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"Eu visto preto por dentro e por fora": o impacto do hip hop na moda
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"Eu visto preto por dentro e por fora": o impacto do hip hop na moda

Com o retorno de acessórios como durag, lenços e grillz, especialistas discutem impacto da cultura hip hop na moda
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FORTALEZA-CE, BRASIL, 19-08-2024: DOM com a moda hip hop. Na foto, Chris Lima (Foto: Fernanda Barros/O Povo) (Foto: FERNANDA BARROS)
Foto: FERNANDA BARROS FORTALEZA-CE, BRASIL, 19-08-2024: DOM com a moda hip hop. Na foto, Chris Lima (Foto: Fernanda Barros/O Povo)

O título acima foi retirado da música "Negro Drama", do grupo Racionais MC's. Nos versos, Mano Brown narra os desafios que acompanham a vida de uma pessoa negra, além de pontuar como a comunidade negra lança tendências quando diz: "Inacreditável, mas seu filho me imita/No meio de vocês, ele é o mais esperto/Ginga e fala gíria; gíria não, dialeto".

As palavras de Brown se comprovam com o constante retorno de acessórios originalmente popularizados por pessoas negras como tendências de moda. Como é o caso de grillz (joia dentária), durags (acessório para cabelos), lenços de cetim e até mesmo balaclavas (espécie de máscara de proteção). "Isso se deve a alta do rap tanto no Brasil quanto no mundo, são acessórios que contém uma carga histórica bem pesada, principalmente os grillz", explica a figurinista Liamê Alves.

"Nos anos 1990, o uso desses acessórios não era vistos com bons olhos. Eram itens relacionados à cultura marginal, assim como o próprio rap e outros aspectos da cultura negra, por causa do racismo", salienta a também bacharel em Moda pela Universidade Federal do Ceará.

"Atualmente por termos passado por uma evolução, entre aspas, o 'ser negro' não é algo que nos gera mais vergonha ou medo do racismo. Passamos a ter mais coragem de usar esses itens que representam quem nós somos", argumenta a também estilista de roupas esportivas da marca Ranishi, que divide com a própria mãe.

Para a influenciadora de moda Sarah Veloso a volta desses itens também significa um gesto de resgate.

"Percebo uma valorização das raízes culturais ali, especialmente entre as comunidades periféricas. São itens muito característicos que serviram como respostas a necessidades específicas, no caso da durag para proteger os penteados. Mas viraram algo de estilo, uma forma de celebrar a identidade e a resistência", reitera a também publicitária.

Sarah destaca que o hip hop foi uma das maiores influências dentro da moda. "Os rappers e os artistas de hip-hop trouxeram muito os elementos do dia a dia o que eles gostavam para os palcos e clipes, com os tênis, as calças mais largas e os acessórios mais chamativos".

"A questão dos brincos também ali das mulheres criando essa estética que vai dialogando com o sentimento de resistência com a afirmação", continua a criadora de conteúdo. "Não tem como desassociar o hip hop da moda, sabe? Ele trouxe o movimento, as novas tendências, mas também transformou a maneira como as pessoas se expressam através das roupas", afirma Sarah.

A inserção de elementos da cultura hip hop na moda foi encabeçada pelo estilista Dapper Dan que aplicava logos de grifes em roupas mais largas em sua loja entre os anos 1980 e 1990, no Harlem, em Nova Iorque. Conhecido como o "Rei das Imitações", o designer foi um dos criadores do estilo gangsta chic, usado por personalidades como o grupo Run DMC e Mike Tyson.

"Quando pensamos no Dapper Dan, que é um estilista que conseguiu colocar a logo da Louis Vuitton no boné e popularizou, foi através disso que as pessoas começaram a ter um fascínio por marcas, que é algo que pauta muito a inserção do hip hop na moda", ilustra a também designer gráfica.

"Ele fundiu a alta costura com roupas que eram usadas nas quebradas dos Estados Unidos, no início não foi algo bem recebido pelas marcas, mas anos depois o Dapper chegou a colaborar com a Gucci, o que difunde ainda mais e incentiva as outras marcas a investir em moda de rua", explica a designer de moda Liamê Alves.

Não à toa, o rap foi o que possibilitou a conexão do cantor mato-grossense Chris Lima com a moda. "Eu assistia a muitos clipes na MTV e eu tinha muita referência internacional. Ainda não pensava em cantar, mas me chamava muito atenção a forma como eles se vestiam", conta o artista natural de Alta Floresta, município a 900 km de Cuiabá.

"Apesar de eu ter zero recurso da onde eu morava, eu sempre via e ficava imaginando se um dia eu conseguiria me vestir igual ao Usher, Chris Brown e outros rappers da época", detalha o músico, que veio a Fortaleza para focar na carreira de cantor. Para ele, o retorno de tendências ligadas ao hip hop também se deve a popularização do trap, subgênero do rap.

"A geração mais jovem acaba conhecendo o hip hop através do trap. Não é uma galera que acompanhou o rap ou o R&B dos anos 1990 e início dos anos 2000. Então, com a nacionalização do trap que passou a furar a bolha, incentivou as pessoas a replicarem o estilo dos trappers", explica Chris, que, além de cantor, possui uma marca especializada em moda de rua, intitulada de "The Bat Street".

A multiartista Cabulosa foi outra pessoa impactada pela influência do hip hop na moda. "Consegui ver muitas possibilidades para além das que eu já conhecia, passei a ver mais pessoas parecidas comigo, consegui me sentir confiante bastante para gostar e querer inventar mais nos looks", detalha a bailarina.

