Daiane Souza frequenta o Festival Internacional de Teatro de São José do Rio Preto (FIT Rio Preto) há mais de 20 anos. As memórias se acumulam entre espetáculos vistos e contribuições dadas ao evento — afinal, ela também se oferece para trabalhar nele, tamanho foi o carinho desenvolvido.
A relação se tornou tão intrínseca que resultou até em um pedido de demissão: "Pedi que me dessem em julho as férias que estavam vencidas há seis meses, pois queria estar trabalhando no festival, mas eles não deram. Então, na minha loucura pelo teatro, não pensei duas vezes: pedi as contas e fui me dedicar ao FIT".
O relato demonstra um vínculo que se estende a tantas outras pessoas em Rio Preto, a 442 km da capital São Paulo. O festival de teatro mobiliza a cidade há 55 anos. O FIT é um dos festivais que conseguiram engajar cidades em torno das artes cênicas.
No Ceará, há casos como o Festival de Teatro de Acopiara (Fetac) e o Festival Nordestino de Teatro de Guaramiranga (FNT). Mesmo com desafios, eles prevalecem com o objetivo maior de mostrar que o teatro tem uma morada. O que fazer para que mais municípios tenham essa adesão?
No caso do FIT é preciso voltar cinco décadas para entender essa consolidação. Em 1969, em plena ditadura, nomes como Dinorath do Valle, José Eduardo Vendramini e Humberto Sinibaldi Neto se juntaram a intelectuais locais e ao poder municipal para a primeira edição.
Durante longo tempo, a programação foi composta por amadores de diversas partes do Brasil. Os anos se passaram, houve interrupções, o festival se internacionalizou, passou por pandemia e segue de pé. Em julho, alcançou a marca de 55 anos. O Vida&Arte acompanhou a edição a convite do evento.
O sucesso do festival se dá por várias frentes, mas incluem esforços da sociedade civil, da classe artística, empresas e do poder público para que continue com fôlego.
"Acho que Rio Preto gerou essa força no teatro principalmente pela continuidade que conseguiu dar. Para um festival se estabelecer dessa maneira em uma cidade do interior, ele passa por várias questões — principalmente políticas — para se instituir dessa maneira. Depois que se institui, se torna patrimônio da cidade. Ninguém mais tira. Entra governo e sai governo, o festival é maior que qualquer um".
A declaração de Jorge Vermelho (ator, diretor e coordenador executivo do FIT) demonstra a relevância do festival para Rio Preto. Em sua análise, a defesa do evento pelo público é a prova "de como uma ação de Cultura pode ser tão definidora na identidade de um povo".
Para Vermelho, ao longo das edições o FIT assumiu cada vez mais seu posto como "território de resistência e de denúncia", virando um espaço de experimentação e reflexões.
"O FIT Rio Preto não é um festival que faz programação pensando só na qualidade, mas também no que é risco. O risco do que ainda não temos certeza. Esse território nos interessa muito, e tudo isso se somando em uma cidade do interior com histórico político conservador. Tudo isso ganha outra potência", defende.
Há, porém, outro aspecto que se sobressai: um festival "precisa ter alma" para se estabelecer, com pessoas do teatro trabalhando em várias funções e entendendo a importância dele. No FIT Rio Preto, são vários os que "vestem a camisa": motoristas, profissionais da comunicação, da recepção do hotel, técnicos, artistas e, principalmente, o público.
Mesmo há anos consolidado na cidade, o FIT, entretanto, segue a enfrentar desafios - como ocorre em outros festivais. Segundo Jorge Vermelho, eles estão relacionados a "como manter uma programação com uma estrutura cada vez mais cara" diante de um "mercado competitivo" na cidade, pois existem outros eventos que disputam a atenção do público, além da mobilização para o encontro presencial no mundo das telas eletrônicas.
Diante dessa trajetória, o que outras cidades devem fazer para também abraçar o teatro? Para Jorge Vermelho, a primeira coisa é "ligar a parabólica" para saber o que a linguagem está dizendo.
Outra dica é envolver completamente as pessoas que fazem teatro na cidade, para não se tornar uma realização estritamente administrativa, como ação de governo: é preciso ser uma ação da cidade.
O FIT consegue atrair públicos que se tornam "fiéis" ao evento com o passar das edições. A administradora de empresa Isabel Suzuko Dias, 79, virou frequentadora assídua do festival desde que o conheceu, em 2001.
Ela aponta como o FIT contribui para a formação de plateia: "Sem público não há teatro. Levar peças para vários locais e gratuitamente incentiva e desperta a curiosidade do povo, ainda mais sendo peças com conteúdo inteligente, valorizando saberes e cultura, não mistificando".
