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Literatura de cordel: da ocupação a conquista de novos leitores
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Literatura de cordel: da ocupação a conquista de novos leitores

Patrimônio cultural do País, a literatura de cordel ganha novos espaços e enfrenta desafio de renovação de leitores
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FORTALEZA, CEARÁ, BRASIL, 27-08-2024: Cordelteca da BECE é inaugurada, a estrutura está com algumas refências da produções do cordel cearense. (Foto: Samuel Setubal/ O Povo) (Foto: Samuel Setubal)
Foto: Samuel Setubal FORTALEZA, CEARÁ, BRASIL, 27-08-2024: Cordelteca da BECE é inaugurada, a estrutura está com algumas refências da produções do cordel cearense. (Foto: Samuel Setubal/ O Povo)

Quando passamos por uma biblioteca que tem cordéis à mostra, é natural a curiosidade de pegar e folhear o pequeno livrinho. As capas em xilogravuras atraem pessoas e sua linguagem popular as prende a atenção. Para muito além de contar histórias matutas, a literatura cordel se consagrou ao longo dos séculos como meio de transmissão de conhecimento popular.

Desde o seu reconhecimento como Patrimônio Cultural Imaterial Brasileiro em 2018, pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan), o folheto voltou a ser destaque em bibliotecas, com distribuição em diferentes formatos e poetas da nova geração.

Na última quarta-feira, 28, a Biblioteca Estadual do Ceará (Bece) inaugurou a Cordelteca Arievaldo Viana, um espaço com acervo de cordéis que homenageia o cordelista e xilogravador cearense que faleceu em 2020. Segundo a superintendente da Bece, Suzete Nunes, o objeto é ampliar o destaque da cultura popular.

"A gente percebeu que os cordéis precisavam de um espaço de referência dentro da biblioteca, por ser uma linguagem muito importante para a literatura brasileira, nordestina e, sobretudo, para a gente (cearense) que tem uma produção literária muito potente", afirma Suzete, que também destaca o porquê da homenagem à Arievaldo.

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"Ele morreu jovem, em 2020, vítima de uma infecção, mas fez uma produção de cordel muito interessante e fez um trabalho muito na difusão e popularização do cordel em sala de aula. Ele usou o cordel como instrumento de alfabetização de jovens e adultos, expandindo a literatura de cordel nas escolas públicas, não só no Ceará, mas no Brasil inteiro".

 

Arievaldo Viana ocupou em vida a cadeira de número 40 da Academia Brasileira de Cordel. O projeto citado por Suzete se chama "Acorda Cordel na Sala de Aula" e foi idealizado por ele, que tinha o objetivo de levar para escolas a literatura de cordel por meio de palestras com cordelistas e distribuição de folhetos educativos. Ao todo, o cearense publicou mais de 30 livros e mais de 150 cordéis.

Regina Paiva, bibliotecária responsável pela nova cordelteca da Bece, aponta: "Como bibliotecária, eu entendo que a Biblioteca Estadual do Ceará, a maior biblioteca pública do Estado, tem o papel de receber todos os públicos e fazer com que eles também tenham o seu espaço de difusão, de disseminação das suas obras. E o Cordel, como literatura popular, atinge uma camada na sociedade que, apesar de estar crescendo, tem pouca visibilidade. Eu acredito que, enquanto biblioteca, nós devemos ter a responsabilidade de dar espaço aos cordelistas".

"O mercado editorial do cordel agora está começando a deslanchar mais, a gente não tinha grandes editoras que produzissem cordel em maior escala. É uma camada dos nossos escritores que merecem também a atenção e o espaço. Esse trabalho de criar a cordelteca não vai parar só na questão de catalogar os cordéis, abrir o espaço e colocá-los na estante, mas também é fazer com que, ao longo dessa jornada, eles possam ter um espaço para difundir as suas manifestações", complementa Regina, que informa que a Bece passará a realizar mais programações sobre literatura de cordel no espaço.

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Na Cordelteca Arievaldo Viana há 1.600 exemplares de cordel e quase 1.200 títulos diferentes, a maioria deles de autoria cearense. A razão deste enorme acervo na Bece é a Lei Estadual nº 13.399, de 17 de novembro de 2003, conhecida como Lei do Depósito Legal. Ela institui que todas as obras impressas devem ter pelo menos três exemplares enviados para a Biblioteca Estadual do Ceará, para garantir o registro e preservar a memória do Estado através da guarda de publicações.

