento e abraçar. Foi o que fiz. Eu vi o momento, a oportunidade e abracei. Mesmo jovem, com 10 anos, mas foi ali que comecei a aprender, a ficar de pé diante do que a arte podia me proporcionar".
Mestre Luiz Antônio
Aos 89 anos, Luiz Antônio da Silva, o Mestre Luiz Antônio é um dos artistas "cartão-postal" do município de Caruaru, em Pernambuco. O começo de sua vida na arte também se deu por meio dos ensinamentos de outro mestre, no caso, Mestre Vitalino, que lhe ensinou técnicas e o inspirou a retratar em suas obras cenas e pessoas comuns do cotidiano.
Atualmente, Mestre Luiz Antônio é reconhecido nacionalmente pelo seu trabalho de artesanato com o barro, onde ele representa figuras do campo, como o matuto, as construções, as profissões e os animais da região. Ele ficou famoso, inclusive, por sua habilidade de retratar nas obras equipamentos como a maria fumaça, automóveis e motocicletas.
Ao abordar o Mestre Luiz no seu stand da 24ª Fenearte, ele logo declara o que parecia estar na ponta de sua língua: "Eu tenho 77 anos de arte. Sempre fiz meus trabalhos, colocando tudo que eu via na minha memória e depois criando. Sou patrimônio vivo de Caruaru e de Pernambuco, tenho vários trabalhos criativos, tenho concursos ganhos e estou feliz de estar aqui na Fenarte porque, antes de estar como mestre na feira, eu já vinha para cá como turista que vinha para conhecer".
"Aquilo que a pessoa faz com o seu dom é sempre feliz. Todos nós temos um dom e, quem trabalha por amor, sempre chega lá", orienta Mestre Luiz Antônio.
Mestre Dona Odete
Não há como falar de renda renascença no Brasil e não mencionar Odete Cavalcanti, a mestre de artesanato de Pernambuco conhecida como Dona Odete. Ela é uma das pioneiras dessa técnica com tecido, que chegou da Europa no Brasil ainda no período colonial.
Dona Odete nasceu em fevereiro de 1928, em Poção, município do Agreste Central pernambucano, região também conhecida como o berço da renda renascença no Brasil. Ela era a criança mais jovem da turma de Elza Medeiros, mulher responsável por repassar o conhecimento da técnica da renda que herdou de Maria Pastora, no convento de freiras de Olinda em 1930.
Ao longos dos anos, produzindo suas peças com renda renascença e repassando o conhecimento aprendido ainda na infância, Dona Odete se orgulha de sua trajetória. "Tinha época que eu ensinava e distribuía trabalho para mais de 40 pessoas, foram muitos anos assim. Quando todo mundo já sabia, eles iam procurando trabalho ou fazendo eles mesmos por conta própria e levando na Feira da Renascença as pecinhas que eles faziam todo sábado. Nessa época, eu pensei: 'Pronto, agora é tempo de eu casar", conta Odete em tom nostálgico.
Hoje, aos 96 anos, a mestre celebra sua participação ativa na identidade artística de Pernambuco e conta que, apesar da idade, não quer abandonar a renda renascença. Ela espera ainda que a sua arte prospere por muitas gerações de artesões.
Mestre Mano de Baé
Mano de Baé é o caçula entre os mestres do artesanato de Pernambuco e traz na identidade de sua obra uma mistura do legado de seu pai, Mestre Baé, e sua assinatura própria, que se aproxima da arquitetura moderna, com destaque para símbolos de sereias.
Diretamente do município de Tracunhanhém, região consagrada como "fábrica de artistas", Mestre Mano de Baé trabalha com barro e cerâmica com traços achatados nos topos, que são sua marca. Ele também é músico e faz criações tangendo versos de coco de roda, como demonstrou na 24ª Fenearte.
Sobre sua trajetória, o mestre conta: "Meu primeiro contato com o barro foi com meu pai. Eu nem imaginava que um dia estaria aqui, na Fenearte, um dia representando ele. Era só uma ajuda que eu dava a ele, um hobby. Só em 2014, eu resolvi voltar e me emancipar no artesanato. Eu deixei de fazer as peças que meu pai fazia, porque nunca ficaria igual e dei, em cima do traço que ele deixou para mim, a minha identidade, que é esse achatado". E finaliza: "Tenho como referência maior o pai e, depois do meu pai, o povo brasileiro e as mitologias da nossa gente".
Francisco Brennand
Localizado no bairro de Várzea, em Recife, está um dos principais pontos turísticos de Pernambuco: a Oficina Francisco Brennand, um conjunto arquitetônico monumental que expõe em um ateliê-museu as obras do artista Francisco Brennand. O espaço, que tem mais de 1500m², tem galerias com exposições variadas, esculturas ao ar livre, peças únicas, cerâmicas ornamentadas e fontes aquáticas.
