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Em cartaz na Caixa Cultural, Jeff Alan fala como ausências movimentam sua arte
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Em cartaz na Caixa Cultural, Jeff Alan fala como ausências movimentam sua arte

Em cartaz com exposição "Comigo Ninguém Pode", Jeff Alan fala sobre processo de criação, sua relação com arte e desafios de trabalhar com arte no Brasil
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Artista pernambucano Jeff Alan está em cartaz com exposição
Foto: Jeff André/Divulgação Artista pernambucano Jeff Alan está em cartaz com exposição "Comigo Ninguém Pode"

Cria do Barro, bairro na Zona Oeste de Recife, em Pernambuco, Jeff Alan começou seu contato com a arte ainda na infância por meio dos desenhos. Em cartaz na Caixa Cultural Fortaleza com a exposição "Comigo Ninguém Pode - A pintura de Jeff Alan" até 10 de novembro, o artista usa a arte para falar de pertencimento e negritude.

"Desde que comecei a visitar equipamentos culturais, não me senti representado. Eu não me enxergava naquelas obras, e os semelhantes estavam servindo aos brancos, morrendo, contando histórias tristes", conta Alan, que não se considera um artista plástico ainda, somente grafiteiro.

"Isso me causava grande incômodo e indignação, e me encorajou a escrever minha própria história. Vejo as pinturas dos brancos que contam histórias negras que não pertencem a eles. E por que nós não podemos contar as nossas próprias histórias?", questiona o pernambucano, que quase se formou em Arquitetura.

Jeff salienta também que a sua negritude atravessa seu fazer artístico desde a infância, quando já produzia autorretratos, mas eram coisas que ele ainda não sabia nomear. "Eu sempre fazia as capas dos trabalhos na escola, costumizava capas de caderno. Desde criança já sabia o que eu queria para minha vida, isso tornou o caminho menos doloroso. Mas custou uma vida toda".

A rua foi o primeiro lugar a receber as exposições de Alan, que costumava pichar paredes antes de ingressar no grafite. "De 2014 até a pandemia, a rua foi meu principal atelier, minha escola, sabe? A primeira galeria", relembra o pernambucano que começou a pichar em 2008. "Foi o caminho da escola que despertou em mim esse interesse de ser um interventor urbano, quando comecei a riscar as paredes. Desse primeiro momento para cá buscar minha identidade, meu estilo", detalha.

"Antes dos retratos eu fazia um trabalho mais abstrato, que faço até hoje, que é algo muito importante porque durante a faculdade tive contato com muitos escritórios e vi como uma porta para comercializar meu trabalho", revela Jeff Alan, que, devido ao isolamento obrigatório durante a pandemia de covid-19, passou por um momento de conexão consigo e com suas raízes

"Passei a entender meu lugar no mundo assim como a rua também foi importante nesse processo de descoberta. Como é que eu posso dialogar com as pessoas que transitam por aqui pela minha comunidade? Como posso deixar uma mensagem, algo que possa contribuir para alguém trabalhador que vai passar por aqui para pegar o metrô, o ônibus?", salienta.

Esse período aliado à ausência de artistas não-brancos em galerias foram os principais fatores para a série "Olhar Para Dentro". "Eu lembro que o primeiro retrato foi um jovem que eu pintei em situação de rua", exemplifica Jeff mostrando a obra pendurada na parede branca do seu quarto durante a entrevista realizada por chamada de vídeo.

O quadro ao qual ele se refere foi produzido em 2020 e traz um rapaz negro de bermuda jeans sentado em cima de um alambrado cheirando uma garrafa de cola, em um fundo branco de papel rasgado sobre um fundo vermelho. "O papel rasgado foi proposital, porque essas pessoas são invisíveis para a sociedade. Será que essas pessoas têm tempo para sonhar?", questiona.

Ele aproveita para mostrar a obra ao lado de um jovem negro com a cabeça abaixada e o corpo ensaguentado. "É um autorretrato que é o trecho de uma música de Djonga que diz: 'Olho corpos negros no chão, me sinto olhando no espelho/ Que corpos negros nunca mais se manchem de vermelho'. São histórias tristes que também são nossas e é o que a sociedade só quer que a gente conte, esse tipo de narrativa", explica o artista. A música que inspirou a obra é "Falcão", do álbum "Ladrão" (2019).

O pernambucano relembra que o primeiro quadro gerou um grande choque para seus seguidores nas redes sociais. "Lembro que perdi mais de 400 seguidores num dia, que era uma galera que consumia arquitetura e design", conta ele que, apesar de ter ganhado notoriedade com séries que denunciam a violência sofrida pelo povo preto, não quer limitar seu olhar artístico a um único viés.

"Eu já estou cansado de contar essas histórias, bota fé? Eu quero falar sobre alegria, conquistas, amores. Então, durante as visitas mediadas faço algumas provocações que trazem esses assuntos", destaca. Para o pernambucano, as visitas mediadas são uma forma importante de colocar o público em contato com seu processo criativo também. "Quem só tem contato com minha obra final, está acessando somente a superfície de todo o meu processo criativo".

A partir dessas inquietações de Jeff Alan nasce a exposição "Comigo Ninguém Pode", baseada no bar do tio, "Caldinho do Beco", localizado no bairro do Barro. "Esse senhor faleceu há dois anos, tinha mais de 60 anos e era irmão de minha mãe. Na frente do bar tem uma (planta) comigo-ninguém-pode' e foi lá que minha mãe trabalhou quando saiu do orfanato. Foi onde conheceu o meu pai e onde começaram uma história de vida", relembra o grafiteiro, que usa principalmente tinta em acrílico para seus trabalhos. "É um local sagrado para mim, sempre vou lá todos os dias. No entorno desse bar tem o Campo do Floresta, que é um ponto de encontro daqui, três escolas públicas e, encostado no bar, tem um baobá cuja copa fica em cima da casa do meu tio", detalha Jeff, que já realizou mutirões de pintura nas casas do lugar.

Um dos principais desafios do artista tem sido lidar com o próprio mercado da arte. O que fez com que ele tomasse a decisão de deixar a galeria que o representava. "Fui muito corajoso ao falar para a minha galerista que quero sair para repensar novos caminhos. Quero sair desse rolê de produzir, a galeria vender e ficar com cerca de 50% do lucro", revela Alan, que também destaca que o valor recebido pelo artista não é justo.

"Cada vez mais estou enriquecendo essa pessoa. Mas vejo como uma grana de algo que nasce de mim, que estou fazendo com meus irmãos e irmãs e a distribuição não está sendo feita de maneira correta. Se tiver que enriquecer alguém que seja a minha comunidade", pontua. Para o futuro, o artista quer voltar a produzir arte nas ruas, realizar mais mutirões e fundar uma instituição que potencialize sonhos de pessoas periféricas.

Acompanhe o artista

 

Exposição "Comigo Ninguém Pode"

  • Quando: terça a sábado, de 10 às 20 horas; domingos e feriados, de 10 às 19 horas. Até 10 de novembro de 2024
  • Onde: Caixa Cultural (av. Pessoa Anta, 287 - Praia de Iracema)
  • Gratuito
  • Mais informações: www.caixacultural.gov.br
  • Instagram: @caixaculturalfortaleza
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