Paola Tôrres é médica hematologista, cordelista e compositora
Paola Tôrres é médica hematologista, cordelista e compositora

Transmissão de conhecimento

"A literatura de Cordel era conhecida como Jornal do Sertão. Todo acontecimento grande, os cordelistas escreviam e iam levando de cidade em cidade, recitando aquilo até que aquilo virava conhecimento público", explica Paola Torres, que é médica onco-hematológica e usa o cordel para difundir seu conhecimento de medicina.

Inclusive, Paola também é professora titular da Universidade Federal do Ceará (UFC) e da Universidade de Fortaleza (Unifor) e usa o recurso da linguagem cordelista para ajudar no aprendizado de seus alunos.

"Eu venho de uma família de mulheres contadoras de história. Minha bisavó, minha mãe, eram mulheres que gostavam de contar histórias e colecionavam cordéis. Meu pai também. Eu tive contato com o cordel desde a infância, eu venho desse berço. Eu morei no sertão pernambucano e lá, no sertão, a tradição do cordel é muito forte. (...) Quando eu fui ensinar medicina, eu observei que a maioria dos pacientes, quando a gente vai de coisas mais complexas, não tem ideia de como acontecem as coisas. Foi aí que resolvi começar a explicar como era a doença por meio de cordel", narra Paola.

A médica cordelista explica que essa metodologia prosseguiu e atualmente a medicina é um dos principais temas das suas obras: "Agora mesmo eu vou para a Bienal Internacional do Livro de São Paulo, lá vou lançar vários livros, mas um deles é 'Neoplasias Hematológicas em Cordel: Desafios'. Esse cordel exatamente é para médicos de medicina de família e comunidade lerem o cordel e aprenderem a diagnosticar precocemente leucemia, linfoma e miomas, que são três doenças muito sérias do sangue e são geralmente diagnosticados de forma tardia porque os médicos não conhecem muito bem os sintomas. E eu uso o cordel para isso".

"O cordel, antes de mais nada, começa no Brasil colonial exercendo uma função social. O País não tinha rádio, revista, televisão ou jornal que circulava no Nordeste. Então a morte de Lampião, a vida de Frei Damião, a morte de Getúlio Vargas, tudo isso virava notícia e era noticiado pelos cordelistas. Mas não era só isso, eles também davam receitas de ervas medicinais, de qual era o melhor tempo para plantar. A literatura de Cordel surge no Brasil com função extrema de educação, de jornalismo, de informação e de cultura também", destaca Joana.

O professor, escritor, poeta, cordelista e trovador Gerardo Carvalho Frota, conhecido artisticamente como Pardal, tem formação como instrutor de trânsito e autoescolas e escreve cordéis, entre outros assuntos, sobre condutas de trânsito seguro e catolicismo. Ele acredita que essa linguagem é uma forma de levar informações a mais pessoas. "O Cordel é tido como o jornal popular", ele ressalta.

"O cordel foi dividido entre cordel rural e cordel metropolitano. Tem muita gente que faz cordel e tem até doutorado até, mas resgata aquela origem matuta, que é o rural de hoje em dia. É como trazer o matuto e o rural para a linguagem, mas, na verdade, tem bastante estudo", explica Pardal.

Questionados sobre o atual momento da literatura de cordel no Brasil, Joana pontua que estamos num período mais sofisticado: "O cordel saiu do folheto e ele começou a ser transferido de uma forma mais sofisticada. Por exemplo, agora mesmo eu também estou lançando pela Companhia das Letrinhas um cordel infantil em parceria com a Eurita Tabajara, onde eu conto uma história para crianças. No momento que o cordel chegar ilustrado, num livro de uma grande editora, muitas crianças passam a consumir essa obra".

"Ultimamente, eu acho que o cordel está chegando a muito mais pessoas por todos os veículos de comunicação", complementa Paola.

