"Uma coisa era bela e imutável: a paisagem. Ela está lá. Ainda ontem eu a vi em sonho". A arte cosmopolita de Sérvulo Esmeraldo deixou marcas em diferentes cidades, indo de São Paulo (SP) a Paris, na França, onde chegou a estudar. Lendo a frase acima, porém, é fácil identificar a qual local ele se refere: Crato.
As lembranças do escultor, gravador, ilustrador e pintor cearense demonstram o encantamento do artista pela paisagem que estava à sua frente durante a vivência no sítio Bebida Nova, antiga casa grande de um engenho de rapadura da família e parte importante onde viveu sua infância e início de juventude.
Hoje tombada como patrimônio histórico e cultural do Ceará, a casa abrigou o primeiro ateliê de Sérvulo Esmeraldo. A "bela e imutável" paisagem da Chapada do Araripe foi o primeiro contato do cearense com a luz, as linhas, sombras e movimentos que influenciaram sua carreira artística posteriormente.
Era o Crato, pois, sua terra amada, onde fez tanto sua primeira exposição individual em 1951 quanto sua "exposição dos sonhos" - "A Linha, A Luz, O Crato" - em 2016, considerada o marco zero das comemorações dos seus 88 anos. Em 2024, ano em que completaria 95 anos, Sérvulo Esmeraldo é homenageado com a maior mostra possível.
No próximo sábado, 24, o Centro Cultural do Cariri Sérvulo Esmeraldo, no Crato, inaugura a exposição "Esse é Sérvulo Esmeraldo", que reúne conjunto relevante da trajetória do artista com destaque para seu período cearense, quando retorna ao Brasil dedicado a se dedicar à escultura e à defesa da arte pública.
Vista como um tributo ao Crato, segundo a curadora, Dodora Guimarães, a mostra contempla xilogravuras, gravuras em metal, litogravura e serigrafias, obras das décadas de 1950 a 1980. Há também pinturas e esculturas no catálogo da exposição, além de trabalhos feitos no plano bidimensional e tridimensional. Ao todo, 62 trabalhos compõem a iniciativa.
"É uma exposição muito especial e eu diria que é a mais importante, porque é para o Crato e porque é sabido o amor que Sérvulo Esmeraldo tinha pela região. Hoje, me encanta muito como a cidade e o Cariri são polos de arte e cultura muito interessantes. Geralmente pensamos em cultura tradicional popular, mas vou além: há uma efervescência da arte contemporânea", destaca Dodora Guimarães, também viúva do cearense e presidente do Instituto Sérvulo Esmeraldo.
Ela cita como exemplo a exposição "Cariri Contemporâneo", realizada em Sobral em 2023. A mostra reuniu artistas e coletivos de diferentes gerações, linguagens e tecnologias das artes plásticas e visuais. Segundo Dodora Guimarães, a nova exposição de Sérvulo tem o desejo de "colaborar para a produção contemporânea".
"O interesse não é somente apresentar a obra do Sérvulo para seus contemporâneos, mas colaborar para a produção da atualidade a partir desta mostra. É esse o sentimento que coloco na exposição", define. Os visitantes podem conferir na mostra trabalhos em xilogravura, metal, serigrafia, esculturas e outras vertentes da vastidão artística de Sérvulo Esmeraldo.
Considerado o "mais substancial da exposição", o núcleo das esculturas e relevos reúne obras de ao menos três etapas consideráveis da produção tridimensional de Sérvulo Esmeraldo: a série de Planos e Volumes Virtuais (1980-1981), a dos Sólidos Geométricos (1982-1990) e a série Teoremas (2001-2015). Elas ocupam o átrio e a Galeria 3.
Uma das obras presentes é a "Integral Indefinida" (2002), da série "Teoremas", que se assemelha a uma função matemática e remete a uma visão da Chapada do Araripe que tinha em sua infância. "A mostra tem referências que são sinais de ligação do Sérvulo com a sua cidade, em que o povo se reconhece nas obras", exclama.
A inauguração da mostra é marcada também pela realização da mesa "Sérvulo Esmeraldo e o Laboratório do Mundo", com Dodora Guimarães, Regina Teixeira de Barros e Aracy Amaral. O objetivo é contemplar a trajetória do cearense e as interferências do Crato em seu legado artístico.