"Percebo muitas pessoas usando peças ou acessórios popularizados pelos rappers antigos. Eu sinto que o hip hop é revolucionário desde o começo. Então, as pessoas de anos atrás já estavam usando roupas à frente do seu tempo. Ainda estão atuais e, para além disso, as tendências se moldaram ao hip hop", elucida a também DJ.

 

FORTALEZA-CE, BRASIL, 19-08-2024: DOM com a moda hip hop. (Foto: Fernanda Barros/O Povo)
FORTALEZA-CE, BRASIL, 19-08-2024: DOM com a moda hip hop. (Foto: Fernanda Barros/O Povo)

Cultura Hip Hop em Fortaleza

Presente das passarelas das grandes semanas de moda às novíssimas trends do TikTok, ditando tendências distintas, a cultura hip hop se adaptou aos modos de vestir de cada região. "O hip hop chegou aqui, se conectou com a periferia do Brasil e foi se moldando a diferentes realidades", explica Sarah Veloso, criadora de conteúdo especializada em Moda.

"Nós temos outras culturas e estilos musicais que conversam com o rap, como o funk e o forró de favela, aqui em Fortaleza. Um dos maiores nomes do trap, o Matuê, nasceu aqui. São coisas que não são 100% hip hop, mas que de alguma forma se conectam com essa cultura", acrescenta a também publicitária.

A figurinista Liamê Alves destaca que o clima também influencia na forma em como as tendências são adaptadas. "O Nordeste é uma região quente na maior parte do ano, então acho que cada lugar cria o seu próprio estilo hip hop, porque diferente de um lugar mais frio, a gente não vai estar andando de moletom ou de calça jeans larga direto", afirma.

"As pessoas vão preferir bermudas, nem tanto regatas no estilo basquete, acabam optando por T-Shirts, uma Kenner no lugar do tênis, porque ela faz parte da cultura hip hop", exemplifica Liamê. "Vamos num evento de rap em Fortaleza e a maioria das pessoas está de Kenner, elas não estão mais de Adidas, elas estão de Kenner", compara, citando marcas de calçados presentes nos looks.

Liamê também ressalta a valorização de marcas autorais da Cidade que são voltadas para o streetwear por causa da influência do rap. "Isso é muito incrível, vemos essas marcas conseguirem se difundir através dessa cultura do streetwear, que tem tudo a ver com o hip hop, claro, obviamente, mas conseguirem construir a sua história na Capital", reflete.

"Conseguimos olhar para a moda streetwear de Fortaleza e ver que ela é daqui, apesar de ter influências do Brasil e do mundo todo, nós fortalezenses construímos essa estética que é muito daqui", argumenta. "A camisa da Fortal, a camisa da Mancuda, uma Kenner, uma bermuda, porque é a cultura daqui por causa do clima", ilustra Liamê.

"As pessoas também têm que se vestir de maneira confortável, assim como era lá nos anos 1990, nos Estados Unidos, quando os rappers começaram a usar roupas esportivas porque era confortável e era bonito. Aqui a gente usa o que é confortável e bonito para nós e assim vamos construindo essa cultura dentro de Fortaleza", finaliza Liamê.

FORTALEZA-CE, BRASIL, 19-08-2024: DOM com a moda hip hop. Na foto, Cabulosa. (Foto: Fernanda Barros/O Povo)
FORTALEZA-CE, BRASIL, 19-08-2024: DOM com a moda hip hop. Na foto, Cabulosa. (Foto: Fernanda Barros/O Povo)

Necessidade que virou tendência

Tendência nos últimos dois anos, os grillz são acessórios feitos de ouro ou prata que surgiram como forma de substituir os dentes de pessoas negras imigrantes do continente africano, que não tinham como arcar com próteses de dentes e encontravam no ouro uma forma de substituir a arcada dentária.

"São acessórios incríveis e antigos. Considero relíquias e, para mim, traz poder, riqueza", afirma a multiartista Cabulosa, que, apesar de apreciar essas peças, destaca que não conseguiu usar ainda por falta de recursos financeiros. Atualmente, um grillz de cobre banhado em prata 925 custa R$ 160, em média. Grillz de ouro e cravejado com zircônia custam R$ 170.

A avó de Sarah Veloso, uma mulher negra, costumava usar dentes de ouro já na década de 1950. A criadora de conteúdo especializada em moda lembra que a arcada foi roubada quando a matriarca morreu. "O que me pega muito é justamente quando vejo pessoas se apropriando disso sem saber a origem, o porquê, que contexto de onde vem", problematiza Veloso.

O músico mato-grossense Chris Lima, em Fortaleza há quatro anos, já vê a apropriação cultural por meio do uso de grillz por outra perspectiva. "Eu fico feliz em ver outras pessoas longe da nossa cultura usando isso, porque mostra que passou a ser algo comum e não considerado marginalizado", pontua.

"Quando eu tentava me expressar vestindo alguma coisa as pessoas me olhavam de uma forma diferente e quando eu comecei a ver que outras pessoas meio que me usavam como uma referência até pessoas brancas, isso não passou a ser algo ruim. Deixou de ser estranho e passou a ser bonito as pessoas começaram a querer ser igual a nós", argumenta o também dono da marca The Bat Street.

"É um item de resistência, que sobreviveu todos esses anos para chegar agora e a gente olhar para isso de modo positivo. Conseguimos chegar nesse lugar de mostrar para as pessoas que isso não é uma coisa ruim, não é uma coisa marginalizada, não é uma coisa do pobre. É um item que ele pode, sim, ser estético, é um item que ele pode sim ser para me deixar mais bonito", destaca Liamê Alves.

Acompanhe os artistas

Sarah Veloso: No instagram @sarahveloso

Chris Lima: No Instagram @chrisslima e no @thebatstreet

Cabulosa: No Instagram @c4bulos4

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