Pardal concorda com o bom momento para os cordelistas: "O cordel teve várias fases. A Fase Áurea, lá na década de 1950, quando, por exemplo, um cordel de Getúlio Vargas vendeu 50 mil folhetos. Aí tivemos a década de 1970, quando veio a inflação e teve a 'quebradeira', foi aí que o cordel despencou. Na década de 1990, estava começando a retornar. Nós estamos atualmente no auge, no pico do cordel".

Poeta, cordelista e ilustrador, Arievaldo Viana deixa um legado para a cultura do Estado
Poeta, cordelista e ilustrador, Arievaldo Viana deixa um legado para a cultura do Estado

Legado no cordel

Um dos destaques na atual geração de cordelistas cearenses é Klévisson Viana, irmão de Arievaldo Viana. O artista é escritor, cordelista, roteirista, cartunista, xilogravador, editor e presidente da Aestrofe - Associação de Escritores, Trovadores e Folheteiros do Estado do Ceará. Além disso, ele foi titulado Mestre da Cultura do Estado do Ceará em 2022.

O POVO - Como começou sua relação com a literatura de cordel?

Klévisson Viana - A literatura de cordel foi a primeira linguagem narrativa a qual eu tive acesso. Meu pai era agricultor e, quando chegava do roçado, sentava numa cadeira espreguiçadeira, e ia ler para a gente. E uma das principais leituras eram folhetos de literatura de cordel e livros de poesia, de Alberto Porfírio, de Patativa do Assaré e tantos outros poetas populares. Essa literatura chegou na minha vida muito cedo. Meu pai é poeta, meu bisavô era poeta, então é uma herança familiar. Meu irmão mais velho, Arievaldo Viana, que faleceu durante a pandemia, está sendo homenageado lá na Bece e também era um grande poeta popular, então é uma tradição familiar. A poesia de Cordão entrou na minha vida na minha primeira infância. Desde que eu me entendo por gente, a poesia popular está presente.

OP - Você considera que os cordéis têm mais espaço nas livrarias em relação a décadas anteriores?

Klévisson - A literatura de cordel tem ganhado cada vez mais espaço nas livrarias. Imagina que o cordel era comercializado no chão das feiras livres, depois passou para as livrarias, para as centrais de artesanato, para os grandes eventos como feira de livros, bienais, eventos culturais, a literatura de cordel foi ganhando espaço. Quando eu comecei a trabalhar com o cordel, no final de 1998, essa literatura estava agonizante, tinham poucos autores e as impressões eram em xerox, o negócio estava muito fraco. Depois que a gente começou a fazer um trabalho de retomada desse mercado editorial, muitos autores passaram a publicar em gráfica, fazer tiragens significativas, porque isso de ficar fazendo 10, 20 cópias artesanalmente é muito precário. Dessa forma, o trabalho não circula. Eu comecei a fazer megas tiragens, tiragem de 3 mil, de 5 mil, de 10 mil exemplares e até de 70 mil exemplares nós chegamos a fazer tiragens. Então, eu acredito que esse espaço é interessante, eu não vejo com nostalgia de nada. Acho que tem muito a ser conquistado ainda, mas nós já avançamos muito, principalmente na escola, na sala de aula, a literatura de cordel hoje tem muito espaço, muitos professores trabalham com a literatura de cordel nas escolas.

OP - Como você avalia o legado de Arievaldo Viana, seu irmão, na cultura de cordel?

Klévisson - A Bece agora faz homenagem ao Arievaldo, que realmente foi um grande poeta e deixou cerca de 35 livros publicados e mais de 100 de folhetos de cordel. Era meu irmão mais velho, cinco anos, faleceu muito jovem ainda, com 53 anos incompletos. Ele hoje é homenageado com a cordelteca e, em Quixeramobim, tem uma cordelteca com o nome dele, tem outra em Canindé, tem uma escola aqui no bairro Ayrton Senna com o nome dele, tem uma rua em Campina Grande com o nome dele... Ari era um artista respeitado em todo o Nordeste, até hoje tem muitas pessoas ligadas à cultura popular buscando meios para homenageá-lo. O Ari é sempre lembrado e homenageado, assim como foi homenageado na última Feira do Cordel Brasileiro, em que o palco principal chamou-se Poeta Arievaldo Viana.