O nome da mesa corresponde ao título de um texto escrito por Regina Teixeira de Barros, curadora de Acervo do Museu de Arte de São Paulo Assis Chateaubriand (MASP) e Doutora em Estética e História da Arte pela USP. No texto, ela aborda a vivência de Esmeraldo no Cariri e como isso tem reflexo direto em seus trabalhos "mais únicos", em que a "natureza e os fenômenos físicos intervêm nas obras".
Há também os trabalhos com presença de leis da física, da gravidade, com ímãs e tudo mais que tem relação com sua experiência de infância no Crato. "Vem daí a ideia de laboratório do mundo. São as pesquisas que ele fazia ainda como criança, o rio que passava, as pessoas que iam no engenho, e ele foi se aventurando por esse mundo da física e da química. É um pouco do laboratório que o Crato representou na vida dele", revela.
É possível destacar com facilidade, então, como a vivência do Sérvulo jovem no Crato foi importante para o futuro artístico dele: "Essa vivência física, do menino solto na natureza, experimentando esses fenômenos naturais, se reflete na obra madura dele de uma forma que, para mim, ainda é muito pouco falada. A série 'Os Excitáveis' é genial, e acho que se não fosse a vivência do Crato essas obras teriam outro percurso".
Para Regina, a obra de Sérvulo merece mais atenção. Em sua análise, ele não teve a mesma visibilidade que outros artistas de sua geração tiveram, como Lygia Clark e Hélio Oiticica, e um dos motivos foi possivelmente o fato de ele ter trilhado parte de sua carreira fora do Brasil.
"O trabalho do Sérvulo se integra e é muito coeso com trabalhos mais conhecidos, respeitados e divulgados de uma geração de artistas a qual ele pertencia e que, pelo fato de estar morando fora do País, conceitualmente não foi visto sob essa perspectiva. Acho que ele ainda tem muito espaço para ser pensado e integrado com outros artistas de suma importância já reconhecidos internacionalmente", compreende.
No diálogo sobre a obra de Sérvulo Esmeraldo também estará a crítica de arte, curadora, historiadora de arte e jornalista Aracy Amaral. Ela foi diretora da Pinacoteca de São Paulo e do Museu de Arte Contemporânea da Universidade de São Paulo, além de ter organizado o livro "Sérvulo Esmeraldo".
Ela aponta a exposição como "uma bela homenagem" ao cearense, visto que o artista tinha "grande devoção ao Crato". A primeira vez na qual a historiadora esteve na cidade foi com a presença de Esmeraldo, e observou desde o primeiro momento "o apego pelo lugar onde nascera", o que considera "muito justo e procedente".
Aracy Amaral explica que Sérvulo saiu "figurativo" do Ceará, passando por São Paulo e, posteriormente, Paris. Na capital francesa, "ele se encontrou em um embate com outras tendências e com um meio latino-americano muito efervescente". Pouco a pouco, sua obra passou pelo expressionismo e depois pela abstração geométrica que "contagiaria" seu trabalho até o fim da vida.
"Quando ele volta para o Ceará, essa abstração se caracteriza por uma preocupação com a luz, com a geometria, mas de forma muito vinculada com o calor que sente na presença do sol e da luz, o que vai influenciar muito suas obras tridimensionais. Ele sai do Brasil como um desenhista e gravador e regressa como um escultor", analisa.
Mesmo com sua experiência cosmopolita, é possível dizer que Sérvulo sempre carregou consigo a identidade de sua origem? Para Aracy Amaral, sim, principalmente em seu retorno ao Ceará, quando volta a se encontrar com "a luminosidade e o calor humano" cearenses.
"É um espaço onde viveu não apenas a infância, mas que retorna sempre em suas recordações, assim como a sensação de luz e preocupação cinética que caracterizam bastante sua obra", acrescenta.
Quais são os destaques do trabalho do artista? Aracy Amaral descreve: "O Sérvulo era uma pessoa muito reflexiva. Cuidava de detalhes com muito empenho. Amava a matemática e na obra dele ela vinha de uma maneira muito forte. Havia preocupação com a luz, e isso se torna uma vertente muito intensa, sobretudo no retorno dele ao Ceará, quando volta para viver no Brasil. A matemática e a reflexão, porém, são marcas registradas da obra de Sérvulo Esmeraldo".
Realizada no ano em que o artista completaria 95 anos, a exposição visa solidificar na cidade o seu legado, como afirma Dodora Guimarães: "É para manter vivo o Sérvulo Esmeraldo no Crato, para lembrar ao município que ele teve um grande artista e que ele está vivo através de sua obra".