Francisco de Paula Coimbra de Almeida Brennand nasceu em 1927 e ocupou o local em 1971, que antes eram ruínas de uma fábrica que fora de seu pai. O espaço virou um ateliê, onde ele passou a produzir a maioria de seus trabalhos artísticos, dando origem à Oficina Francisco Brennand.
O artista, que iniciou na arte trabalhando com pintura e cerâmica, também experimentou linguagens como a gravura, desenho, colagem e literatura. Para suas esculturas, Brennand usava ferro e bronze. Logo no começo da área coberta da oficina, há o Pátio das Esculturas, com grandes esculturas onde os visitantes costumam passar horas observando uma a uma. Os detalhes chamam a atenção: destaque para o caju, o rosto das mulheres, que é sempre virado para cima, as cerâmicas por toda a parte e os símbolos sexuais.
A arquitetura externa, sem dúvida, é a primeira impressão, é, provavelmente, a mais encantadora de toda a experiência da visita. Ao ar livre e com gramado verde ao redor, é possível ver um conjunto de obras arquitetônicas gigantes, com mural grandioso. Ao se aproximar do jardim de Brennand, é normal sentir-se apenas uma peça de tabuleiro diante da imensidão das obras que estão ao seu lado.
Entrando no ateliê de Brennand, a imersão continua, pois, em todos os ambientes, é possível ouvir Canto Gregoriano em volume ambiente - música ouvida pelo próprio artista enquanto produzia suas obras no ateliê. Inclusive, há, no local, uma grande mesa de madeira circular onde são apresentados diversos trabalhos dele em diferentes materiais, o que nos remete a um "escritório bagunçado".
Outro local de possível visitação é o forno de Brennand, onde eram assadas as cerâmicas do mestre. Essas peças, aliás, são comuns nas casas mais antigas de Recife, como explica um dos guias da oficina, interrompido por uma visitante exclamando "chupa porcelanato". A atitude da mulher reflete no que foi dito anteriormente por André Teixeira, presidente da Adepe, sobre o pernambucano valorizar como ninguém o artesanato de seu povo.
Em 2019, a Oficina de Francisco Brennand, que possui mais de 2.300 obras do artista, foi transformada em um instituto cultural sem fins lucrativos e vem realizando, com medidas sustentáveis, um esforço para modernização em suas instalações para receber todos os visitantes.
Oficina de Francisco Brennand
24ª Fenearte
Em 2024, o Pernambuco Centro de Convenções, em Olinda, recebeu a 24ª edição da Fenearte, que tem como tema "Sons do Criar — Artesanato que Toca a Gente". Ano passado, a feira registrou recordes de público, com cerca de 315 mil pessoas e impacto econômico de R$52 milhões, tendo ainda 97% de aprovação dos artesãos. Esses dados, além de indicadores na economia da região, apontam para o interesse dos pernambucanos em consumir a arte do estado.
"A gente se orgulha de dizer que a Fenearte é a maior feira de negócios do artesanato da América Latina. Os artesãos que aqui vêm para vender e eles vendem. Temos esse retorno deles de que o que eles vendem aqui garante a subsistência deles o ano todo. Isso gera um impacto para as famílias em todo um território, em toda a família daquele artesão", afirma Camila Bandeira, diretora-executiva da Fenearte.
Neste ano, a Agência de Desenvolvimento Econômico de Pernambuco (Adepe) recebeu o total de R$ 15 milhões do Governo de Pernambuco para a realização da Fenearte e a expectativa é superar os números de 2023, que apontam para R$52 milhões. Inclusive, o presidente da Adepe, André Teixeira, destaca que o faturamento real é além do número que se pode prever porque a grande maioria dos artesãos consegue vender suas obras nos primeiros dias de feiras e passa o período restante recebendo encomendas para o restante do ano.
"Essa feira aqui é também para a gente dar valor para tudo criado aqui dentro. Tem gente que paga milhares nas nossas peças porque são colecionadores, mas ainda tem também quem não quer dar R$30 ou R$40 numa peça de artesanato. Isso aqui sempre foi para criar público local e, graças a Deus, tem dado certo", aponta André.
Essa valorização da arte popular pernambucana é um dos pontos que ganham evidência quando o assunto é o sentimento de pertencimento pernambucano: "Pernambuco tem muito mais orgulho de ser pernambucano do que ser brasileiro no geral. O pertencimento de ser pernambucano é muito grande e isso está em todo mundo. A gente ama isso aqui e tem um porquê: o nosso artesanato, a nossa cultura é uma dessas respostas. Se você for analisar há 200 anos, vai entender porque a gente foi o primeiro estado a declarar independência, vai ver porque a gente foi criando um quê de pertencimento, que Pernambuco é um país", finaliza ele.
Alameda
No corredor de entrada da Fenearte, está a Alameda dos Mestres, onde estão localizados os 63 mestres do artesanato de Pernambuco. O espaço é amplo e dispõe, além de grandes obras, de ótimos contadores da história da arte pernambucana.