 

História do cordel

A pesquisadora em literatura de cordel Francisca Pereira dos Santos, conhecida como Fanka Santos, explica que existe uma grande discussão em relação à origem do gênero, que teria começado em Portugal.

"A gente tem realmente essa relação com os conteúdos dos cordéis lançados em Portugal, mas lá esses folhetos eram diferentes do nosso, eles eram cordéis, porque, em Portugal, "cordel" significa "cordão" e eram livrinhos que eram pendurados em um cordão, eram chamados de literatura de cordel porque eram vários tipos de literatura, como de Gil Vicente, do teatro de Gil Vicente, poderia ser um livro religioso, ou versos, seja lá o que fosse. O que os caracterizava era estarem pendurados nesse cordão, nesse cordel", diz.

Fanka conta que a chegada dessa cultura dos livros em cordão teve um significado diferente no Nordeste, região onde os cordéis se popularizaram: "A gente criou um sistema editorial próprio, é uma poesia que tem uma relação muito mais com a voz e corpo do que com a escrita. Se você pensar no século XIX, o grau de pessoas ágrafas, de pessoas que não dominavam as tecnologias da escrita, era muito maior a disparidade nesse sentido da alfabetização. É uma literatura oral, uma literatura cantada, que tem uma força com os cantadores repentistas".

"Nós somos responsáveis por um dos maiores sistemas editoriais do Brasil em termos de editoração, com autor, com editor, com vendedor, com distribuidor por todo o Nordeste, de um sistema rico de informação, notícias e poesia, e artes. É interessante ver nesse aspecto porque ele moveu economias, moveu a cultura nordestina. Ele é um modelo de muita gente quando a gente está estudando os poetas. Por causa dessa musicalidade, folheto, dessa rima, dessa metrificação, o gênero garante que você guarde aquilo na sua memória. Você acaba aprendendo muita coisa, muita gente me fala que aprendeu a ler e a escrever com folheto, então ele é também um professor", destaca.

A pesquisadora aponta ainda que o movimento das mulheres no cordel é relativamente recente, desde os anos 2000 a presença foi mais efetiva na produção de gênero. No entanto, ela também defende que anteriormente elas estavam entre os cordelistas com pseudônimos masculinos. "Eu comecei a encontrar mulheres publicando na década de 1930", afirma.

"Mas, efetivamente, a partir do ano 2000, a gente tem um grande movimento, uma retomada do folheto com uma forte presença feminina, inclusive criando movimentos no digital, que é uma coisa contemporânea. Mas elas sempre estiveram ali, a minha tese é que as mulheres sempre estiveram como cantoras, como cantadores repentistas. Eu não faço uma separação radical entre a cantoria de repente e o folheto, porque, no folheto de cordel, o que você tem são gêneros poéticos, que vêm da cantoria. Claro, são muitos gêneros, mais de 100 gêneros já catalogados, e para ir do suporte cantado para o texto escrito, claro que não ia dar para colocar todos os gêneros. As mulheres cantavam, mas não publicaram. O acesso à escrita era difícil. A mulher estava no lugar privado, na roça, e não tinha tempo com essas coisas. Eu ficava imaginando uma mulher no começo do século XX se arrumando e indo para uma tipografia para fazer um folheto. Isso quase dificilmente aconteceu, né? É mais difícil", finaliza.

Cordeltecas para conhecer

Cordelteca Arievaldo Viana

  • Onde: Biblioteca Pública Estadual do Ceará (Av. Pres. Castelo Branco, 255 - Moura Brasil)
  • Funcionamento: terça a sexta-feira, das 9 às 20 horas / sábado e domingo, das 9 às 17 horas
  • Instagram: @bece_bibliotecaestadualdoceara

Cordelteca Maria das Neves Baptista Pimentel

  • Onde: Unifor (Av. Washington Soares, 1321 , Edson Queiroz)
  • Funcionamento: segunda a sexta-feira, das 8h30min às 17 horas / Sábados, de 8 às 13 horas
  • Instagram: @uniforcomunica

Cordelteca de Juazeiro do Norte

  • Onde: R. da Matriz, 227 - Centro
  • Funcionamento: segunda a sexta-feira, das 7 às 22 horas

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