"Sérvulo e o Crato são um. Ele volta sempre, porque nunca saiu de lá". Ao falar sobre a relação de Sérvulo Esmeraldo com sua cidade de origem, o professor, escritor e jornalista cearense Gilmar de Carvalho contextualiza como essa se tornou uma conexão umbilical ao artista.
Como afirmou no livro catálogo da exposição "A Linha, A Luz, O Crato", o município estava sinalizado em sua obra de diferentes maneiras, como na tradução "em forte poesia visual" na série "Suíte Araripe". "O Crato do Sérvulo não é um 'retrato na parede'. É uma cidade que se movimenta e se transforma, ao sabor dos ventos, da luz do sol, das cores que se intercambiam e que ele, egoísta, captou para ele e usou em sua obra", atesta Gilmar.
Presidente do Instituto Cultural do Cariri, o escritor e dramaturgo José Flávio Vieira lembra da infância de Sérvulo Esmeraldo, quando, no sítio Bebida Nova, pôde observar a Chapada do Araripe. No Crato, teve relação muito próxima com profissionais da xilogravura. Começou, então, dedicando-se à arte.
"Era uma infância bem lúdica, no Pé da Serra, com cachoeiras pequenas, ele brincava por lá, então é claro que isso o influenciou. Ele acordava com o relevo da Chapada do Araripe na sua frente, não há dúvida de que isso contribuiu. A ligação dele com o Crato sempre foi muito forte", compreende.
Embora tenha tido passagens de longos anos por outras cidades, como Fortaleza e Paris, ele sempre tinha o Crato em mente. À medida que envelheceu, foi ficando mais próximo da cidade, não à toa fez no município uma de suas últimas exposições antes de falecer.
De certa forma, a luz do Crato também é um fator relevante apontado por Fred Sidou, professor da área de Tridimensionalidade do Curso de Licenciatura em Artes Visuais da Universidade Regional do Cariri (Urca). O profissional tem afinidade com o trabalho de escultura de Sérvulo Esmeraldo.
Ele aponta que a "vivência campestre" do artista "foi muito importante na formação de uma sensibilidade talvez muito estimulada pelas linhas de horizonte, pelos relevos extensos visíveis das partes altas da Chapada" e pela localidade do sítio Bebida Nova, onde passou grande parte de sua infância.
"A paisagem do entorno da Chapada do Araripe, as mudanças de luz, os relevos extensos, tudo isso é muito intenso como experiência de observação. Acredito que isso tenha tido um papel fundamental na formação da sensibilidade de uma pessoa que viveu uma imersão tão significativa nesse ambiente", analisa.
Além disso, Fred Sidou pontua que há relatos de experiências de Sérvulo Esmeraldo com grupos de pessoas que quando passavam pelo Cariri faziam concertos de utensílios domésticos e ferramentas. Assim, o artista teve os primeiros contatos com o metal, o que provavelmente foi uma experiência precursora do que ele depois "desenvolveu muito bem como gravura".
Isso se estendeu para criação de objetos e até joias: "O Sérvulo foi muito versátil, um artista inventor. Essa bagagem de experiências culturais e também de observação da natureza deve ter contribuído, sem dúvidas, para a formação da personalidade artística, o que se refletiu no trabalho, essencialmente".
Atualmente, o professor desenvolve trabalho que foca na joalheria do artista, "uma parcela pouco conhecida do conjunto de sua obra", mas que, em sua análise, contribui para a inscrição do cratense como um dos precursores da joalheria contemporânea brasileira.
A ação é feita em parceria com o Instituto Sérvulo Esmeraldo e funciona como um trabalho de restauração, replicação e, eventualmente, de recriação de obras do cearense. Ele percebe diálogos com o legado de Esmeraldo em sua rotina de professor de artes na Urca, que também contribui institucionalmente para o Festival Sérvulo Esmeraldo (FSE).
Com quatro edições já realizadas, o FSE ocorre no Crato desde 2019 como forma de fomento à produção contemporânea nas artes visuais, tanto na criação artística quanto na formação de público. A Urca é uma das apoiadoras do evento. A primeira exposição do cearense no Crato ocorreu onde hoje é o pátio da Reitoria da instituição.