Quem apresenta pensamento semelhante é Daiane Souza, 44, cuja história com o FIT foi introduzida na abertura desta matéria. Ela não esteve no festival somente trabalhando na bilheteria ou no receptivo, mas também apresentando espetáculos com as companhias Grupo Teatral Rio-Pretense (GTR) e Beradeiro.
"É um aprendizado contínuo, pois além de trabalhar, assisto a algumas peças, participo de debates e leio as opiniões dos críticos. É um aprendizado bastante profundo de teatro", garante.
Investimentos e parcerias
Para um festival se manter vivo por 55 anos, a afeição do público a ele não é suficiente. A magnitude de um evento como o FIT se dá pela sua relevância cultural e histórica, sim, mas é preciso investimento e compreensão de seu valor por diferentes esferas. O poder público se insere nessa equação.
Prefeito de Rio Preto, Edinho Araújo ressalta como o evento "mobiliza a comunidade e a classe artística local". Mas, para além do festival, quais movimentos são feitos para disseminar o teatro em Rio Preto?
Segundo o prefeito, a cidade possui Núcleos de Artes e Cultura que oferecem quase três mil vagas com aulas gratuitas para diferentes linguagens, entre elas o teatro. Além disso, a cidade conta com um fomento municipal cultural que se tornou lei municipal: a Lei Nelson Seixas.
"Todos os nossos os festivais e ações são pensados para levar o teatro não só aos palcos usuais, mas também às ruas e praças de toda a cidade, atendendo as 10 regiões do município", explica.
Como estratégia para manutenção de edições pulsantes do FIT, o gestor ressalta a importância de parcerias, como a do Sesc SP. A ação compartilhada começou em 2003. Assim, Sesc e prefeitura são parceiros co-realizadores do festival. Mas, afinal, quanto custa tudo isso?
"Considerando cachês artísticos, hospedagem, alimentação, locação de equipamentos e estruturas, divulgação e todos os demais custos envolvidos, nesta edição de 2024 o Sesc investiu aproximadamente R$ 1,5 milhão, valor equivalente ao investido pela Prefeitura de São José do Rio Preto", indica Thiago Freire, gerente do Sesc Rio Preto.
O investimento não é à toa e corresponde à importância do FIT para Rio Preto: "É uma política pública consolidada. Tem, há décadas, um impacto significativo no território. Na formação de plateias para o teatro, na formação de artistas e produtores, nas chamadas economias criativas em geral. Tem um impacto importante no pertencimento, no uso e na ocupação dos espaços públicos, ruas, praças, teatros".
Festival de Guaramiranga
Em 1993, foi entoado pela primeira vez o bordão "Boa noite, Guaramiranga. Boa noite, Nordeste". A frase anuncia o Festival Nordestino de Teatro de Guaramiranga (FNT), promovido na cidade distante 105,76 km de Fortaleza. O evento é realizado pela Associação dos Amigos da Arte de Guaramiranga (Agua).
O teatro de Guaramiranga serviu para a inspiração do FNT. Na época, o município "procurava criar um novo caminho de crescimento econômico com desenvolvimento social sustentado pelos valores presentes em suas vocações culturais mais fortes", alega Nilde Ferreira, coordenadora geral do FNT.
Em 2024, o FNT completa 30 edições. A população comparece em peso para assistir aos espetáculos. Gratuito, o FNT engaja os cidadãos, que também participam do planejamento do evento com o "conselho da comunidade".
Nilde demonstra os impactos do festival na cidade: "É gerado um fluxo turístico interessado em acompanhar a programação do festival, o que gera movimentação em pousadas, restaurantes e outros setores de alimentos e bebidas no comércio geral. Também tem o fato de o festival ter seus investimentos diretos por meio dos recursos que aplica para realizar a programação, além da ocupação de postos de trabalho".
Há, porém, desafios: "Os desafios são muito relacionados a recursos disponíveis para realizar uma programação cultural e tecnicamente complexa e a estrutura cultural da cidade que não está se qualificando para atender às necessidades de programações culturais como o FNT".
Festival de Acopiara
Quando o Festival de Teatro de Acopiara (Fetac) nasceu, a cidade distante 350 km de Fortaleza estava em um contexto no qual "não oferecia muitas oportunidades culturais para a juventude e a população".
A fala é de Dário de Sousa, um dos idealizadores do Fetac. Em maio, o festival voltou a ser realizado após cinco anos e chegou à 28ª edição com grupos de seis cidades cearenses.
Hoje, o evento faz parte do patrimônio histórico-cultural de Acopiara e é apoiado pela Secretaria da Cultura do Ceará (Secult-CE) com recursos da Lei Paulo Gustavo.
