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Memória: Devia ter assistido mais DVD
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Memória: Devia ter assistido mais DVD

Pensando com amigos sobre filmes que marcaram nossas infâncias, me pego maravilhado sobre como as mídias analógicas desempenharam um papel tão grande
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Se Minha Cama Voasse é um fime lançado pela Disney em 1971, baseado nos livros da autora britânica Mary Norton (Foto: Reprodução/ Walt Disney Productions)
Foto: Reprodução/ Walt Disney Productions Se Minha Cama Voasse é um fime lançado pela Disney em 1971, baseado nos livros da autora britânica Mary Norton

Minha geração de jovens adultos pode ser, talvez, a última a ver filmes "porque era o DVD que a gente tinha em casa". Ao almoçar com um grupo de seis pessoas noutro dia, uma amiga nos indaga sobre "filmes que marcaram a infância". Sem saber, ela abre as comportas para uma conversa que se estende para além do almoço e sobre a qual ainda me pego pensando uma semana depois.

Em resposta à tentativa de puxar papo, as escolhas óbvias aparecem — filmes da Pixar, de princesas e alguns clássicos nacionais. Mas o fascinante para mim foi perceber como todos tínhamos algum título só nosso, derivado de "foi um CD que meu pai trouxe do Centro", "era uma fita VHS lá de casa" ou "assistia sempre com minhas primas na casa da minha avó".

Giovana Feitosa, amiga e membro da equipe de vídeos das mídias d'O POVO, diz que assistia "De Repente 30" (2004) repetidamente por horas. Diz também que ela e sua irmã se tornaram vidradas na franquia de "Ela Dança, Eu Danço", e que não tardava para que seu pai aparecesse em casa com o mais recente DVD após o novo filme ser lançado.

Kleber Carvalho, que escreve para a editoria de Cidades n'O POVO, lembra feliz da animação "Putz, a coisa tá feia" (2006), que, embora eu nunca tenha assistido, remete ao amigo um sorriso por tempos que não voltam. Para ele, sua maior preciosidade era o DVD "Carros" (2006), que me diz sem hesitação ter visto mais de 50 vezes na infância. Não tenho dificuldades em acreditar.

Para mim, o DVD era "Se Minha Cama Voasse" (1971). O filme da Disney, um live-action com traços charmosos de animação — estilo que lembra "Mary Poppins" (1964) —, é a história de Eglantine Price, uma aluna de bruxaria por correspondência. Ela se vê abrigando três crianças dos bombardeios em grandes cidades do Reino Unido durante a Segunda Guerra Mundial, período conhecido como Blitz. A premissa remete também a histórias mais aclamadas pelo tempo, como "As Crônicas de Nárnia" (2005), que se inspira no livro "O Leão, a Feiticeira e o Guarda-Roupa", de 1950.

Entre os colegas sentados à mesa, somente uma já tinha ouvido falar dessa que foi uma das produções mais significativas de minha infância, e nenhum deles havia assistido. Mas não acho estranho: afinal, esse era o meu DVD.

Embora esteja no streaming, a lógica das plataformas não é de recomendar produções antigas e sem grande destaque massivo. Lamento, já que dificilmente outras crianças vão viver vidradas a busca pelo "feitiço para vencer a guerra", com seus olhos fixos nos efeitos de uma animação saudosa, além das envolventes músicas com dublagem excepcional.

Claro, o filme ainda é visto uma vez ou outra. É uma lógica da teoria da "cauda longa", de Chris Anderson, que explica como o mercado de massa passa a ser dominado por nichos. Nos streamings, isso significa que enquanto as grandes produções e lançamentos recentes vão continuar representando a maioria da audiência, todo o catálogo vai ser do interesse de algum nicho, que o assiste esporadicamente.

Eu entendo isso. E ainda assim, lamento que a maior parte do público (eu incluso) vá vagar morosamente os catálogos de milhares de títulos, se queixando que "não tem nada de novo para assistir". Enquanto isso, a mesma audiência rejeita clássicos que alguém, em algum lugar, verdadeiramente ama — e, quem sabe, talvez eu até amasse também.

Meu pai, cansado de assistir filmes hollywoodianos, agora só quer saber de ver filmes sul americanos e comédias europeias. Ao me ouvir comentar sobre este ensaio, me lembra contente dos indianos "Assassinato às Cegas" (2018) e "Toilet: Ek Prem Katha" (2017), além do mexicano "A Ditadura Perfeita" (2014) e o argentino "As Nove Rainhas" (2000). Claro, as possibilidades do streaming são diversas, mas o público médio vai sempre ser levado a consumir o mesmo produto.

Não estou aqui para falar contra as plataformas e defender o retorno ao monopólio das mídias analógicas. Afinal, minha geração também era refém da "Sessão da Tarde" para ver qualquer filme além daqueles DVDs disponíveis em casa. Nesses casos, as diferenças sociais sempre vão pesar para quem tem menos.

Claro, existe uma tendência de desejar o analógico como algo antropológico. Penso que, no último ano, metade dos meus amigos parece ter passado a comprar vitrolas e discos de vinil. Ainda assim, não sei de nenhum que os adotou como alternativa completa aos streamings de música.

Por fim, há algo terapêutico em rever o mesmo filme uma vez mais. O professor e amigo Ricardo Jorge, que já editou as páginas do Vida&Arte, me dizia sobre como a certeza de saber o final é importante para crianças, por exemplo. Diante da incerteza sobre o mundo e as coisas da vida, rever o mesmo filme acalenta e acalma, demonstra que nem tudo é imprevisível.

Não só crianças, mas rever algo com a certeza do final é uma forma de controle da ansiedade. É reconfortante saber como algo acaba e que sempre vai acabar da mesma forma. Eu, que revi aos episódios de "Gilmore Girls" (2000 – 2007) tantas vezes no streaming, mas encontrei pouca alegria no revival de 2016, sei bem.

Ao pensar sobre a última vez que vi meu filme favorito de uma infância que parece distante, me vejo tomado por um sentimento indigesto de ter crescido rápido demais — que não acompanha nada bem a sobrecoxa de frango. 

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