A Universidade faz atividades em parceria com o Instituto Sérvulo Esmeraldo, tanto no FSE quanto na exposição que será inaugurada no Centro Cultural do Cariri. "Nosso papel enquanto Universidade nessa parceria é promover esse reconhecimento da arte de rua do Sérvulo, como a arte cinética, da luz e as esculturas", aponta o Professor e ex-reitor da Urca, Francisco do O' de Lima Júnior, docente do Departamento de Economia.
Uma das obras presentes no Crato é a escultura "Pirâmides" na Encosta do Seminário. Com essas ações, a ideia é aproximar o público do Cariri do trabalho de Sérvulo Esmeraldo, com exposições nas ruas de Juazeiro do Norte e do Crato, por exemplo, para envolver a população. Em 2016, a exposição "A Linha, A Luz, o Crato" foi realizada na Urca.
"Foi importante não só para trazer a obra do Sérvulo às novas gerações de cratenses e de todas as pessoas que acessam a Universidade, mas para mostrar como valorizar a arte. O papel da universidade não é só formar, fazer ciência e conhecimento, mas promover as artes", destaca.
"O Sérvulo é um cidadão universal, um artista reconhecido e famoso em diversos países, e que levou as luzes, as cores, as curvas e as retas do nosso Crato e do Cariri. É isso que o particulariza: luz, tons bem chamativos, o movimento da cinética que lembra a Chapada do Araripe em diálogo com essa paisagem e o platô da reta… É muito importante esse amor dele pelo seu território", enfatiza.
Sérvulo em seu centro
O projeto de realização de "Esse É Sérvulo Esmeraldo" nasceu "ao ser adotado seu nome como patrono do Centro Cultural do Cariri", como afirma Rosely Nakagawa, diretora do equipamento. Ela aponta a iniciativa de Dodora Guimarães, curadora e pesquisadora em Artes Visuais, ao representar o Instituto Sérvulo Esmeraldo desde a inauguração, em 2022.
Ao longo deste período, o instituto foi realizando projetos de itinerância de uma exposição retrospectiva no Centro Cultural Banco do Brasil em São Paulo e Rio de Janeiro. Foi um período de maturação para a organização dessa curadoria que identifica a obra do artista com a cidade do Crato, onde ele nasceu para celebrar os 95 anos do artista aqui no Cariri", compreende Rosely.
Ao abordar a importância da realização da mostra no Centro Cultural do Cariri, Rosely destaca que Sérvulo Esmeraldo sempre teve "postura artística, social e política e contundente", e o Crato "se mostrou pequeno para o tamanho de um artista que se projetava imenso, como a Chapada do Araripe que sempre foi um horizonte presente como expansão dos seus limites".
"Essa referência de que o lugar que te conforma é um horizonte a ser considerado, mostra a potência do lugar, colocando o Centro Cultural do Cariri como um desses lugares, de valorização do patrimônio natural e cultural, de formação e difusão que visa estimular a criação e o crescimento para a cultura, artistas e mestres da região", pontua.
Mas, afinal, como a exposição pode contribuir para o conhecimento de novas gerações sobre o trabalho de Sérvulo Esmeraldo? Rosely Nakagawa lembra que a mostra "já é uma riqueza enorme" por reunir técnicas e linguagens exploradas no ateliê do cearense, mas acrescenta outros fatores.
"O trabalho educativo e ações culturais desenvolvidas pelo Centro Cultural do Cariri junto ao público permitirão um mergulho em sua obra, compreendendo desde a origem da carreira do artista à exploração do seu processo criativo, via experimentações que estarão sendo oferecidas no ateliê de formação, encontros e rodas de conversa, estimulando novos olhares e possibilidades para o público, artistas locais e estudantes de arte e educação", descreve.
Identidade visual
A identidade visual da exposição foi criada pelo artista multimídia, ilustrador, designer, desenhista e cenógrafo brasileiro Guto Lacaz. Ele utilizou o monograma de Sérvulo Esmeraldo com as suas iniciais, em desenho feito a partir das marcas de ferrar a fogo.
O artista desenvolveu a tipografia a partir da fonte Futura e trabalhou em cima de desenho feito pelo próprio Sérvulo. "Tive a alegria de tê-lo como amigo, trocamos muitas correspondências. Ele é geômetra, como também sou. Gostava de física, isometria, era do humor - morria de rir com ele - e tinha muita identidade estética e espiritual", recorda.
Esse é Sérvulo Esmeraldo