Quando iniciou, o festival tinha como principal objetivo "chamar a atenção da população e da região" para o fato de que em Acopiara haviam "jovens que faziam teatro e outros que queriam fazer". Além disso, havia o interesse de se tornar um polo de atenção para o desenvolvimento do teatro feito por grupos do Interior do Ceará.
O projeto foi bem-sucedido e logo nas primeiras mostras foi possível mobilizar a cidade. Dessa forma, é possível notar que a comunidade local abraça o Fetac, independentemente de faixa etária.
Segundo Dário, as pessoas param para ver o teatro de rua e em outros espaços alternativos, que não sejam só o palco principal do Centro Social. "O povo vai ao teatro no Fetac com comportamento de quem é o dono da festa, porque, desde que ele nasceu, a população cuida dessa cria. Isso é ótimo", analisa.
O festival também movimenta Acopiara na economia, a partir de atrativos em hospedagens, alimentação, transporte, bares, restaurantes e também vendedores ambulantes, como pipoqueiros. "São oito dias de experiências, trocas, convívios, recepção. O Fetac dialoga com as artes plásticas e a música, não só teatro. A cidade também tem um lucro real em cima de cada edição", compartilha.
Diante disso, quais são os principais legados do Fetac para Acopiara? O idealizador aponta: "Acopiara pode conhecer espetáculos de vários lugares. Temos, em média, 25 peças a cada festival. Além do sentimento de pertencimento ao Fetac, o evento em si provoca a população a pensar o mundo de maneira diferente a partir das apresentações".
O que falta para Fortaleza?
Fortaleza não sofre com falta de festivais de teatro. Há exemplos como o Festival de Teatro Popular de Fortaleza, o Teatro Transcendental e o Festival de Teatro de Fortaleza. Entretanto, as incógnitas se acumulam quanto aos motivos que levam a Capital a não ser tomada intensamente em questão de público e investimento para a linguagem.
O que falta, então, para a quarta cidade mais populosa do Brasil também ser vista como um local onde o teatro é abraçado em sua plenitude? Para o ator Alysson Lemos, da companhia As Dez Graças, um dos problemas é a raridade de se conseguir "rodar" com trabalhos por mais tempo e montar uma temporada contínua.
Em sua visão, é importante que haja "política pública efetiva que entenda a importância das artes cênicas para a Cidade". Ele apresentou no FIT, com Igor Cândido, a peça "Grand Finale". Cândido acrescenta a necessidade do fortalecimento de mostras, festivais e pontos de cultura, exaltando espaços que não sejam apenas físicos.
"Às vezes, a cabeça do gestor público é muito investir em lugar turístico, sendo que tem uma cena gigante puxando e é preciso fortalecimento, porque existe público para ver", enfatiza.
"O FIT é o que é hoje porque aposta na continuidade. No Ceará, temos uma cultura muito predatória, as coisas surgem lindamente e aí quando passam dois ou três anos já acabaram. Ao invés de valorizar o que se tem, criam-se mais", caracteriza Alysson Lemos.
Um dos reflexos da insuficiência de formação de plateia em Fortaleza está em aspecto compartilhado pela diretora e dramaturga Andreia Pires, que esteve no FIT com a Inquieta Cia para a apresentação do espetáculo "Tchau, Amor": na capital cearense, é difícil conseguir firmar temporadas de encenação.
"Enquanto companhia, nunca conseguimos fazer uma temporada que desse para o nosso trabalho um lugar de profissão. Quem é ator e atriz e está na cena sabe: é só fazendo que se cresce e que se compreende. A sala de ensaio não dá isso para nós. Precisamos do público para olhar e entender que aquela pessoa está conosco", avalia.
O ator Gyl Giffony (Inquieta Cia), destaca a qualidade da cena: "Temos que entender que há uma cena teatral muito forte espalhada na Cidade. Se você conversar com qualquer pessoa que tem uma percepção ampliada sobre o teatro no Brasil, ela dirá como a cena cearense é interessante, porque é forte em várias vertentes, como teatro de rua, de palco ou para crianças".
FIT Rio Preto em números
Em 2024, foram 137 atividades, entre espetáculos, ações formativas e outras atrações artísticas espalhadas por 20 locais, entre ruas e teatros de Rio Preto. Mais de 40 mil pessoas estiveram no evento, que mobilizou também 450 artistas, produtores e técnicos e mais de 340 trabalhadores. Dos 37 espetáculos, dois foram cearenses e 18 foram gratuitos. Todas as regiões do País estiveram contempladas, bem como cinco países apresentaram peças. Ao longo da história, o FIT teve cerca de um milhão de espectadores e mais de 1.300 espetáculos exibidos