Era rotina consolidada. Diariamente, naquele mesmo horário entre 18h30min e 19 horas, Glória Diógenes ligava para Paulo. A escritora gostava de jantar cedo — por isso, era comum ouvir do outro lado da linha a sonora ênfase de que seu irmão ainda estava preparando a sua refeição. Não era um empecilho para a conversa, claro.
Os assuntos eram diversos, indo desde “fuxicos” às novidades do dia a dia. Um ritual sagrado e importante. Afinal, a ligação entre os irmãos era muito forte desde a infância, quando usavam “telefones de caixas de fósforo conectados por barbante” para se falarem. A interação, entretanto, foi afetada em 14 de fevereiro, quando Paulo Diógenes morreu.
Nascido no Rio de Janeiro, mas criado em Fortaleza, Paulo foi um dos principais humoristas do Ceará. Ele fez bastante sucesso com a personagem Raimundinha, uma caricatura da mulher suburbana que usava roupas e maquiagens coloridas, falava alto e usava saltos expressivos.
O comediante chegou a ser eleito vereador de Fortaleza em 2012. Como político, atuou principalmente em favor das pautas relacionadas aos movimentos LGBTQIAP+ e à dependência química.
Como forma de ressaltar o legado de seu irmão para além da trajetória artística e política, Glória Diógenes lança no Foyer do Theatro José de Alencar nesta quarta-feira, 28, o livro “Fio que não parte: contigo vivi, Paulo Diógenes”. A obra, publicada pela Editora Substânsia, aborda reflexões e o luto da socióloga diante da perda de Paulo.
O livro surgiu a partir da ausência de comunicação diária entre os irmãos. A autora passou a escrever diariamente como se estivesse conversando com Paulo sobre os “assuntos de todos os dias”. Os escritos ganharam “densidade” e serviram como uma forma de enfrentar o luto.
O humorista faleceu na Quarta-Feira de Cinzas. Glória, então, decidiu escrever ao longo de todo o período da Quaresma. “É um livro-conversa. Um livro de um luto vivido de forma visceral, mas que dá passagem à linguagem, à fala, ou seja, não se engasga com o sentimento. Isso foi fundamental para mim e pode ser que seja importante para outros lutos de outras perdas tão radicais, como a de um amigo de toda a vida”, reflete.
Sob os holofotes, Paulo era conhecido pelo grande público pelo seu talento e irreverência, principalmente sob a persona de Raimundinha. Glória esclarece, entretanto, que um dos traços apresentados no livro que talvez as pessoas não conheçam é sua timidez. Segundo a irmã, ele era “muito reservado”.
A questão é ilustrada já na arte da capa, com a presença de duas conchas: “Todos os dias eu perguntava a ele se estava tudo bem. Ele dizia: ‘Sim, estou na minha conchinha’. Por quê? Porque ele fazia os shows e saía pelos fundos. Ele nunca voltava para a plateia. Paulo nunca fez shows para receber louros. Pelo contrário, ele ficava muito envergonhado”.
Essa, revela, é uma característica que o acompanhava desde a infância: “No livro eu falo sobre quando morávamos em Russas e fomos apresentar ‘O Cravo e A Rosa’. Ele saiu correndo do palco e chutou o microfone. Nunca — na nossa cabeça — ele queria ser artista, só que ele encontra uma persona que é o escracho, o exagero, o transbordamento do que ele não era”.
No livro, vem à tona ao público como Paulo era “muito humano”. A autora também registra na obra conversas da infância, como era a vida em Russas e outros detalhes da convivência com seu irmão.
“Fio que Não Parte” foi editado pela professora e escritora Sarah Diva e por Talles Azigon, com projeto gráfico e diagramação de Daniel Firmino. Além disso, a capa é ilustrada com pintura original da artista visual e pesquisadora Alice Dote, orientada por Glória Diógenes em seu doutorado. Ela destaca a admiração pelos profissionais e os detalhes da capa.
“A capa é como se fosse o livro todo ali: tem uma vela de Ogum, tem a xícara de café do Paulo, tem o batom da Raimundinha, as conchinhas, tem o telefone… Eu sabia que a Alice perceberia tudo isso. O livro tem também ‘orelha’ escrita pela professora Neidinha Castelo Branco - a grande mentora do Paulo e que ajudou a construir a Raimundinha”, aponta.
Passados seis meses da morte de Paulo Diógenes, quais são as principais características do humorista que permanecem não apenas para seus admiradores, mas principalmente para sua irmã? Entre aspectos como irreverência, criatividade e curiosidade, há um que se sobressalta: a ousadia.
“O Paulo desafiou uma cultura cearense machista e também desafiou a ideia de que a arte só se dá em palco. Ele mostrou que a arte pode ser em um bar, misturada à vida, ele não separou a arte da vida. Isso me traz ensinamento muito grande. Além disso, me vem um Paulo muito carinhoso, com grande compaixão e compreensão da diversidade”, relata.
Ela acrescenta: “Ele não tinha egoísmo nem vaidade. O Paulo era sempre coletivo, gostava dessa textura coletiva de fazer a arte transbordar para a cidade. Acho que é esse o espírito do Paulo que ficou em mim e que espero que as pessoas encontrem no livro”.
Fio que não parte: contigo vivi