Falar sobre amor é inevitável. Nas conversas com as amigas, nas sessões de análise, nas reuniões de família e nos segredos que escrevemos em cadernos que não devem ser compartilhados: ele quase sempre está presente, mesmo quando queremos nos esquivar. Como não abordar o sentimento inerente ao ser humano e regente, basicamente, de todas as ações - até aquelas que não são conscientes? É o que sente a escritora Lorena Portela, autora de "Primeiro Eu Tive Que Morrer" (2021) e "O Amor e Sua Fome", lançado em julho pela editora Todavia.
O tema não é, propositalmente, o norte das produções literárias da cearense, mas é fonte primária de inspiração e segue guiando os romances escritos. A obra em lançamento traz o retrato da emoção por meio da experiência de Dora, jovem de Rio do Miradouro, uma cidade no interior do Ceará. Com a perda precoce da mãe e uma convivência quase inexistente com o pai, ela encontra o sentido do amor na relação com a prima Esmê.
Os primeiros capítulos mostram a construção de um fascínio mútuo durante a infância, esse período de descoberta de si e do outro. As duas poderiam ser definidas como opostos, mas se entrelaçam nas molecagens pelas ruas e escapadas até Fortaleza. Em paralelo com Joana, personagem complementar neste elo, elas adentram a juventude com a liberdade que poucas relações dispõem.
A adolescência traz o frescor das aventuras e experimento da sexualidade com a chegada de Jaime, rapaz que desperta o interesse de Esmê e aos poucos se envolve com a outra prima. Juntos, os três delimitam os próprios ideais sem uma cartilha ou um sábio como um guia. É, como impõe uma das passagens, a “invenção de outro planeta”: “dando novos nomes às plantas, repovoando as terras vazias, os vazios da gente, criando poderes e vencendo guerras”.
O triângulo amoroso, inclusive, não corre à boca miúda e nem abala as fofocas de cidade pequena. São pessoas que beijam garotos e garotas, tão ordinário quanto os casamentos, traições e gravidezes. “Eu não queria que o trisal fosse uma questão, eu queria que fosse livre, assim como a Joana, enquanto uma mulher trans, é e deve ser livre. Eu queria escrever esses amores possíveis, que existem”, desenvolve Lorena.
A narrativa escolhe enfocar nos dilemas e complexidades de Dora, essa protagonista que se mostra tão real quanto qualquer leitora. A escrita da trama, desenvolvida por meio de um curso com a escritora Socorro Acioli - um auxílio para “a vida”, como pontua Lorena -, transpõe os fluxos de pensamentos da personagem e funciona como uma lupa para as contradições internas.
Assim como em “Primeiro Eu Tive Que Morrer”, a autora abocanha reflexões caras às mulheres: o papel materno na construção da identidade, a percepção do feminino nos relacionamentos e a visão de julgamentos construídos por uma sociedade patriarcal, por exemplo. Você pode nunca ter passado com alguma situação parecida com as de Dora, que também envolvem crimes e lutos, mas se identifica com as ponderações - ou a falta delas.
Novamente, Lorena escreve em cenários familiares. Nascida em Mombaça, mas trazida à Capital com apenas três meses, ela remonta as experiências na casa da avó em Flecheiras para habituar essa paisagem fictícia. As lembranças do litoral onde cresceu transportam a TV da praça, o sino da igreja e o vocabulário “cearensês”. “Grande parte da minha história vem desse período, me ajudou a desurbanizar. Me sinto mais cearense do que nunca”, compartilha a escritora, que vive em Londres desde 2019.
O romance também traz uma atmosfera de suspense e reviravoltas que não deixam que o livro escape das mãos à espera do que há por vir. “Eu quis experimentar, quis que esse (livro) fosse completamente diferente do primeiro, quis que eles se separassem. Não queria que relacionassem uma pessoa a outra. A narrativa combina com a protagonista, muito dessa imaginação é da parte dela”, contesta.
É por Dora, portanto, que relembramos a dimensão do amor. É grandioso, “bicho que vai crescendo de tamanho” de forma desordenada, e inventivo; mas é proporcionalmente travesso e perigoso. Há quem se lambuze e há quem lamba as feridas, vire de ponta cabeça e o procure desenfreadamente.
"O amor e sua fome"